terça-feira, 5 de abril de 2011

Um dia, tinha eu dezasseis anos, ofereceram-me um livro...


Giovanni Boldini, mulher a ler no jardim


imagem de "Blade Runner"


Um dia, tinha eu dezasseis anos, ofereceram-me um livro, do poeta Aragon, "Elsa".

Nunca esqueci um poema -o meu preferido entre todos: Chanson Noire.


Ainda hoje, depois de tantos e tantos anos, sei de cor as primeiras estrofes...

Berthe Morisot, retrato de Julie

“Mon sombre amour d'orange amère


Ma chanson d'écluse et de vent


Mon quartier d'ombre où vient rêvant


Mourir la mer

Cadorin, barco em S. Trovaso


Mon beau mois d'août dont le ciel pleut


Des étoiles sur les monts calmes


Ma songerie aux murs de palme



Où l'air est bleu.”


Ontem reencontrei o livro, desbotado pelo tempo, muito gasto na sua encadernação vermelho escura, com um filetezinho dourado à volta da capa.


Gasto de tantas viagens, mudanças, climas húmidos, calores tórridos onde nem sempre funcionava o ar condicionado.


Mas de viagem sempre comigo.


Gostaria de tentar uma tradução destes versos, para que me entendam melhor...


Ó quão difícil é traduzir e, ainda para mais, uma poesia. Intraduzível no seu “total” de sons, evocações, duplos sentidos...


Dizia Boris Pasternak (grande tradutor) que é o sentido do poema que se deve “apreender” acima de tudo e depois dar o equivalente – ou o mais próximo - do que a nossa língua terá para voltar a dar essa emoção sentida, com palavras “nossas”...

Tento:

“Meu sombrio amor de laranja amarga


Minha canção de comportas e de vento


Meu bairro de penumbra


Onde o mar, sonhando, vem morrer...”



Meu doce mês de Agosto de céus chuvosos


Estrelas nos montes calmos


Meu pensamento nas paredes de palmeiras


Onde o ar é azul.”


A cor, os cheiros, os ruídos que envolvem o momento em que se leu o poema na língua original não são os mesmos.



Hoje as palavras novas não correspondem a nada do que se sentiu.


A laranja, o cheiro húmido da maresia, o vento e os barcos, o gosto amargo, a frescura do canto daquele bairro.


Depois.


Outro momento. Diferente. O momento em que se deixa para trás o porto seguro, a terra firme, os sítios conhecidos... Algumas certezas...


galáxia visível com o telescópio Hubbles


E se parte para outra aventura. Toda nova.




Para mergulhar nos abismos desconhecidos, nas espirais de luz e sombra, da alegria e da dor, na penumbra e céu azul, em que o vento sopra com mais força...

E onde, tenteando, hesitando, tacteando, se vai, de olhos vendados, à procura de um outro mundo. Em que se quer acreditar.


Assim foi, quando tinha dezasseis anos.


No ano seguinte, estava casada. Com a pessoa que me ofereceu o livro do Aragon...



"Chanson noire", de Aragon


Mon sombre amour d'orange amère



Ma chanson d'écluse et de vent


Mon quartier d'ombre où vient rêvant


Mourir la mer



Mon doux mois d'août dont le ciel pleut


Des étoiles sur les monts calmes


Ma songerie aux murs de palmes


Où l'air est bleu



Mes bras d'or mes faibles merveilles


Renaissent ma soif et ma faim


Collier collier des soirs sans fin


Où le coeur veille



Dire que je puis disparaître


Sans t’avoir tressé tous les joncs


Dispersé l’essaim des pigeons


A ta fenêtre



Sans faire flèche du matin


Flèche du trouble et de la fleur


De l’eau fraîche et de la douleur


Dont tu m’atteins



Est-ce que qu'on sait ce qui se passe


C'est peut-être bien ce tantôt


Que l'on jettera le manteau


Dessus ma face



Et tout ce langage perdu


Ce trésor dans la fondrière


Mon cri recouvert de prières


Mon champ vendu



Je ne regrette rien qu’avoir


La bouche pleine de mots tus


Et dressé trop peu de statues


A ta mémoire



Ah tandis encore qu’il bat


Ce coeur use contre sa cage


Pour Elle qu’un dernier saccage


Le mette bas



Coupez ma gorge et les pivoines


Vite apportez mon vin mon sang


Pour lui plaire comme en passant


Font les avoines



Il me reste si peu de temps


Pour aller au bout de moi-même


Et pour crier-dieu que je t'aime


Tant


Obras Completas


Louis Aragon, Elsa, Gallimard, 1959, Chanson Noire, pgs 41-43



4 comentários:

  1. Muito muito lindo.

    (pena não ter traduzido todo o poema).

    Um beijinho
    Isabel

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  2. É cara amiga, hoje precisava de ler e como lí coisas belas, aqui e no blog da Manuela - PAZ.

    5 bjs e não mudes nunca.

    Cozinha dos Vurdóns

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  3. Também li Aragon, mas com dezoito anos. Li na nossa língua. Vim a casar com a pessoa que mo deu a conhecer, mas não era tão nova.
    MJ Falcão que história tão linda!
    Beijinhos.

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  4. Não conhecia. Gostei do poema. Gostei da tradução.
    De facto não é fácil traduzir poesia. A Alma, a essência do poema perdesse um pouco.
    Um abraço MJ!

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