domingo, 23 de setembro de 2018

Nostalgia…


A nostalgia surge do nada, sem motivo. Até de uma chávena de café. Deixa-nos parados a olhar, a lembrar coisas insignificantes que nos fizeram felizes ou nos fizeram sofrer. E vêm à memória coisas esquecidas durante anos.

Desta vez, a imagem de um antigo Café, encontrada por acaso na internet, trouxe-me miríades de recordações confusas que se vão iluminando e me deram a sensação de a memória ir revelando películas abandonadas numa caixa velha. Eu sempre tive uma atracção pelos velhos cafés, desde miúda.

Os meus pais eram frequentadores de cafés, em Portalegre. A minha mãe deve ter sido das primeiras mulheres a ir ao café, à noite!
Largo dos Correios

Desde o Café Central, no Largo dos Correios,  que pertencia ao meu avô, e onde iam quase todas as noites a partir da Primavera. Desde pequena adorava a atmosfera dos Cafés

Andava, de mesa em mesa, a espreitar as lindas chávenas, os copinhos  de vidro, para café, os copos grandes para o “galão” e as chávenas pequenas para o “carioca de limão” que as senhoras costumavam pedir.
Havia também o Café Alentejano, um dos mais populares - fundado muito cedo na cidade- onde iam raramente pois ficava longe da nossa casa. 
o Café Alentejano

Havia também  o "Facha", ao fundo da Rua DireitaHoje, nesse espaço está o "Café José Régio" - choca-me sempre ver o seu nome escrito por toda a parte, desde as chaveninhas, às cadeiras, aos pacotinhos de açúcar...


Café José Régio, interior

Régio, de facto, nos últimos anos de Portalegre, era assíduo frequentador do "Facha", numa "tertúlia" que reunia, além dos meus pais, o pintor Arsénio da Ressurreição, o "Capitão" Saraiva - e tantos outros.
Imagens que me levam à infância e aos lugares de felicidade e descoberta de novidades que é essa idade, seguida da adolescência, igualmente fixadora de momentos que entraram dentro de nós. Recordar pode magoar, mas pode trazer uma alegria inesperada.
A imagem desse Café desaparecido há muito, o Café Chave d’ Ouro, impressionou-me. Situado na Praça D. Pedro V, hoje mais conhecida por Rossio, era um palácio encantado onde senti especial  emoção - diria estética- pela beleza do edifício no exterior e acolhimento no interior e pelo que me trazia de novidade e pelo ambiente diverso de encantamento quase mágico.
Carlos Botelho, Lisboa ao pôr do sol

Eram poucas as nossas idas a Lisboa, direi mesmo que eram raríssimas. O meu pai sentia-se bem na sua cidade de província. 
De vez em quando, inesperadamente, a nossa mãe dizia: “Vão arranjar as vossas coisas, amanhã vamos a Lisboa!”

Ir a Lisboa era uma aventura. Não sei quais eram as coisas que tínhamos de "arranjar". Uma malinha? Algum boneco ou um livrinho? Não recordo nada.
A viagem era no táxi do Senhor Bretanha, que o meu pai chamava quando precisava, pois nunca quis ter comprar carro.
Van Gogh, Café 


Ficávamos num hotel central, perto do Rossio, que ainda existe, o Hotel Americano. Penso que quem não conhece uma cidade, prefere ficar perto do centro. 
Café Nacional 
Em Lisboa, deslumbravam-me esses lugares luminosos, cheios de vidros e cristais.  Recordo o Café Nacional e o Leão de Ouro, mas era o Café Chave d’ Ouro o meu preferido. 
Por fora, num dos lados da Praça do Rossio,  o aspecto era lindo e grandioso. Era para mim uma espécie de Palácio-CaféAo ver as fotografias do desaparecido Café, compreendo o deslumbramento que sentia e me fez amar esse lugar.
Café Chave d’ Ouro, interior
Quase como um teatro amplo, luzes pendentes do tecto alto, pois o Café era construído em dois andares, dois cafés, sendo o segundo uma espécie de galeria aberta para a sala em baixo.
Outra razão me fazia gostar do Chave d’ Ouro: eram os encontros que os meus pais tinham ali com os velhos amigos, os antigos colegas da Universidade.
Lá estava o Dr. Marques Cardoso, que era o meu "amigo" preferido, que me dava palmadinhas na face e me olhava com ar divertido e muita ternura. 
E faço um à parte porque era um amigo especial, amizade herdada do meu pai. Por vezes ia visitar-nos a Portalegre e era uma alegria enorme para mim!

Anos mais tarde, casada e a viver em Lisboa, passou a ser o nosso  médico e protector, a pessoa com quem contávamos, nas pequenas problemas que surgiam no dia a dia. Bastava um telefonema e eu ficava tranquila.
Tinha o consultório na rua do Sol à Graça e era venerado pelos seus doentes, pessoas sem grandes posses que o consultavam de graça e ainda levavam caixas de remédios.

Subíamos as escadas até ao primeiro andar e, ao fundo do corredor, à esquerda, ficava o consultório. Lembro-me de encontrar pessoas que o iam procurar, de rosto aflito e olhos cheios de fé. Para mim, era um prazer ir vê-lo!

Uma vez, estava eu grávida do Diogo, fomos à consulta. Sei que levava um vestido novo, azul, com florinhas vermelhas e brancas e um folho debaixo do peito. 
À saída, no tal corredor, cruzámo-nos com um senhor que me olhou , com um sorriso de espanto. Não o conhecíamos.

Quando voltei à consulta da próxima vez, ele contou-nos a história toda. Esse senhor era o Dr. Cruz Costa, grande amigo do meu pai. Ao entrar-lhe no consultório, a correr, dissera: 
Tive uma visão! Vi passar ao meu lado, no corredor, a mulher do Falcão!" 
O Dr. Cardoso explicou-lhe, calmamente que era "a filha do Falcão".  Contava-nos e ia-se rindo com pequenas gargalhadas entre acessos de tosse.
Mas voltemos ao Café Chave d’ OuroSim, esses amigos passavam por lá. Ficavam a tomar café, a fumar. Sempre na galeria.
Toulouse Lautrec, Cafés

Formava-se uma pequena “tertúlia” em que se falava de tudo, da literatura à música, da música ao cinema e, cuidadosamente, à situação política que se vivia sob Salazar. 
Lembro o Dr. Viterbo, e os amigos do Dr. Marques Cardoso. Conversavam, bebiam café e fumavam. Fumavam muito todos eles.
José Régio quando ia a Lisboa, encontrava-se regularmente com Marques Cardoso. Escreviam-se e as cartas a que tive acesso são interessantíssimas.
Eu girava por ali, ia contemplar o Rossio e as suas árvores, pelas enormes vidraças que ficavam na parte do restaurante - onde íamos depois comer o bife com batatas fritas melhor do mundo.
Encantamento era a palavra para tudo o que sentia!  
O que via? O que pensava? O que imaginava? Que histórias contaria à Florinda quando voltássemos para Portalegre?
Portalegre e parte do Castelo

Olhava para baixo, debruçada do parapeito do primeiro andar, via o café do rés-do-chão: a vida buliçosa e barulhenta dos cafés, com os perfumes misturados de café, bolos e o fumo que subia em espirais dançarinas.

Sentada, sozinha, numa cadeira, encostada à balustrada, ia observando e pensando. Na mesa ao lado, conversavam e fumavam. O meu pai, o Dr.Marques Cardoso fumavam mais do que todos e a verdade é  que os dois morreram cedo com um enfisema pulmonar.
Quem mo diria nessa manhã em que tudo brilhava? Como poderia adivinhar que se podia morrer assim?

A verdade é que a gente que fazia parte daquele grupo morreu. Sombras que passaram, que viveram, que amaram e tão depressa se foram. Penso em Camões…

“Se lá do assento etéreo onde subires,
Memória  desta vida se consente,
Não te esqueças….”
 O assento etéreo está cheio de gente que amei, que me faltam, que tanto me deram nesses anos da minha  infância.
A fotografia do Café Chave d’ Ouro trouxe-me um mundo de imagens escondidas no fundo do coração.
Jacob Maris, Céus de tempestade

Daí a nostalgia. A ideia de “never more, never more”, nunca mais, como grasnava o corvo de Pöe. 
Nunca mais voltarão! Nunca nos reencontraremos? As nuvens escuras correm e vejo-as e penso: nunca mais...

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Das minhas "Páginas sobre José Régio"...


José Régio teria hoje - impossível, claro - 117 anos...
Nasceu em Vila do Conde em 17 de Setembro de 1901 e em Vila do Conde morreu em 22 de Dezembro de 1969, em consequência de um enfarto. 
Em Portalegre viveu e ali o encontrei. Foi meu professor e amigo e conhecê-lo “marcou-me”, indicou-me os “marcos” de que falou na “Carta a um Juvenil Individualista” que assinalam a nossa passagem pela vida, o fazer isto e não aquilo, o escolher do modo que é o nosso e que é, para nós, o justo, o bem, o belo da vida...

Dele aprendi que a Literatura deve "espelhar" a verdade de cada um, a ingenuidade criadora, original porque "sua". Deve ser Literatura Viva, como escreveu no 1º número da Revista 'presença' (10 de Março de 1927).
“Quando leio José Régio, sinto uma comoção especial. No ritmo e na força dos seus versos, parece-me ouvir, na lonjura da memória, a voz pausada e nítida. 

Posso imaginá-lo a passear na sala de aula, para trás e para diante, enquanto nos ditava uma retroversão para francês, cheia de construções difíceis. Conheço alunos que tiveram medo dele, que o achavam impertinente, superior, altivo, no contacto. Não foi essa a minha impressão nunca.

José Régio ‘viveu’ muito próximo de mim, não fisicamente porque a rua dos Canastreiros ficava longe da Boavista, mas ele não era apenas o meu professor do liceu, o Dr. Reis Pereira: era o amigo do meu pai desde há longos anos.
Portalegre
E eu “cruzava-me” com ele não só nas aulas, ou nas imediações do liceu, mas também nos cafés, nas esplanadas de Verão, nos “saraus” musicais que havia em nossa casa, nos sábados, para ouvir música clássica.” 
Capa de Júlio, "Poemas de Deus e do Diabo"

Os seus versos de "Poemas de Deus e do Diabo"- que releio sempre com a mesma angústia- trazem-me aos olhos os seus "Cristos exangues", de "carne humana" e a Dor do "Homem que mais perto esteve de Deus" - como dizia - e quase me fazem sofrer. 
Sandro Botticelli, "Cristo Morto"

O seu Cristo da "Quinta Feira Santa", um dos poemas que mais amo, O Cristo triste, humilhado e ausente, a caminho do fim, abandonado, dá-me sempre vontade de chorar. 
"Mas o que eu amo em ti, Cristo exangue,
É o que em ti é Dor, e assim a nós te irmana:
Teu sonho louco, o teu suor de sangue,
E a tua carne humana."
("Poemas de Deus e do Diabo" poema intitulado "Quinta Feira Santa", p.49)
O Cristo da Paixão, um desenho de Régio

E penso: o que terá sofrido o meu Amigo na sua solidão procurada?Tanto querer, tanta inquietação e tanta insatisfação! Ele o escreve: "Sou um desejo/que não tem satisfação." 
Escolho, ao caso, alguns versos desse seu primeiro livro. Este desenho a lápis de José Régio foi feito, numa das primeiras páginas em branco, do exemplar que ofereceu ao meu pai, em 1950.

                                                   ***
"...Quem me não deixa ser eu?
«Viver
«É, para mim, duvidar,
«Desvairar,
«Interrogar,
«Procurar-me,
«Torturar-me,
«Agarrar fumo nas mãos,
«E acenar a uns irmãos
«Que eu sinto por perto, e não vejo
«Por causa da multidão..."
(poema intitulado "Na Praça Pública",  "Poemas de Deus e do Diabo", 1ª edição, página 72)
***
III

"Terra do chão, tapa-me a boca!
- Terra do chão que eu piso aos pés...
Areias do deserto,
Areias  que subis no ar turbilhonando,
Cegai-me!
Prostrai-me,
Ventos que ides passando assobiando...
Ondas do mar que desabais
(Ah! o mar...)
Levai-me!
Estou fartinho de lutar,
Não posso dar mais."

(ibidem, "Ronda dos Braços Quebrados", p.79)

***
                 
        "Menino doido, olhei em roda, e vi-me
    Fechado e só na grande sala escura.
            (Abrir a porta, além de ser um crime, 
    Era impossível para a minha altura).

                     Como passar o tempo? E eu diverti-me
Desta maneira trágica e segura:
Pegando em mim, rasguei-me, abri, parti-me,
Desfiz trapos, arames, serradura...

Ah! meu menino histérico e precoce!
Tu, sim, que tens mãos trágicas de posse,
E tens a inquietação da descoberta!

O menino, por fim, tomba cansado,
O seu boneco aí jaz esfarelado,
E eu acho, nem sei como, a porta aberta!"

(ibidem, "Libertação", p. 75)

Marc Chagall, Le jongleur

sexta-feira, 14 de setembro de 2018

A LITERATURA POLICIAL E A MULHER




Sempre à procura de Literatura policial, descobri há tempos um livro organizado por Maria de Lurdes Sampaio e Gonçalo Vilas-Boas, ambos professores de Literatura Comparada (1).  Maria de Lurdes Sampaio regeu também a cadeira de "Literatura Policial", na Universidade do Porto.

Trata-se de um conjunto de textos sobre literatura policial composto de traduções de artigos de autores consagrados do género policial e estudiosos do mesmo.

A escolha é bem variada e vai desde Raymond Chandler e “A Arte simples do assassínio” (1944) ou a “Perspectiva filosófica sobre o romance policial” (1962) de Ernst Bloch, como, ainda, a “Filosofia da Série Noire” (1966) de Gilles Deleuze - até ao velho e famoso G. K. Chesterton e “Uma defesa das histórias de detectives” (1902).

Referem a obra de duas mulheres, Priscilla L. Walton e Manina Jones, que se debruçam sobre o problema da ‘mulher-detective’, num livro cujo título em inglês é bem sugestivo - “Does she or doesn’t she? The Problematics of Feminist Detection” (em português: “Sim ou não? A problemática da narrativa de detecção”, 1999).

Por motivos especiais devidos ao meu interesse pessoal pelo assunto, gostei do texto de Priscilla e Manina sobre a problemática da narrativa de detecção feminina. A mulher continua afastada do romance “hard-boiled” (termo intraduzível) americano, do romance duro, tipicamente masculino,  da figura de  Marlowe  ou de Sam Spade... 

É, de facto, pouco usada a figura da mulher-detective, nos autores americanos. 
As duas escritoras, Priscilla L. Walton e Manina Jones, focam esta recente proliferação das mulheres escritoras de literatura detectivesca  - apresentando em livro um estudo profundo e longo das mudanças de sociedade e históricas que implodiram esta popularidade – juntando divertidos textos das escritoras escolhidas. 
 Manina Jones, Prof Univ. de Ontário e Univ. de York

Do lado de cá do Atlântico, a realidade é um tanto diversa: há anos que existia a irreverente, curiosa e (aparentemente) suave Miss Marple, criada por Agatha Christie, escritora inesgotável e muito especial. A sua Miss Marple, observadora inveterada da natureza humana, é, porém, uma detective "acidental".
“Por acaso” surge um assassínio nas redondezas e é, relacionando as condições em que acontece e as atitudes dos suspeitos com o seu conhecimento da aldeia de Saint Mary’s Mead e da mente humana – igual em toda a parte - que ela consegue “detectar” o culpado.
Temos, ainda, o caso de Dorothy Sayers cujo herói é o sofisticado Lord Peter Wimsey, cuja mentalidade e qualidades de observação  são porém bastante femininas.
No entanto, desde os anos 70, escrevem Manina e Priscilla, explodiu, no mercado popular da ficção policial, um sub-género desse tipo de literatura escrita por mulheres e apresentando já uma mulher investigadora profissional. 

Does she or doesn’t she? The Problematics of Feminist Detection”, afinal?...

Impossível, por isso, não falar, das “mulheres-escritoras-policiais” modernas: as “damas do crime” - dos últimos decénios- do Reino de Sua Majestade Britânica. 
Refiro-me a Ruth Rendell (1930-2015) e a P.D.James (1920-2014), para mim as mais relevantes. E, também, ao “alter ego” de Ruth Rendell, Barbara Vine. 
Com protagonistas masculinos, é certo, mas contrabalançados por figuras femininas que têm o seu papel decisivo, na concepção e no desenrolar da história. 
P. D. James tem, aliás, em alguns dos seus livros, uma detective, Cornelia Gray,  que, aos 22 anos, "investiga" e resolve um crime ("Estranha Profissão Para uma Mulher", 2001 Europa-América).



Ruth Rendell (1930-2015) ficará para sempre ligada ao seu Inspector Wexford e ao ajudante Burden. 
O Inspector é um homem muito culto, sensível e humano. Com uma mulher tranquila, chamada Dora, e duas filhas Sheila e Sylvia. Que o enchem de problemas! Um mundo de mulheres, no fundo.

Mais recentemente, surge Ann Cleeves (1954) cuja figura de muitos romances é a Inspectora Vera - que na série televisiva da BBC chamou muito a atenção sobre a escritora.


As duas escritoras são Priscilla L. Walton e Manina Jones que focam esta proliferação recente do assunto das mulheres escritoras de literatura detectivesca apresentando um livro com um estudo profundo e longo das mudanças de sociedade e históricas que implodiram esta popularidade – juntando divertidos textos das escritoras escolhidas. (“Detective- Agency”).
***
(1) O livro intitula-se “Ficção Policial, Antologia de Ensaios Teórico-Críticos”, publicado pelo Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa e pelas Edições Afrontamento, Porto, 2012
(2) Priscilla L. Walton e Manina Jones, “Detective- Agency”, Mulheres re-escrevendo os romances policiais “hard boiled”  Does she or doesn’t she? The Problematics of Feminist Detection”...