quarta-feira, 20 de outubro de 2010

O Mito de Ulisses...E os bárbaros



Francesco Primaticcio, Ulisses e Penélope

Não sabia que havia um mito de Ulisses. Li-o num artigo, que referia esse "mito".

Na Odisseia, Homero conta a longa jornada de regresso a casa de Ulisses, rei de Ítaca, depois do final da guerra de Tróia. Jornada que demora dez anos, nos quais viaja, conhece, arrosta perigos, ataques, um naufrágio, durante os quais Penélope, sua mulher, o espera...

Seria então o mito do eterno viajante? Do navegador errante? Tinha de ser...

Pensei nas viagens maravilhosas que o herói viveu, viajando, anos e anos, atravessando mares cheios de mistérios desconhecidos, as múltiplas experiências vividas, o perigo afrontado, desde o naufrágio à Maga Circe, que os quer transformar em porcos, à deusa Calipso, ao gigante Cíclope.

E as sereias que o atraem para o fundo do mar. Querendo tudo conhecer da vida, Ulisses manda os outros mareantes encher os ouvidos de cera e pede que o atem ao mastro do navio: para saber, para poder "ouvir" o canto que entontecia os marinheiros e os fazia deitarem-se ao mar e afogarem-se...

Herbert James Drafer, Ulisses e as Sereias


Lembrei Homero e a magnífica capacidade de contar, de manter o leitor (ouvinte, pois que era "literatura oral") preso, na expectativa, à espera de saber o que vem a seguir.
O poder da palavra e da imaginação. As descrições de Tróia a arder, dos fugitivos vencidos, as emoções dos que sofrem, dos que venceram...

Tudo estava já em Homero e nos clássicos gregos, na Grécia Antiga, nos seus trágicos, na comédia. A profundidade dos sentimentos, a ideia de um dever, a consciência de um direito.
Quem foi mais longe do que eles?

O artigo referido era um artigo muito interessante, e foi lá que “descobri” o tal mito de Ulisses...
O articulista referia-se a um grande jornalista, Eugenio Scalfari, jornalista e escritor italiano, fundador do jornal
La Repubblica.

Passava-se num Festival, em Pordenone, na alta Itália, onde fora convidado para falar do seu livro “
Per l’alto mare aperto” (Einaudi, 2010).

A dada altura diz ele:
É importante retomar o sentido da viagem e do mito de Ulisses, que significa “manter alto o valor do conhecimento”.

Então é "manter alto o valor do conhecimento"!

Voar mais alto.

Como Galileo Galilei afirmando o seu conhecimento, frente à Inquisição, defendendo a sabedoria, as conquistas do saber. Ou Giordano Bruno, queimado por essa mesma Inquisição que desprezava o "conhecimento" desde que não enquadrado nos seus estreitos limites religiosos.

Galileu, por Cristiano Banti

A estátua de Giodano Bruno, no Campo de' Fiori, em Roma

Antes explicara que hoje teme que se “feche uma época”, se abandone o passado “habituados a viver esmagados pela pressa premente do presente”, entregando o esforço do nosso intelecto a “máquinas”.

Kandinsky, Composição

É urgente reflectir atentamente sobre certos problemas, insiste. Quais? O risco de perdermos a língua que falamos, as palavras que têm significados, e que correspondem ao nosso intelecto.

Segundo Scalfari, corremos o risco de “embarbarecermos”: quer dizer, “ficarmos bárbaros”!
Usando um vocabulário reduzido, elementar, primário, "esquelético" -quase reduzida a sons apenas, a sinais cabalísticos nos sms- perdemos certa capacidades...

Uma nova geração que chega e fala uma linguagem totalmente diversa? Pode ser.

Mas falar desse modo reduzido, necessariamente pobre, é para o autor “um processo vergonhosamente corrompido”.

Fala da língua inglesa hoje mundialmente falada. Mas falada como?

Voltamos ao “bárbaro” e ao “esquelético”: existem ainda meio milhão de palavras na língua de Shakespeare, segundo estudos feitos em Oxford. Dessas, são usadas normalmente ainda 10.000; para falar na internet ou
sms, usam-se apenas 1.500. Por cá não sei o que se passa, mas deve ser idêntico...


Continua Eugenio Scalfari:

“O vocabulário reduziu-se às necessidades primárias, sentimentos básicos, à maneira dos títulos das notícias”.

Grave. Perigoso. Porque essa forma de falar “esquelética” suscita também pensamentos igualmente esqueléticos, elementares.

Daí que seja fundamental e urgente “
combater aqueles que inquinam os valores da modernidade verdadeira”.

E retomar...

Retomar o quê? O mito de Ulisses!

Como diz Eugenio Scalfari:

É importante retomar o sentido da viagem e do mito de Ulisses, que significa manter alto o valor do conhecimento”.

Citando (
livremente) Santo Agostinho, digo eu:


“A vida é um livro, quem não sai do mesmo sítio (não viaja/ não aprende) não lê mais do que uma página ...”

Deixo-vos com uma canção veneziana (em dialecto veneziano) de Alberto d'Amico: "Arriva i barbari" ( e outra versão mais moderna a seguir...)...


3 comentários:

  1. "Retomar","combater"...
    Estamos a viver uma revolução cultural cujas consequências certamente não veremos já nem tu nem eu, apesar de que tudo vai a uma velocidade de vertigem.Internet é um meio incrível de acesso a toda a classe de informação, à cultural também, mas já se sabe que a cultura sempre foi de elites, e mais agora, no mundo das pressas.
    O importante é que continue sempre a ter quem a cultive e a proteja.Beijinhos, gostei muito de tudo

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  2. Tens razão... Mas não podemos deixar de "combater", insistir, não como "velhos do Restelo" retrógadas mas com a nossa "curiosidade" de eternos "renascentistas" renitentes...continuando à procura do saber, do melhoramento do Homem...
    beijinhos

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  3. Um Post muito bem escrito, que poe o accento ao que se passa no nosso tempo e sem banalidade. Acho que o nosso problema nao é tanto aquilo de ter novos medios de comunicaçao mas é sobretudo causado da nossa falta de fazer exercicios de pensamento critico quando encontramos algo que nos interessa. Dobbiamo tornare a imparare a fermarci a riflettere.
    Bye&besos

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