sábado, 28 de fevereiro de 2015

JAMES MASON, EM ASSIS…

Encontrei um postal de Assis, dentro de um livro que não abria há muitos anos. O postal é uma imagem dos frescos de San Francesco, de Giotto. Um São Francisco suave, a pregar aos passarinhos. Os frescos encontram-se na Basílisa do mesmo nome.
o postal ...

No verso do postal, descobri uma assinatura: a de James Mason! Autógrafo que lhe pedi, em 1984, numa passagem por Assis. Estávamos a almoçar num restaurante agradável (come-se muito bem em toda a Úmbria e, em especial, em Assis...) e reconheci o actor. 
Julgava-me tímida, mas a verdade é que me levantei e, sem pensar, lhe fui pedir "um autógrafo", nas costas do postal. E lá está: "For Maria. Auguri! James Mason". E, entretanto, passaram 30 anos...


Assis devia estar linda, com a vista lá do alto sobre a planície e o céu muito azul. Estávamos em Março. 
Assis é uma das cidades que eu mais adorava em Itália. 

Visitávamo-la inúmeras vezes. Ir ver a Basílica (aliás, as duas basílicas: a superior e a inferior!) era um passeio encantador sempre . Porque o campo da província da Úmbria é muito bonito. E as casas e as igrejas têm uma cor especial - a pedra, naquela região, é muito branca.
Lembro-me de ver, na Basílica inferior, um Cristo Agonizante, de Cimabue incrível de sofrimento. E uma Virgem com Anjos e Santo, doce e dourada, do mesmo pintor. Com um São Francisco um pouco afastado, na sua (escolhida) simplicidade. 
E um quadro do "Maestro di San Francesco" (anónimo) com o sermão de São Francisco aos passarinhos.
"Maestro di San Francesco" 
Na superior, eram sobretudo os frescos de Giotto (1297): as paredes cheias de frescos com a lenda da vida de São Francisco, nos seus tons de azul, rosa, cinzento e vermelho.


algumas imagens da "Legenda di San Francesco", de Giotto 
Voltando a James Mason, o actor estava ali presente para as filmagens do filme “Assisi Underground” (fui ver à internet, claro!), filme escrito e realizado, em 1985, por Alexander Ramati, nascido em Brest (Belarus), judeu de origem polaca.
Pretendeu focar a atenção sobre aqueles que, durante a ocupação alemã - e dentro da Igreja Católica italiana-, tinham lutado para proteger os judeus e evitar a sua deportação para os campos. 

Em 1943, o frade franciscano, Rufino Niccacci é encarregado pelo bispo de Assis, Giueseppe Placido Nicolini (impersonado por James Mason), que fora monge beneditino, para salvar os judeus dos Nazis e lhes dar guarida na Basílica.
Outros actores bons estariam por lá pois, no elenco, havia actores como Maximilien Schell, Irene Pappas e outros. Mas a esses não pedi autógrafo... talvez porque não os vi no restaurante.



E esta voz, Isabel? Ouçamos Dee Dee Bridgewater : 'He's Gone'...

Nascida em 27 de Maio de 1950, com o nome de Denise Eileen Garrett, na cidade de Memphis (Tennessee) cresceu em Flint (Michigan). 
O pai, Matthew Garrett era trompetista e professor na Manassas High School. Foi ele lhe deu a conhecer o jazz
Com 16 anos, era membro de um trio rock. Aos 18 anos, entra para a Universidade Pública do Michigan e, mais tarde, para a Universidade do Illinois em Urbana-Champaign. 
Encontra Cecil Bridgewater que tocava no grupo de Horace Silver. Casam. 
Nos anos 70, Junta-se à ‘banda’ "Thad Jones-Mel Lewis Jazz Orchestra” como vocalista. Aí começa a carreira de jazz, carreira onde vai trabalhar com músicos como Dizzy Gillespie, Dexter Gordon, Max Roach e Sonny Rollins – grandes nomes do jazz.





Elton John e "Sorry Seems To Be The Hardest Word". Sim, parece que pedir perdão é um pouco difícil...


Van Gogh, Jarro com begónias azuis


quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Homenagem a Cesário Verde que morreu há 160 anos

De tarde
"Naquele «pic-nic» de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão de ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro, a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas."

"José Joaquim Cesário Verde (Lisboa, 25 de Fevereiro de 1855 — Lumiar, 19 de Julho de 1886)"!

Flores de ameixoeira e "haikais"... e antecipação da Primavera?

Botticelli e o vento da Primavera (détail do 'Nascimento de Vénus')

Sinto, de manhã, soprar um vento de Primavera que nos engana, claro, porque o frio anda por aí, todas as noites. 
Sovrasov, Primavera antecipando o degelo

As flores selvagens rebentam pelo chão ou nos vasos. As árvores vão começar a acordar, mas poucas são as folhinhas verdes, ainda.
Botticelli e o vento da Primavera 
Talvez a ameixoeira (*) seja a primeira a florir, na Primavera. Já as vi este ano, em imagens vindas do Japão.
 ameixoeira japonesa (Syuji Hirai)

A ameixoeira que dá as doces ameixas, chamada prunus domestica, tem flores de cindo pétalas, brancas e puras. Existe também a prunus selvatica, ou ameixoeira brava de jardim, que dá flores mas não dá fruto.
Camélia branca, foto de Etsuko

"Em segredo
 a camélia adivinha
A presença da ameixoeira"
de Hayashibara Raisei

flores de ameixoeira-brava

E a prunus dulcis que é a amendoeira... E a prunus serricata, a cuja família pertence a cerejeira. 
 Van Gogh e "Amendoeira florida" (1890)

Prunus são todas, mas muito diferentes na flor, na cor, no fruto. Em breve, virão as cerejeiras colorir a paisagem de cor de rosa. 

cerejeiras em flor
Hoje escolhi a flor da ameixoeira e os grandes poetas japoneses, criadores de "haikais" maravilhosos de simplicidade e essencialidade.
ameixoeira do Japão (fotografia de Syuji H.)
"A cada flor de ameixoeira
o calor
aumenta!"
(Hattori Ransetsu)

Poetas clássicos do Japão -como Iosa Buson ou Kobayashi Issa ou Matsuo Bashó- e modernos falam da flor de ameixoeira, e fazem-nos imaginar a beleza, o toque suave de plumas brancas desfolhadas, chuva de pétalas nacaradas ou cheirar o perfume que nos desperta, e olhar a brancura brilhando nos ramos das árvores. E os seus poemas curtos, quase impressionistas, sugerem o momento que passa, a flor que nasce, a pétala que cai...


"Pela vereda da montanha
O sol desperta
Com o perfume das ameixoeiras"
(Matsuo Bashó)

"Chuva de nácar
Sobre as mesas –
As ameixoeiras perdem as flores"
(Yosa Buson)

"Na ameixoeira branca
As noites agora
São alvoradas"
(Yosa Buson)

E, com um certo humor e ternura, Kobayashi fala do seu gato branco:
 Délacroix, O gato branco

"Quando chegam as flores de ameixoeira
Cubro de sardinhas
A campa do meu gato"
(Kobayashi Issa)

(*) Diz-se ameixoeira e, também, ameixieira e ameixeira. O abrunheiro é ligeiramente diferente, com frutos mais pequenos e mais ásperos de gosto...

sábado, 21 de fevereiro de 2015

UM LIVRO TERNO E BOM, “LES VALEUREUX", DE ALBERT COHEN


"Les Valeureux", de Albert Cohen é o livro que estou a ler e me tem feito uma óptima companhia, com o seu mundo mágico: o dos primos Solal, os Valorosos, que vivem em Cefalónia e fazem parte da comunidade judaica Romaniota (*), da ilha de Corfu.


Livro invulgar pela capacidade de imaginar situações, e pelas personagens que nos levam a mundos estranhos a a aventuras únicas.
Começando por Pinhas Solal - mais conhecido por Mangeclous (isso mesmo: come-pregos!) por causa daquela vez que, ainda criança sempre esfomeada, no seu apetite incomensurável, comeu um montinho de pregos.

Depois vem Mathathias, o agarrado, e Michael o conquistador e Salomon, o minúsculo Salomon, a saltitar pelas praças cheias de sol, e a falar com as mãos, vivo e sensível. E o tio Saltiel, tio de todos, que os acompanha como um irmão mais velho.

E longe, na Genebra de brumas, vive Solal de Solal, o sobrinho amado por todos eles. Lindo, perfeito, rico.

Encantaram-me estas personagens extraordinárias, a respirar vida e sentimentos. Poéticas, impossíveis de encontrar na vida real (mas desejáveis), porque vivem na imaginação a inventar cada dia, com uma capacidade de engenho e uma maravilhosa maneira de resolver todos os problemas.
Histórias de loucos que o autor, rindo à socapa, nos vai contando. Imagino-os a passear, a irem até ao mar azul, azul, fazer os seus negócios, comer as iguarias que se vendem por toda a parte: as azeitonas, os frutos secos, as melancias vermelhas, os doces de mel, o peixe acabado de fritar. A botarga que Salomon traz e que Mangeclous pede para ser ele a comer toda porque é ele quem aprecia mais a botarga, explica. E lá vão juntos, lado a lado, de dedo mindinho dado até ao porto…

"Vejo" com eles a cor dos dias, o mar  azul ou verde, as comidas cheias de perfumes de especiarias de Cefalónia, a alegria de viver! E vejo-os que vão, lado a lado, de dedo mindinho dado, até ao porto…

rua de Corfu

O incrível Mangeclous mais os seus cursos, o seu CV inventado, a universidade que cria de um dia para o outro e de que é o reitor, evidentemente, as profissões inumeráveis, de advogado a dentista de cavalos, médico e curandeiro, às superstições, às maldições por "scaramanzia", para evitar o mau-olhado, e aos desabafos e às mentiras.
E Albert Cohen ri-se, com eles, enquanto nós rimos também. Com delicadeza, humor e poesia. Bom humor e loucura boa. 

São deuses, são homens estes Valorosos  sobre quem o tempo não tem qualquer poder e que transformam em sonho tudo aquilo em que tocam? Embriagados de sol, o de Israel e o da Grécia, mais embriagados ainda de palavras que lhes vêm à boca – os valorosos passam por ‘Solal’, ‘Mangeclous’ e ‘Belle du Seigneur’ sem ganharem uma ruga nem um pedacinho de juízo.” (apresentação, edição Gallimard, 1969)
Porém, de súbito, passa nas suas páginas um vento gélido e sentimos um calafrio percorrer-nos. Albert Cohen, judeu grego, nascido em Corfu, pensa na guerra, no passado daqueles homens, nos familiares mortos em Auschwitz. Na angústia e na tristeza da mãe. Na sua tristeza.

A caneta parou e vi de repente o meu povo na terra de Israel, adolescente de um augusto passado, antiga Primavera, viril beleza revelada ao mundo. Louvor e glória a vós, irmãos de Israel, vós adultos e dignos, sérios e de poucas palavras, combatentes corajosos, construtores de uma pátria e de justiça, Israel israelita, meu amor e meu orgulho. Mas o que hei-de fazer se amo também os meus valorosos que não são nem adultos nem dignos, nem sérios, nem de poucas palavras? Vou escrever pois sobre eles, e este livro será o meu adeus a uma espécie que se apaga de que quis deixar um sinal depois de mim, o meu adeus ao ghetto onde nasci, ghetto encantador da minha mãe, homenagem à minha mãe morta.” (p. 94)

E lembra a mãe e recorda aquela tia, única sobrevivente dos campos, que enlouqueceu, e que, todas as manhãs, se sentava à janela à espera que o marido e o filho voltassem para casa. E dizia todos os dias: “Sei que vêm aí hoje”. Mas eles nunca chegam. Nunca voltarão. E ela morre também.
À mãe dedica páginas de amor maravilhosas, em "Le livre de ma mère". Deixo algumas capas da 'Folio' (Gallimard), cada uma mais bonita do que a outra!


E o autor faz um intermezzo na história dos Solal, e ouvimos o seu lamento e a pergunta: “Como sorrir? No entanto, é preciso fazê-lo e continuar a viver e a sorrir com eles, continuar o pecado de viver esperando a morte próxima, a minha morte, depois da morte da minha mãe (…). Sim, sorrir e mesmo rir com os Valorosos, rir com as minhas tristezas e com a angústia da minha mãe, a angústia nos olhos dela que me espera, a mesma dos meus olhos ainda vivos.” (p.238)
E nos Valeureux há páginas escritas com amor e ternura, com nostalgia e com o prazer de recordar. E, para o leitor, o prazer de ler: porque escreve muito bem! 
Livro terno e bom, repito, em que o humor e a auto-ironia judaica -aliados `lucidez e à loucura- conseguem cenas de um cómico inigualável na literatura! Páginas com figuras e cenas hilariantes inesquecíveis. E a beleza da ilha - que descreve com tanto cuidado, com tanto sentimento, com tanta pureza...
Ilha de Corfu

“De volta à rua, uma leve melancolia invade-o de novo e vai sentar-se no pequeno muro que pendia sobre os banhos de Nausicaa. Com as pernas penduradas, no ar palpitante de calor, admirou uma vez mais o Mar Jónio. Dourados, os raios de sol atravessavam obliquamente a água esverdeada, e atingiam os seixos do fundo miraculosamente visíveis e tão puros. 

Ó beleza, perfume inicial, odor do mar. Esta beleza um dia teria de a deixar. Era apenas um dos seres humanos que se sucediam há milhares de anos, um humano que morreria em breve. E dentro de milhares de anos a seguir à sua morte, ninguém pensaria nele, ninguém saberia que tinha existido e, na verdade, nunca teria existido. Ó inexistência durável no futuro.” (p.232)
Corfu e a cidade de Kikheria
Este é o quarto e último volume da Tetralogia que Albert Cohen quis dedicar a estas personagens. Teria desejado que fizesse parte de ‘Belle du Seigneur’, mas os editores preferiram separá-los. Desequilibraria o equilíbrio do romance Belle du Seigneur.

A tetralogia é formada por “Solal”, “Mangeclous”, “Belle du Seigneur” e “Les Valeureux”.
Uma leitura cheia de frescura e ingenuidade sabe bem, face à realidade incerta e violenta dos nossos dias, leitura que se torna preciosa porque nos dá vontade de (apesar de tudo) continuar a viver! 
Em 1988, o realizador israelita Moshe Mizrachi recria estas personagens no seu "Mangeclous". Com actores maravilhosos é com certeza um espectáculo único. Não o vi, mas vou já à Amazon encomendar!
Breve nota sobre o autor:
"Albert Cohen era um judeu romaniota que nasceu em Corfu, na Grécia, em 16 de Agosto de 1895 e morreu em Genebra em 17 de Outubro de 1981. Ainda criança, a família vai viver para Marselha onde faz os estudos secundários. Em 1914, vai estudar Direito para Genebra. Nacionaliza-se suíço em 1919. Durante a a guerra parte para Bordéus e dali para Londres, onde teve uma acção importante. De facto, desde 1944, que trabalha como conselheiro jurídico junto do 'International Committee for Refugees' - de que faziam parte, nomeadamente, a França, o Reino Unido e os Estados Unidos da América. É encarregado da elaboração do Acordo Internacional de 15 de Outubro de 1946, relativo ao estatuto e à protecção dos refugiados. Em 1947, regressa a Genebra, onde vai ser director de uma das instituições especiais das Nações Unidas. É Oficial da Légion d'Honneur.
Escreveu em francês. Em 1968, é-lhe atribuido -pelo seu romance "Belle du Seigneur" o Grand Prix du roman de l'Académie Française. 
* * *

 (*) "Os judeus Romaniotas eram uma comunidade presente na Grécia desde os tempos ‘helénicos’. Terão chegado depois do 1no 70 da E.C.
Trata-se de uma cultura diferente, um grupo que falava o Yevanic (dialecto gregoo) ou o Grego moderno. Estavam espalhados pela Grécia (Tebas, Joannina) e pelas ilhas Jónicas de  Corfu, Chalci, Chos, Lesbos, Samos, Rodes e Chipre. 
Não têm ligação com outros judeus chegados à Grécia em 1496, depois da expulsão dos judeus de Espanha e Portugal: os Sephardim. 
Como nada têm que ver com os Askhenazim nascidos na Europa Central
Judeus, em Joanina, deportados em 25 de Março de 1944


Durante a ocupação da Grécia pelas “Forças do Eixo "(Alemanha, Itália e Japão), a maioria destes judeus foram enviados para os campos de concentração e  foram mortos. Cerca de 80% dos judeus é deportada e morre nos campos. Só de Tessalónica foram deportados 49.000 judeus Romaniotas e Sefaradim. E por lá morreram. 
Alguns foram salvos pela Igreja Ortodoxa e por cristãos que os esconderam em casa."