terça-feira, 26 de abril de 2011

"Os Olhos de Jade", mais um capítulo...



Edouard Manet, retrato de Berthe Morisot


A sala estava fria, apesar da lareira acesa há tantas horas. Joan sentia-se gelada, não sabia o que dizer. A imagem da mãe pairava na sala.



"Sim, ele tem razão, estamos perdidos...", pensava Joan ao lembrar a frase de Gabriel.


- Ouve, Gabriel, não quero agredir-te. Percebo que tem sido muito penoso para todos, não devemos magoar-nos...


A voz soava fraca, sentia-se tão frágil.


- Por isso é que não podemos aceitar a morte da minha mãe como se fosse uma fatalidade, e ficar parados! Não sei por onde começar, claro, mas há-de existir uma pista!


-Mas se tu tiveres razão, por que motivo a assassinaram, Joan?


-Não sei. Não notaste nada de estranho? Pessoas que vieram, cartas que chegaram?


-Como queres que me lembre? O que é importante recordar? É absurdo...

Joan passou a mão pelos olhos, abanou a cabeça e suspirou:


-Tens razão, é absurdo... Nada disto tem sentido.


Calou-se, a ouvir a música.


-É linda esta música, Gabriel. Faz impressão pensar que está morta, magoa tanto. Tu ainda tocas piano?


- Oh! há anos que não toco...



Caillebotte, jovem ao piano


Calou-se.


Joan continuou:



- E a mãe tocava? Lembro-me tão bem de a ouvir quando era pequenina. Escondia-me detrás dos cortinados de renda, ou no jardim lá fora, com os joelhos bem apertados contra o peito, parecia que me doía tudo.



Berthe Morisot, o jardim



- Ela era tão importante para mim..., continuou.

Gabriel respondeu, pensativo:

Berthe Morisot, no lago
-Talvez tivesse mudado nos últimos tempos.


Olhava para a lareira.


- Tocava muito pouco. Agora é que reparo nisso. Pensativa. Tinha deixado os passeios no jardim. Pouco convidava as velhas amigas...


Borisov-Musatov, pintor impressionista russo, "Senhoras, passeando à tarde"


- Andava triste, fechava-se no quarto, escrevia. Estava sempre com papéis à volta...

-E onde estão esses papéis? A mãe mandou-me uma carta. Falava de coisas “horríveis” do passado. Tens ideia do que era?


- Do passado dela?

Gustave Caillebotte, "olhando para fora"



- Sim. E do pai. Talvez sejam uma pista.



Gabriel abanou a cabeça.



-Nunca me falou em papéis nenhuns...

- Onde estarão?, perguntou Joan.

- Não faço a menor ideia!



Joan disse, impaciente:

- Mas vamos procurá-los!


-Preciso de pensar... Há outras coisas.



Calou-se, e acrescentou, num tom mais calmo:

-E o Zurigo? Sabe mais do que julgamos. A tua mãe falava com ele. De África, dos amigos, das noites iguais aos dias, das marés. Sei lá que mais!



Hesitava.

-Na noite em que a Abigail morreu, passei a dar-lhe as boas noites. Ele estava sentado na cadeira, ao lado da cama.


Depois acrescentou, como se recordasse de repente:
-Ela não se sentia bem, tinha febre, queixara-se de dores. O Zurigo levou-lhe um chá.


-E depois?


-Quando abri a porta, ouvi-o: “Prometo, prometo...” E chamou-lhe “mãezinha”, como fazia nos momentos sérios.

-Sim, eu sei, eu sei.



Perguntou, triste:

- O que achas que seria?


-Não faço ideia...


-Não te lembras de mais nada?
-Não.


Joan insistiu:
-A Alice falou num jantar. Disse que a mãe estava muito nervosa. Quem é que veio jantar?


-Sim, houve um jantar. A tua mãe marcou-o, uns dois ou três dias antes de adoecer.
-Isso já é importante.



Gabriel continuou, devagar.


-Já tinha febre, disse-o à mesa, lembro-me. Por isso, pensámos que fosse paludismo. Nessa noite o médico deu-lhe um remédio. Mas não serviu de nada...


Pousou o copo e agitou as mãos, à sua frente, como se não as controlasse.


- Quando a vi...

-Foste tu que a encontraste? Eu não sei nada...

-Sim, fui eu.

- Gabriel, conta-me tudo! Precisas de desabafar!


Olhava para ele, ansiosa.

-Tinha os cabelos espalhados sobre o rosto, julguei que dormisse...


Gabriel suspirou:

- Estava morta...


- Deve ter sido horrível!

Acrescentou, como se pedisse desculpa da curiosidade:

- Sei que foi um choque tremendo, mas para mim é importante falar. Era a minha mãe.
~

- Eu percebo... não tens de que te desculpar.


- Gabriel, tem paciência... Sei que é doloroso, mas tens que pensar. Deve haver qualquer pista! Oh! Gabriel, Gabriel, é tão difícil.


-Sim, é muito difícil...


Ficaram calados um momento. Depois Joan levantou-se lentamente e disse:



- É melhor ir-me deitar. Vê se descansas, também. Não devia ser injusta, no fundo gostavas tanto dela como nós. Desculpa.



E, num impulso:

-Talvez ainda vamos a tempo de ser amigos...


Gabriel sorriu.

-Sim, talvez.


-Tanta coisa que aconteceu! Não julgues que sou só uma egoísta. Tenho tido os meus problemas como toda a gente. Foi bom conversar contigo...



Olhou para ele com tristeza, estendeu a mão, hesitando no gesto incompleto. Virou-se, mas, de repente, fixou os olhos no canto da lareira:


-Onde descobriste este candeeiro?



Era um candeeiro pequeno, pousado sobre a mesa baixa. A base, art nouveau, era uma figura de bronze, com um abat-jour de vidro fosco que formava uma cabeça de mulher em flor, com os olhos em jade, rasgados e oblíquos, pelos quais se filtrava uma luz difusa.


-Deve ter sido a tua mãe...


Olhou para o candeeiro, com atenção.

-Sim, foi ela. Gostava muito do jade, comprava anéis sempre que os via. Dizia que o David tinha olhos de jade. Não sei se é jade ou só vidro coalhado da mesma cor...


-Sim, o pai tinha olhos verdes. Da cor do jade. É considerado o símbolo da virtude. Sabias?


-Será...



Parecia distraído, desinteressado.

-É bonito. Mas não estava cá da última vez...


-Não posso jurar. A Abigail comprou-o numa loja de antiguidades em Londres.

Parou, tentando recordar.


-Sim. Trouxe-o uma tarde e foi pô-lo ali na mesa. Acendia-o à noite, quando se sentava no sofá.

-Por que seria?


- Não sei. Às vezes, via-a a olhar para ele.



Joan tentou pegar-lhe. Apesar de pequeno, era pesado.


- “O brilho nos olhos de jade”...


Pensava na carta da mãe.


-É estranho... A base é de bronze?


-Penso que sim.


Joan suspirou e acabou por dizer, baixinho:

-Tudo me parece esquisito hoje. No fundo, é só um candeeiro...


Pegou numa caixinha de chocolates que estava na mesma mesa e tirou um.


-Uma coisa doce, antes de dormir... Queres um, Gabriel?

-Oh! Não, Joan, nem lhes posso tocar, sou alérgico! A tua mãe é que adorava os chocolates, não resistia...


-Eu sei, sou como ela.

Sorriu.


- Boa noite...

Virou-se, para trás, já à porta:

- Podes emprestar-me o carro? Queria dar umas voltas, antes do Michael chegar. Talvez vá a Brighton para desanuviar...



- Usa-o à vontade, eu não vou precisar. Começaram as férias do Natal.


-É verdade, disse Joan, está a chegar o Natal.

- Que Natal..., murmurou Gabriel.

- Tens razão. Vê se dormes...


-Boa noite. Obrigado por teres falado. E por me teres ouvido. Talvez não seja tarde para sermos amigos...


3 comentários:

  1. Um sorriso.
    Veio mesmo a calhar esta história, é bonita, parece uma cantata, desenvolve-se prendendo o leitor.
    Não sei porquê mas foi bom abrir esta história!
    Beijinhos.

    Um obrigada especial. :)

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  2. Delicioso!!
    Este mistério está a "pôr-me em pulgas" :)
    Mas o que é melhor é que a história vai além do mistério... e é tão fluida... tão aparentemente simples...
    Gosto muito da sua maneira de escrever!

    Abraço

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  3. "O jade é um armonizador de energias, tem um efeito calmante e suaviza as emoções, sobretudo o jade verde" ( Wikipedia)

    Sei que o teu falcão interior feito de carne e ânsias de voar, nunca ficará prisioneiro dessa pedra lindíssima.

    "Boa noite. Obrigada por teres falado. E por me teres ouvido. Talvez não seja tarde para sermos amigas..."

    Bonito. Beijinhos

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