terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Para a minha amiga Natália: a companhia eterna de Chopin!

A tristeza de quando um amigo se vai, é grande e o consolo é pensar que não sofreu e que está algures em paz… Talvez a Natália tenha partido do seu Sabugal para uma estrela longínqua, a meio do espaço infinito. 

Van Dongen, Estrelas

O Sabugal, o Largo, o Castelo, a Casa do Castelo -que tanto amou e tão bem dirigiu- e os Amigos ficam mais sós.




a Casa do Castelo



Para a Natália Bispo, que morre jovem, uma música pura como ela foi.  



sábado, 27 de dezembro de 2014

Foi um ano fantástico? Não, claro que não...

 Passou o Natal, vem aí o novo ano. Foi um ano fantástico este que finda? Não foi, não. 

Houve mortos a mais, guerras a mais, pobreza a mais, humilhações a mais, mulheres violadas a mais, mulheres assassinadas a mais. 
 perseguições e fome (Iraque e o EI)

Houve inundações, tufões a mais, mortos sempre e sempre, migrações forçadas, abandono, fome. Tanta tristeza e desilusão… Tanto momento difícil!

 fome e abandono na Somália

Ou, apenas, alguém que vimos olhar para as montras, nos “shoppings” cheios de balões e de luzes, alguém que não pode comprar nada ou paga uma pequena coisa e fica de olhos presos nas outras que lá ficaram, e que não pode comprar... 
E não me venham dizer que as “pessoas compraram de mais e agora acabou-se”! Não é nada disso. As pessoas foram "empobrecendo" cada vez mais, neste ano que passou. E a culpa não é delas.
Consumir tornou-se um vício de todos e cada um pode o que pode, mas tem – como os outros- o desejo de “desejar" ter. "Ser" é mais importante do que ter? Claro. Quando se tem... 
E para apreciar o "ser"...bem, para isso, tem de se ensinar o que é “ser”… E quem sabe o que é "ser", realmente?
O desânimo bate-me à porta, quer entrar, diabinho terrível! Vou desistir de gostar da vida? Ou de acreditar nos outros?


Não… Se eu deixar de acreditar, morro!
E fico a pensar, para enganar o bichinho que me quer entristecer, fico a pensar que há a contemplação, a beleza e a generosidade das pessoas. 
Porque, no meio de tanta desgraça, houve “justos” que deram a sua ajuda, que protegeram os que eram perseguidos e foram capazes de ir para a rua dar de comer aos que tinham fome e dar-lhes agasalho e falar com eles. 



Por isso não desisto de acreditar!
A beleza é a coisa mais simples do mundo. A beleza está na vida. Na generosidade de alguns. No olhar de ternura de uns e na compreensão de outros...
Não vamos desistir! O ano que vem vai ser melhor! Porque nós queremos!
Bom Ano 2015!

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Um "conto de Natal" diferente...


Sandro Boticelli, Madonna del Melograno

Hoje dia em que o Natal terminou pus-me a pensar no que este momento significa- se é que significa ainda alguma coisa neste mundo egoísta e material.

Porque o Natal, para mim, é o nascer de uma criança nova em cada um de nós. Ou deveria ser. Porque, assim, mesmo sem acreditar em Deus, seria o renascer da esperança.
Cada ano, um novo Menino Jesus nasce – ou deveria nascer- em cada um de nós. 
Botticelli, Madonna del melograno (pormenor do menino)

E logo queremos que ele seja o “nosso” menino, o que está dentro de nós e não cresceu, o que está abafado tantas vezes, prisioneiros que somos dos nossos egoísmos e indiferenças; dos nossos calculismos e impotências; das nossas frustrações e esperanças desiludidas.

E cada um tem o Menino Jesus que “é”, e essa esperança em algo que se quer ser -de melhor- renasce todos os natais.

Este ano 'descobri' dois meninos Jesus de que gosto. Um é o menino Jesus dum presépio de Estremoz que me acompanha há muitos anos. Deitado de lado nas palhinhas e acompanhado por um galo e duas galinhas. E, pertinho dele, estão duas pombas brancas. 

E eu penso, a sonhar com a vida que aquele Menino quando se aborrece de estar naquele berço divino sai da cama e vai dormir para o chão!

O outro “meu” Menino descobri-o num poema de Fernando Pessoa: o menino Jesus que um dia foge do céu… 
E este menino singular de que fala o poeta queixa-se da vida que tinha no céu, queixa-se de Deus e do Espírito Santo, a "única pomba estúpida"… e decidiu fugir!  Tal como o outro Menino fugia da cama de palhinha. Aqui vos deixo uma parte do poema e as imagens que é essencial ler inteiro!

"Num dia de fim de primavera/tive um sonho como uma fotografia/Vi Jesus Cristo descer à terra,/ Veio pela encosta de um monte/Tornado outra vez menino/A correr e a rolar-se pela erva/ E a arrrancar flores para as deitar fora/ E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu,/ Era nosso demais para fingir/de segunda pessoa da Trindade./No céu era falso tudo, tudo em desacordo/ Com flores e árvores e pedras,/No céu tinha que estar sempre sério/E de vez em quando de se tornar outra vez homem./ E subir para a cruz, e estar sempre a morrer/Com uma coroa toda à roda de espinhos/E os pés espetados por um prego de cabeça. 

(...) Um dia que Deus estava a dormir/ e o Espirito Santo andava a voar,/Ele foi à caixa dos milagres e roubou três,/ Como primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido./Com o segundo criou-se eternamente homem e menino./Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz./ E deixou-o pregado na cruz que há no céu/ e serve de modelo às outras./ depois fugiu para o sol/ e desceu pelo primeiro raio que apanhou./ Hoje vive na minha aldeia comigo./

É uma criança bonita de riso natural./Limpa o nariz no braço direito,/Chapinha nas poças de água,/Colhe as flores e gosta delas e esquece-as. /Atira pedras aos burros,/Rouba fruta nos pomares/ E foge a chorar e a gritar dos cães./ E, porque sabe que elas não gostam/ e que toda a gente acha graça,/ Corre atrás das raparigas/ Que vão em ranchos pelas estradas/Com as bilhas às cabeças/ E levanta-lhes as saias./ 

(...) A mim ensinou-me tudo./Ensinou-me a olhar para as cousas,/Mostra-me como as pedras são engraçadas/Quando a gente as tem na mão/ E olha devagar para elas.

(...) Ele mora na minha casa a meio  do outeiro/ Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava,/Ele é o humano que é natural,/Ele é o divino que sorri e que brinca,/E por isso é que eu sei com toda a certeza/ Que ele é o menino Jesus verdadeiro. 

(...) E a criança tão humana que é divina/É esta minha quotidana vida de poeta,/E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre."


Ao anoitecer brincamos às cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.
(…)
Depois eu conto-lhe histórias das coisas de homens
E ele sorri porque é tudo incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis
E tem pena de ouvir falar das guerras
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flore tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos os muros calados."

E o Poeta pede:

"Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para tornar a adormecer.
E dá-me sonhos para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
………...........................................................
Essa é a história do meu Menino Jesus
Porque  razão que se percebe
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo o que os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam.

E eu gosto deste Menino Jesus e pergunto, com o Poeta: "Sim, por que razão?" 
E digo: "Este também é o "meu" Menino Jesus!"  

O poema (que poderia ser de Manuel Bandeira...) é de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro: “Poema de O Guardador de Rebanhos”, in Antologia de Adolfo Casais Monteiro, “Poesia da presença”, Círculo de Poesia, Moraes Editores (pp.76-79)

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

O Natal em casa da tia Mariquinhas...



Quando penso nos primeiros natais da minha infância, lembro a casa da Tia Mariquinhas. 
A minha avó tinha três irmãs e a mais nova era a tia Mariquinhas. O nome era Maria Joana e eu achava-o muito bonito e não percebia como aceitava que lhe chamassem "Mariquinhas"! A verdade é que, naqueles tempos, as Marias tinham o diminutivo de Mariquinhas que, na nossa terra, soava sempre como "marquinhas"...
A tia Joana era uma mulher cheia de vida, alegre, que costumava dizer, ainda muito jovem:
- Eu não quero nada com estudantes brincalhões! Rapazes!...
 As irmãs ficavam a olhar e sorriam, já sabiam o que ela ia dizer a seguir.
- Vou casar com um homem rico. Que me venha buscar a cavalo. Quero ter uma charrette e viver numa quinta...
Mary Cassatt, Mulher com chapéu pretovestido cor-de-rosa

Era uma mulher alta, de cabelos claros, talvez arruivados, um nariz levemente adunco e a pele muito branca. Penso em certas figuras  de jovens mulheres de Mary Cassatt com penteados de cabelos erguidos para o alto da cabeça que deviam estar na moda. Mas eu lembro-a já de cabelos brancos, bem penteada, sempre cheia de pó-de-arroz perfumado, a rir de tudo e a franzir os olhos pequeninos num sorriso eterno.
 Casou com um homem rico, mais velho, de pele tisnada, traços severos, pessoa generosa, que tinha quintas e andava a cavalo.
 Penso que foi feliz no casamento. Via-se que adorava viver, e comia e bebia como uma deusa pagã. 
Mary Cassatt, Mulher com blusa cor-de-rosa

A sua era uma casa farta, onde a mesa estava cheia de comida saborosa e de muitos doces. Nunca me esquecerei do doce de abóbora gila e da geleia de mão de vaca que comia em casa dela.
Foi em casa dela que me lembro de festejar os primeiros natais da minha vida.

Recordo uma grande árvore de Natal cheia de luzes. O meu tio mandava cortar na herdade um pinheiro bonito e redondinho que se enterrava num vaso com terra. E começava-se, então, a enfeitar a árvore.
Nós aparecíamos, para o fim, com a mãe, a dar uma ajuda com alguns balões pequeninos ou uns enfeites que se assemelhavam a caracóis dos querubins dos quadros, fiozinhos prateados que se colocavam ao lado dos flocos de algodão que por ali flutuavam já. O Inverno era frio em Portalegre e, por vezes, vi flutuar flocos verdadeiros por detrás dos vidros gelados das janelas - um encanto!


Contou-me a minha prima que a primeira árvore electrificada que houve na nossa terra foi a dos tios da minha mãe.
Um amigo, que se entendia em ligações eléctricas, confeccionou as luzinhas eléctricas que acendiam e apagavam, substituindo as velas de várias cores dos natais anteriores. O meu avô trazia a grafonola


grafonola, foto R. Amaral Marques


O meu avô trazia a grafonola e os discos: tangos argentinos, músicas francesas, Maurice Chevalier, a Arletty e -quem sabe?- talvez a canção da Lucienne Boyer de que o meu pai gostava tanto: "Parle-moi d'amour"...

Na véspera do Natal, era a festa mais importante. O meu pai que nunca quis guiar nem ter carro chamava o Sr. Bretanha ou o Sr. Fadagoza que eram os taxistas da praça e íamos para casa da tia. A casa ao fundo da Rua Acciaioli estava cheia de luzes e lá dentro cheirava a bolos! 



Todos em volta duma grande mesa, comíamos uma refeição ligeira em vez do jantar porque, mais  tarde, havia a ceia: bacalhau com batatas e couves, peru, azevias, filhós, fatias da china e outros doces que nunca mais acabavam!
E, a seguir, ainda à mesa, afastando as toalhas bordadas e os doces,  começavam as histórias da tia Zezinha, as brincadeiras da tia Marquinhas e do meu avô, as gargalhadas dela que adorava brincar... E a minha avó (contava-me ela)deitava as rolhas do champagne e os papéis dos bombons para o outro lado da mesa onde estava, solene, a tia Leopoldina que nada perturbava. 
Púnhamos na cabeça chapéus ou coroas de papel brilhante cheios de estrelinhas e de luas, abriam-se os embrulhos-surpresa que davam estalinhos e tinham rebuçados lá dentro. 

Depois, eram as cantigas ao desafio em que o meu avô primava com a minha avó, o jogo do  loto em que se ganhavam (ou perdiam) feijões, o jogo da bisca, ou o dominó, à espera que chegasse a meia noite. Esse velho dominó do meu avô guardo-o eu. Com o desgosto de lhe faltar uma peça: a pedra  6/6....



No momento de abrir as prendas, havia exclamações de surpresa, de alegria, e risos até que nós começávamos a cabacear de sono, ou adormecidas em cima da mesa.
O meu pai dizia que era hora de voltarmos, e alguém nos ia levar.  O meu pai estava sempre deserto de voltar para a casa amarela...


Vlaminck, rua de Murnau e casa amarela

Entrávamos em casa, meio a dormir, e íamos meter-nos na cama, quase vestidas, e quando a minha mãe que vinha acabar de nos despir, já nós dormíamos a sonhar com o Pai Natal.

Na manhã seguinte, haveria outras prendas. Sabíamos que o Pai Natal, no seu carro puxado por renas, as iria deixar, ainda nessa noite, deitando-as pela chaminé da cozinha...
Suponho que adormecíamos, felizes, a pensar nesse momento.

(1) Para quem nunca viu uma grafonola aqui fica este post que explica tudo...



segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Uma história policial: "Morte de um Desconhecido"...


 Capítulo I

Edward Hopper, Falcões da Noite

"Erica estava sentada ao lado dele. Tinha envelhecido e perdera a vivacidade do olhar que tanto o impressionara, meses antes. A luz da tarde  descia sobre Roma. Havia uma grande melancolia no olhar daquela mulher.
Tudo começara muitos meses antes: “Sim, naquele dia de Inverno”, pensou Michael Brenner.
Ela dizia-lhe, agora:
- Gosto de o ver!
E sorriu-lhe:
- Se me oferecer um cigarro, desta vez aceito.
- Com muito gosto! Dantes não fumava, pois não? Ou engano-me?
-Tem razão. Hoje, fumo. Sou ao contrário dos outros, teimosa como sabe. Sou teimosa e detesto proibições. Proíbem-nos de fumarem por toda a parte? Então, eu decidi fumar!
Os olhos pareceram animar-se, cheios da costumada ironia. Continuou:
- Com o que se vive nesta vida, passa-nos a vontade dos “ecologismos” e coisas parecidas em que julgámos acreditar. E as ilusões também se vão. Passa tudo, como o vento da Primavera...
- Não acredito que a Erica não guarde as ilusões...
- Lembra-se da Susy? Ela tinha ilusões.
Edward Hopper, Quarto em Brooklyn

- Como posso esquecê-la? Tudo começou por causa dela! Conhecemo-nos por isso mesmo.
- Não consigo falar dela...
Michael pousou-lhe a mão no braço, com ternura, e acrescentou.
- Ainda é cedo. Vamos esperar mais um pouco, não é?
Ficou a olhar para ela, sem falar.
Sim, tudo se passara muito antes, num dia de Inverno, na Piazza della Rotonda
E começou a lembrar-se do modo como entrara naquela história.
Edward Hopper, Café 1927



 Olhava para fora, através dos vidros do restaurante. As pessoas passavam, rápidas, agarradas aos casacos quentinhos. O frio instalara-se, mas o sol continuava a brilhar, intenso. Ouvira falar dos  magníficos dias de Inverno de Roma e estava a vivê-los.
Do lado esquerdo, erguia-se a massa pesada e harmoniosa das colunas do Panthéon.
Piazza della Rotonda, Pantheon

Habituara-se a contá-las.
“Quinze? Seis frontais... As outras...”
Gostava de entrar lá dentro quando a chuva caía, fina, em diagonal, do alto da cúpula aberta.
O restaurante era agradável, tranquilo. Tinham-lhe dito que era o sítio onde se comiam os melhores spaghetti alle vongole de Roma.
Sentado na mesa do canto, podia contemplar um pouco da Piazza e, ao mesmo tempo, ver a sala de jantar. Interessava-o o casal da mesa ao lado. Comiam, em silêncio, como se já tivessem dito tudo um ao outro.
Ao fundo, mais duas ou três mesas ocupadas. Aqueles dois eram conhecidos. Notava-se nos pequenos gestos dos empregados, numa palavra dita em tom mais íntimo.

Foi o homem quem quebrou o silêncio. Falava em inglês e, por isso, por ser a sua língua, Michael pôs-se a ouvi-los, involuntariamente.
E foi aí que tudo começou..."



(Escolhi as imagens sempre expressivas de Edward Hopper)

domingo, 14 de dezembro de 2014

UMA JAZZ BAND PARA O NATAL: Ratinho & Ouricinho's Band…



Já vos contei que é difícil aguentá-los quando se lhes mete uma ideia na cabeça. Apercebi-me disso ontem: arrastavam coisas pelo chão, trepavam às estantes, foram buscar os instrumentos musicais, chamaram outros amigos. Eu ia olhando, à espera de entender o que se passava. Achei melhor não intervir. De repente, ouço a voz do Ratinho, um tanto excitada:
- E quem é que canta?!
- Ela!
E o Ouricinho apontava para a bailarina cor de rosa que não sei como chegou até ali.
- Como é que ela veio?, não resisti eu a perguntar.
- A dançar, é claro! Hahaha.
E o Ouricinho ria-se de mim, o malandro. O Ratinho parecia pouco convencido.

- Mas ela sabe cantar?
E insistiu, desconfiado:
- Já cantaste alguma vez?
A bailarina agitou o corpo suavemente, nas suas roupas rosadas e, de mãos na cintura, disse pronta a dançar:

- Sei dançar… E também sei cantar! Já cantei. E acho que tenho boa voz.
O Ratinho não gostou do autoelogio.
- Quem é que te disse que cantavas bem? Tu???

Logo, o Ouricinho, a defendê-la:
- Quem cantou uma vez, sabe sempre cantar a vida inteira! Tu ainda cantas, não é Jana? Vou já buscar a minha guitarra!


Não estava lá muito convencida, confesso. As minhas cantorias eram doutros tempos, da minha adolescência, dos sonhos do Circo…
- Sim… Talvez.
Nesses anos fazia tudo a cantar! Há uns tempos, lembrou-me a Madade: “Tu cantavas horas seguidas, em inglês, enquanto tiravas significados de grego! Nunca me esqueci! E até lias a trautear uma canção.”
Era verdade, cantar era um modo de acompanhar a vida e até de viver mais intensamente: de ler e de estudar, distraindo-me…

Depois, cresci. Será que quis ser mesmo uma pessoa crescida? De repente, vi-me com sapatos de salto de 10 cm, a equilibrar-me com dificuldade, ao lado do meu namorado. Uma vez, em Lisboa, prendi um salto nos carris do eléctrico e estava disposta a perder o sapato e a fugir quando ele se soltou!

Cresci? Queria crescer? Acho que não, mas, de certo modo, mudei. E a voz mudou também. Já não estudava a cantar, ouvia música…e fui-me esquecendo de cantar, acho. Agora  quando abro a boca, cantarolo uns versos ao som do  Cd que ouço, mas a voz vai-se logo abaixo…

- Eu acho que perdi a voz…
- Não perdeste de certeza! Deixaste de a exercitar, é isso! E, como em todas as coisas, perde-se o hábito. Basta ter vontade de cantar!
O Ouricinho olhava para a bailarina, sorridente:
- Vais cantar bem, não vais?
Deixei-os. Não queria interferir, era uma brincadeira deles, devia respeitá-los. Mas ia ouvindo as conversas ao longe, as discussões, os ensaios de vozes.
- Não te lembras quando eles foram “em missão por conta de Deus”?
Era o Ratinho, a explicar uma coisa aos outros todos.
- Oh, sim, a BANDA!!
O entusiasmo do Ouricinho sentia-se na vibração daquelas palavras: a banda!
Começaram a experimentar os instrumentos e distingui o som da guitarra, do violoncelo e até uma corneta! 
Pus-me a cantar baixinho, com eles. Sim, uma amiga tinha-me dito um dia: “canta devagarinho. Uma vez, duas, três. Repete, repete. Vais ver que consegues melhorar a voz.” 

De repente, fui eu quem disse em voz alta:
- Ah, sim! Claro! The Band! São os Blues Brothers!
Era isso que eles estavam a ensaiar: “the band”, como no filme!
O Ouricinho ria às gargalhadinhas:
- Sim! The Band! Para o Natal!
Pareceu-me ouvir a voz do John Belushi. Imaginei o Ray Charles a cantar...
- E eles conseguiram!, dizia o Ratinho, confiante.
E eu pensei: Porque os animava a vontade de ajudar uma pessoa. Sim, ia-me lembrando, era a velha directora do orfanato onde tinham sido criados ele e o irmão - que queriam expulsar porque não podia pagar a renda. 

E todos os meninos pobres ficariam sem um lar... Para a salvarem, tinham tido que “reinventar” a velha banda de Jazz que fizera furor - antes de irem os dois para a cadeia!
Agora ouvia-se um tambor, leve, leve.
- Quem estará na bateria?...
Não resisti e fui espreitar. Era a suave e poética gatinha japonesa, sentada em frente do tambor! Tinham-se mudado para a sala e estavam muito concentrados e entusiasmadíssimos!

Ai, estes meus amigos…


Para o Natal... Sim, vem aí o Natal!!! Tenho que começar a pensar nisso!