terça-feira, 26 de outubro de 2010

Marraquexe, a vermelha...



Muito se tem falado de Marraquexe...
Talvez seja uma das cidades marroquinas mais conhecidas, mais faladas, mais cheias de mistério.

Uma das cidades imperiais –makhzen- de Marrocos, cidade santa e de peregrinações. Certo. Rodeada das altas muralhas do século XII que encerra dentro delas a cidade velha.
Mas sobretudo sítio de grande movimento, beleza, jardins, perfumes.

A mim, aquela terra encantou-me desde o primeiro dia.

A imagem da praça Jemaa-el-Fna é inesquecível. Tem uma cor especial.

Tem algo das “mil e uma noites”, ou das “histórias das arábias” que li –lemos todos...- na adolescência, com os derviches, os encantadores de serpentes sentados no chão de pernas cruzadas e olhar brilhante, ou os mágicos, os adivinhos, os “ladrões de Bagdad” que chegavam ao cair da noite.


Ainda, os contadores de histórias cuja voz melodiosa, feita de entoações diferentes, vão enchendo de imagens os ares.

Fixando o olhar nos ouvintes postados em círculo à roda dele. Apontando um dedo magro esticado, ora para um, ora para outro, vai perguntando coisas numa língua que não entendo. Os risos, meio assustados, são a resposta. Revelam receio e prazer ao mesmo tempo, sente-se a expectativa de quem escuta avidamente o conto, sem perder o narrador de vista. Vê-se na curiosidade dos sorrisos contidos das mulheres, na fila atrás, que puxam uma ponta do véu para tapar a cara
.

A noite descera por detrás dos oito séculos da Koutoubia, e do seu alto minarete, onde o pôr do sol era cada tarde diferente e sempre belo, nos tons rosados, vermelhos e nas nuvens escuras que apareciam no céu.

Impressionava pensar que em tempos fora ali a praça dos supliciados e que era normal, na madrugada cinzenta, ver as cabeças cortadas dos desgraçados espetadas em estacas...

Subia na noite o fumo das tendas onde se começara a cozinhar, os cheiros fortes das espetadas de quadradinhos de borrego grelhados com cominhos.

Podia ficar tempos perdidos a observar aquela praça...

Girava no meio das gentes que enchiam o espaço da Jemaa-el-Fna, seguia o fluxo da multidão, a ver o que comiam. Sopa de grão ou lentilhas, bem temperada de especiarias picantes, e quente, que se chamava harira, os merguez, pequenas salsichas de carne de borrego, ou as saladas.


Um nunca acabar de tendas com frutas secas de todos os tipos, amêndoas, pistáquios, tâmaras.

Ia de barraca em barraca, como nas feiras da minha infância, a “petiscar” um pouco de tudo o que havia, até chegar em frente dos grandes alambiques, bem areados e brilhantes como ouro acobreado, de onde saía um chá vermelho, forte e perfumado, que parecia puxar-nos a alma para cima de dentro das entranhas, trazendo-nos uma força e um calor maravilhosos na noite fria.

Nunca percebi o que havia dentro dos alambiques mas a bebida cheirava a canela, curcuma e sei lá a que mais.

Seguia, parava fascinada, continuava outra vez.

Num dos lados da praça, o lado norte, ficava a entrada do souk, no labirinto das ruas da Medina.

Nesse extremo da praça havia os sumos de laranja onde costumava ir de manhã beber logo um copo enorme de sumo, acabado de espremer, que me sabia bem. Detrás das pilhas de laranjas, esteticamente arrumadas, espreitava o sorriso de uma mulher gorda, envolvida em roupas azuis.

Ali perto, na noite de Marraquexe, iluminada pelos lâmpadas de acetilene poisadas no chão, vendia-se tudo. Havia os vendedores de amuletos, remédios em caixinhas de todos os feitios -ou seriam poções mágicas?-, de dentaduras de plástico de vários tamanhos, braceletes, bugigangas, pantufas de ponta levantada...

Por vezes, pelo meio das pessoas entretidas, aparecem os vendedores de água, com os chapéus redondos e bicudos e campainhas que tocavam para os anunciar.

Um grupo de cegos, em cadeirinhas baixas, estendia aos passantes uma bandeja, pedindo. E a moeda dada passava de bandeja em bandeja até ao último que a guardava num saquinho.

Outras vezes eram grupos “gnawa” que vinham dançar, ou apenas tocar os tambores, alaúdes, agitando-se num ritmo acelerado e frenético que lembrava o dos feiticeiros.

Juntavam-se grupos de mulheres e homens, em volta do encantador de serpentes, acocorado no seu tapete colorido, com o turbante cor de turquesa e a djellaba amarela. As serpentes moviam-se, coleantes, de escamas prateadas reluzindo na pele negra, macia como seda, entre os dedos, pintados de henné, do homem do turbante.

Encolhia-me, mas os olhos continuavam fixos no réptil e na língua fina que saltava de repente como movida por uma mola. Recuava, então, e todos os observadores recuavam comigo. Voltava a aproximar-me, atraída pelos gestos lentos daquelas mãos avermelhadas.

Cansada, já tarde, ia sentar-me na esplanada do “Café de France”, mesmo lá no último andar, a ver o espectáculo que ia durar a noite inteira. Devagar, ia sorvendo uma tigela de “harira” escaldante.

Amanhã tudo recomeçaria porque o encanto da Jemaa-el-Fna renova-se todos os dias, de manhã à noite, no seu turbilhão de gentes, de barulhos, de cheiros e de cores.
Música e dança Gnawa em Marraquexe:

2 comentários:

  1. Sempre pensei que os pobres sabem viver, "puxam a alma mais para cima, dão mais força e mais calor".
    Oxalá algum dia a pobreza desapareça, mas que isso não converta o planeta numa massa homogénea e desumanizada, que não acabem nunca os contos que fizeram dizer ao rei Schahriar:"...depois de ter-te escutado estas mil e uma noites,saio com a alma profundamente transformada e alegre e embebida do gozo de viver". Beijinhos

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  2. Eu tbm tenho recordaçoes mt boas do Marocco, do Jardim de Majorelle com a sua explasao de cores, mais tbm d'aquilos cores de Atlas eda pequena "bomboniera" que è a cidade de Taroudant. Fostes aì tbm? Acho inesquecivel (fui para là no 1986) e talvez fosse o tempo de y-regresar...
    I tuoi post sono sempre bellissimi MJ!
    Bye&besos

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