Kandinsky, Improvisação
“Joan subia os degraus devagar apoiada no corrimão. Era muito tarde. 'Que noite horrível', murmurou para si.
Lá fora, o vento soprava, ouvia as rajadas da chuva baterem com força nos vidros. Imaginou as árvores agitarem-se e ouvia as portadas de madeira das janelas rangerem. Tinha medo? Não. Estava sozinha e sentia-se apenas muito cansada. Equilibrava um copo de leite quente na mão direita e ia olhando para os quadros da parede ao lado, pinturas modernas que a mãe comprara.
Ouviu a porta da rua abrir-se, nas suas costas, e fechar-se outra vez, devagarinho. Estremeceu quando se voltou.
Van Gogh, Casas em Auvers
-Quem é? Ah! és tu, Gabriel! Assustaste-me!
- Ainda acordada, Joan? É tarde. Como te sentes?
- Ia-me já deitar, mas desço um bocadinho para falar contigo.
Joan desceu as escadas, passou em frente dele, e dirigiu-se ao salão. Gabriel começara a tirar a gabardine, o cachecol e sacudia a cabeça molhada. Os cabelos dele tinham embranquecido naqueles dias, e olheiras escuras cercavam os olhos azuis.
Joan acendera as luzes e, ajoelhada em frente da lareira, tentava reavivar o lume. Pouco a pouco, as chamas brilharam. Apoiava-se agora ao rebordo de mármore da lareira e ia bebendo o leite.
- Faz bem o leite quente, disse, sem saber porquê.
Sentia-se melhor. Era-lhe agradável ver Gabriel. A solidão pesava-lhe naquela noite gelada.
-Está a chover, ainda? Queres comer alguma coisa? -perguntou.Joan acendera as luzes e, ajoelhada em frente da lareira, tentava reavivar o lume. Pouco a pouco, as chamas brilharam. Apoiava-se agora ao rebordo de mármore da lareira e ia bebendo o leite.
- Faz bem o leite quente, disse, sem saber porquê.
Sentia-se melhor. Era-lhe agradável ver Gabriel. A solidão pesava-lhe naquela noite gelada.
-Não, obrigado, jantei em Brighton. Não chove, mas o nevoeiro é tão cerrado, que se sente a humidade nos cabelos, no corpo. Talvez tome uma gota de whisky. Isso agradeço-te.
E sentou-se no maple de couro.
- Com gelo ou simples?
- Com gelo.
Joan preparou a bebida e levou-lha. Ficou a olhar para ele. O cabelo, que recordava de um tom de loiro escuro, estava cheio de fios brancos. Tinha os olhos claros, sem expressão, fixos na lareira. A pele flácida e as rugas davam-lhe um ar de palhaço triste. Teve pena dele.
- Tens a cabeça molhada. Aquece-te, não te vás constipar...
- Não faz mal.
Encolheu os ombros.Joan dirigiu-se-lhe quase com raiva.
- Ouve, Gabriel, quero falar contigo. Preciso de falar contigo.
- Nunca quiseste falar comigo. Empurraste-me sempre. Não gostavas de mim.
- Tinha ciúmes de ti. Achava que a mãe devia ser só minha. E tu vivias com ela, todos os dias, enquanto eu estava longe. Sem ela...
- Não querias viver ao pé de nós. Fugias de casa...
Renoir, mãe e filha no jardim
- Tens razão, fugia. E precisava tanto da mãe. Ela que era sempre doce, alegre. Que cantaa. Sabe-se lá o que sofria! Gostava de cores quentes. Adorava o vermelho!
- Sim, alegre...
-Fora tão difícil voltar, vir viver para aqui. Sabes que não me adaptei, estranhei a terra, tinha frio!
Olhava as chamas, pensativa:
-Era tudo tão diferente do calor de África e da simplicidade dos meus amigos. Custou-me tanto quando cheguei cá...
Renoir, senhora ao piano
Parecia absorta, ia falando mecanicamente.
- O colégio foi uma tentativa de entrar num mundo novo, meter-me bem lá dentro. Para me salvar, precisava de mergulhar de repente num sítio cheio de gente da minha idade, de ter amigos outra vez. O pai tinha-nos abandonado.
Gabriel parecia estar noutro mundo, sem a ouvir.
-Tu gostavas dela?...
Joan olhava-o de lado, atenta.
-Gostar?
- Sim. Gostavas dela?, insistiu Joan.
Gabriel dirigiu-se à estante, escolheu um disco e pô-lo a tocar.
- A tua mãe adorava esta música. Tocava-a tantas vezes. Conheces? A Appassionata, de Beethoven, tocada pelo Rubinstein. Foi o último recital dele, dedicado a Israel. Ouvia a sonata vezes sem fim. É o que me resta dela... E a imagem dela, ao piano.
-Mas por quê especialmente esta gravação?
-Ele era um óptimo executante, e é uma gravação perfeita.
Renoir, a primeira saída
- Lembro-me de a mãe me levar com ela a um concerto. Acho que era Chopin...Eu ia excitadíssima.
Gabriel voltara a sentar-se. A música ouvia-se, baixinho. Começou a falar devagar, fixando as chamas da lareira.
-Perguntas se eu gostava dela. A Abigail? Acho que a adorava.
Calou-se, sem desviar os olhos das chamas.
Manet, o repouso
Olhou para Joan. Apontou o gira-discos.
- A "Appassionata". Ouço o disco constantemente, e penso nela. Vibrante, como a música, cheia de paixão em tudo. Podia contar com ela sempre.
Disse, com ternura:
- A tua mãe só gostou do teu pai e nunca precisou de o substituir. Muito menos comigo.
Hesitou, e disse:
- Sabes que as mulheres não me atraem. Sou assim. A tua mãe casou comigo... Enfim, casámos, para ter uma aparência normal. Um casal...
Hesitou.
- Podia contar com ela, sempre.
Joan fixava-o, num misto de curiosidade e tristeza.
- Convinha aos dois, era uma forma de respeitabilidade. Uma mulher sozinha é sempre uma mulher sozinha. Protegíamo-nos um ao outro.
Olhou para Joan, e continuou:
- Sabes o que isso era para mim? Com as minhas fragilidades?
- Todos temos as nossas fragilidades.
Sem a ouvir, Gabriel continuou:
- Ela era a minha segurança, o meu apoio...
Riu, amargamente.
- Além disso, eu passei a ter um 'estatuto'! Numa terra de província, quer dizer, em toda a parte, no fim de contas, o que conta são as aparências. Éramos casados, eu era casado!Já ninguém se lembrava que eu era esquisito, um 'gay'- como hoje dizem...
O tom tornara-se seco e ressentido.
- A maior parte das pessoas só liga às aparências. O que os outros são por dentro, a verdade deles, não lhes interessa.
Riu, amargo.
- Nem a querem ver essa verdade. Toda a gente fala, fala. Todos querem é ouvir-se, ou ser ouvidos, falar de si, dos seus problemas, das suas dúvidas, das suas crenças, de si... O “outro” não existe.
E acrescentou:
- Ou existe para magoar...
Joan protestou:
- Para que serve isso agora? “Palavras, palavras, palavras” como diz Shakespeare.Claro que tudo é egoísmo! Também sou uma céptica, não julgues que és só tu.
Olhou-o, séria:
- É difícil amar os outros, não é?
Gabriel fixou-a, surpreendido. Joan estendeu-lhe a mão e disse, suavemente:
- Desculpa, interrompi-te!
Gabriel, como se retomasse o raciocínio anterior, disse:
- É isso... Poucas pessoas sabem ouvir, ou interessar-se pelos problemas dos outros! A tua mãe ouvia.
Parecia comovido.
- Reservada, discreta, silenciosa, ela ouvia. A sua presença acalmava, e bastava uma palavra dela para te sentires bem. Não falava de si. Era uma forma de pudor, não sei explicar. Como se isso não fosse o mais importante...
- Eu sei isso muito bem, Gabriel. A mãe ouvia tudo o que dizíamos!
- Calava-se. Esquecia-se de sie. “A superioridade aristocrática do silêncio”, de que falava um escritor cuja frase nunca esqueci. Há grandeza nessa atitude!
Sacudiu a cabeça,pensativo:
- Sim, tinha essa superioridade! Deu-me tanto. E perguntas-me se a amava...
Joan grita, de repente, como se não aguentasse mais aquele peso:
- Mas assassinaram-na, Gabriel, e tu deixaste!
Gabriel ergue a voz, descontrolado:
- Não acredito! Não pode ser, Joan!
Joan teve pena dele. De facto, ele não podia ter culpa do assassínio da mãe. Amava-a, tanto como ela a amava.
Levantou-se e abraçou-o. Lá fora o vento zunia. Deixara de chover, entretanto."
(in "Os Olhos de Jade", M.J. Falcão, romance inédito)
MJ Falcão,
ResponderEliminarMuito bonito, profundo e um manacial sobre as relações entre pessoas. Gostei e ouve uma frase que me ficou a tilintar: "a superioridade do silêncio". O silêncio é precioso. Todos falamos um pouco ou muito de nós, mea culpa, perdemos o sentido dos outros.
O silêncio é seguro.
Estou a divagar... um écran, uma janela faz destas coisas.
Vou pensar!
Beijinhos e bom Domingo!
Parabéns pelo romance inédito.
MJ
ResponderEliminarEscreve tão bem!
Não sabia deste seu "Os Olhos de Jade". Terei de "vasculhar" melhor o baú do seu blogue :)
bjs
Gostei deste seu texto.
ResponderEliminarDiz aí grandes verdades...
Cap.8, diz. Vai-nos deixar ler mais?
Um bom Domingo
Isabel
Obrigada!!
ResponderEliminarJá "publiquei" aqui uns 13 capítulos, acho. Este alterei-o porque quis juntar a música do youtube, com o Rubisntein...
Ando para o publicar...mas ninguém o quer!
Hahaha! C'est la vie...
13 capitulos?!!
ResponderEliminarBom, vou começar a vasculhar...
Já aqui venho há uns meses e não me lembro de ver nenhum.
Estou enganada?
Vou descobri-los todos.
isabel
Gostei muito.
ResponderEliminarVou procurar os outros capítulos.
um beijinho
Gábi