"Les Valeureux", de Albert Cohen é o livro que estou a ler e me tem feito uma óptima companhia, com o seu mundo mágico: o dos primos
Solal, os Valorosos, que vivem em Cefalónia e fazem parte da comunidade
judaica Romaniota (*), da ilha de Corfu.
Livro
invulgar pela capacidade de imaginar situações, e pelas personagens que nos levam a
mundos estranhos a a aventuras únicas.
Começando
por Pinhas Solal - mais conhecido por Mangeclous
(isso mesmo: come-pregos!) por causa daquela vez que, ainda criança sempre esfomeada,
no seu apetite incomensurável, comeu um montinho de pregos.
Depois
vem Mathathias, o agarrado, e Michael o conquistador e Salomon, o minúsculo
Salomon, a saltitar pelas praças cheias de sol, e a falar com as mãos, vivo e
sensível. E o tio Saltiel, tio de todos, que os acompanha como um irmão mais
velho.
E
longe, na Genebra de brumas, vive Solal de Solal, o sobrinho amado por todos
eles. Lindo, perfeito, rico.
Encantaram-me
estas personagens extraordinárias, a respirar vida e sentimentos. Poéticas, impossíveis de
encontrar na vida real (mas desejáveis), porque vivem na imaginação a inventar cada dia, com uma capacidade de engenho e uma maravilhosa maneira de resolver todos
os problemas.
Histórias
de loucos que o autor, rindo à socapa, nos vai contando. Imagino-os a passear, a
irem até ao mar azul, azul, fazer os seus negócios, comer as iguarias que se
vendem por toda a parte: as azeitonas, os frutos secos, as melancias vermelhas, os doces de mel, o peixe acabado de fritar. A botarga que Salomon traz e que Mangeclous pede para ser ele a comer toda porque é ele quem aprecia mais a botarga, explica. E lá vão juntos, lado a lado, de dedo mindinho dado até ao porto…
"Vejo" com eles a cor dos dias, o mar azul ou verde, as comidas cheias de perfumes
de especiarias de Cefalónia, a alegria de viver! E vejo-os que vão, lado a lado, de dedo mindinho dado, até ao porto…
O
incrível Mangeclous mais os seus cursos, o seu CV inventado, a universidade que cria de um dia para o outro e de
que é o reitor, evidentemente, as profissões inumeráveis, de advogado a dentista de cavalos, médico e curandeiro, às superstições, às maldições por "scaramanzia", para evitar o mau-olhado, e aos
desabafos e às mentiras.
E
Albert Cohen ri-se, com eles, enquanto nós rimos também. Com delicadeza, humor e
poesia. Bom humor e loucura boa.
“São deuses, são homens estes Valorosos sobre quem o tempo não tem qualquer poder e que transformam em sonho tudo aquilo em que tocam? Embriagados de sol, o de Israel e o da Grécia, mais embriagados ainda de palavras que lhes vêm à boca – os valorosos passam por ‘Solal’, ‘Mangeclous’ e ‘Belle du Seigneur’ sem ganharem uma ruga nem um pedacinho de juízo.” (apresentação, edição Gallimard, 1969)
Porém, de súbito, passa nas suas páginas um vento gélido e sentimos
um calafrio percorrer-nos. Albert Cohen, judeu grego, nascido em Corfu, pensa na guerra, no passado daqueles homens, nos
familiares mortos em Auschwitz. Na angústia e na tristeza da mãe. Na sua tristeza.
“A caneta parou e vi de repente o meu povo na
terra de Israel, adolescente de um augusto passado, antiga Primavera, viril
beleza revelada ao mundo. Louvor e glória a vós, irmãos de Israel, vós adultos
e dignos, sérios e de poucas palavras, combatentes corajosos, construtores de
uma pátria e de justiça, Israel israelita, meu amor e meu orgulho. Mas o que
hei-de fazer se amo também os meus valorosos que não são nem adultos nem
dignos, nem sérios, nem de poucas palavras? Vou escrever pois sobre eles, e
este livro será o meu adeus a uma
espécie que se apaga de que quis deixar um sinal depois de mim, o meu adeus ao
ghetto onde nasci, ghetto encantador da minha mãe, homenagem à minha mãe morta.” (p. 94)
E
lembra a mãe e recorda aquela tia, única sobrevivente dos campos, que
enlouqueceu, e que, todas as manhãs, se sentava à janela à espera que o marido
e o filho voltassem para casa. E dizia todos os dias: “Sei que vêm aí hoje”. Mas eles nunca chegam. Nunca voltarão. E ela
morre também.
À mãe dedica páginas de amor maravilhosas, em "Le livre de ma mère". Deixo algumas capas da 'Folio' (Gallimard), cada uma mais bonita do que a outra!
E
o autor faz um intermezzo na história
dos Solal, e ouvimos o seu lamento e a pergunta: “Como
sorrir? No entanto, é preciso fazê-lo e continuar a viver e a sorrir com eles, continuar
o pecado de viver esperando a morte próxima, a minha morte, depois da morte da
minha mãe (…). Sim, sorrir e mesmo rir com os Valorosos, rir com as minhas
tristezas e com a angústia da minha mãe, a angústia nos olhos dela que me
espera, a mesma dos meus olhos ainda vivos.” (p.238)
E nos Valeureux há páginas escritas com amor e ternura, com nostalgia e com o prazer de
recordar. E, para o leitor, o prazer de ler: porque escreve muito bem!
Livro terno e bom, repito, em que o humor e a auto-ironia judaica -aliados `lucidez e à loucura- conseguem cenas de um cómico inigualável na literatura! Páginas com figuras e cenas hilariantes inesquecíveis. E a beleza da ilha - que descreve com tanto cuidado, com tanto sentimento, com tanta pureza...
Ilha de Corfu
“De volta à rua, uma leve
melancolia invade-o de novo e vai sentar-se no pequeno muro que pendia sobre os
banhos de Nausicaa. Com as pernas penduradas, no ar palpitante de calor,
admirou uma vez mais o Mar Jónio. Dourados, os raios de sol atravessavam obliquamente
a água esverdeada, e atingiam os seixos do fundo miraculosamente visíveis e tão
puros.
Ó beleza, perfume inicial, odor do mar. Esta beleza um dia teria de a
deixar. Era apenas um dos seres humanos que se sucediam há milhares de anos, um
humano que morreria em breve. E dentro de milhares de anos a seguir à sua
morte, ninguém pensaria nele, ninguém saberia que tinha existido e, na verdade,
nunca teria existido. Ó inexistência durável no futuro.” (p.232)
Corfu e a cidade de Kikheria
Este
é o quarto e último volume da Tetralogia
que Albert Cohen quis dedicar a estas personagens. Teria desejado que fizesse
parte de ‘Belle du Seigneur’, mas os editores preferiram separá-los.
Desequilibraria o equilíbrio do romance Belle
du Seigneur.
A
tetralogia é formada por “Solal”, “Mangeclous”, “Belle du Seigneur” e “Les
Valeureux”.
Uma leitura cheia de frescura e ingenuidade sabe bem, face à realidade incerta e violenta dos nossos dias, leitura que se torna preciosa porque nos dá vontade de (apesar de tudo) continuar a viver!
Em 1988, o realizador israelita Moshe Mizrachi recria estas personagens no seu "Mangeclous". Com actores maravilhosos é com certeza um espectáculo único. Não o vi, mas vou já à Amazon encomendar!
Breve nota sobre o autor:
"Albert Cohen era um judeu romaniota que nasceu em Corfu, na Grécia, em 16 de Agosto de 1895 e morreu em Genebra
em 17 de Outubro de 1981. Ainda criança, a família vai viver para Marselha onde faz os estudos secundários. Em 1914, vai estudar Direito para Genebra. Nacionaliza-se
suíço em 1919. Durante a a guerra parte para Bordéus e dali para Londres, onde teve uma acção importante. De facto, desde 1944, que trabalha como conselheiro jurídico junto do 'International Committee
for Refugees' - de que faziam parte, nomeadamente, a França, o Reino Unido e os Estados Unidos da América. É encarregado da elaboração do Acordo Internacional de 15 de Outubro de 1946, relativo ao estatuto e à protecção dos refugiados. Em 1947, regressa a Genebra, onde vai ser director de uma das instituições especiais das Nações Unidas. É Oficial da Légion d'Honneur.
Escreveu em francês. Em 1968, é-lhe atribuido -pelo seu romance "Belle du Seigneur" o Grand Prix du roman de l'Académie Française.
* * *
(*) "Os
judeus Romaniotas eram uma comunidade presente na Grécia desde os tempos ‘helénicos’.
Terão chegado depois do 1no 70 da E.C.
Trata-se
de uma cultura diferente, um grupo que falava o Yevanic (dialecto gregoo) ou o
Grego moderno. Estavam espalhados pela Grécia (Tebas, Joannina) e pelas ilhas
Jónicas de Corfu, Chalci, Chos, Lesbos, Samos, Rodes e Chipre.
Não têm ligação com
outros judeus chegados à Grécia em 1496, depois da expulsão dos judeus de Espanha e
Portugal: os Sephardim.
Como nada têm que ver com os Askhenazim nascidos na
Europa Central.
Judeus, em Joanina, deportados em 25 de Março de 1944
Durante a ocupação da Grécia pelas “Forças do Eixo "(Alemanha, Itália e Japão), a maioria destes judeus foram enviados para os campos de concentração e foram mortos. Cerca de 80% dos judeus é deportada e morre nos campos. Só de Tessalónica foram deportados 49.000 judeus Romaniotas e Sefaradim. E por lá morreram.
Alguns foram salvos pela Igreja Ortodoxa e por cristãos que os esconderam em
casa."