Botticelli, Anjos ou demónios
Poeta maldito - como no título do livro de Paul Verlaine? Anjo caído ou demónio?
Arthur-Jean Rimbaud nasce em Charlesville, em 29
de Outubro de 1854, e morre a 10 de Novembro de 1891, em Marselha.
Rosto de anjo, destino singular, destino poético, que permanece
singular, com o fascínio eterno do poeta adolescente que em
pouco mais de três anos escreve uma obra marcante.
Stephane Mallarmé define-o, nas Divagations, chamando-lhe um
meteoro: “Com o brilho de um meteoro,
aceso sem outro motivo se não a sua presença, e que desaparece sozinho,
apagando-se”.
Stephane Mallarmé, por Manet
Malarmé, porém, não reconhece que "tenha tido a eficácia real que
se lhe atribui sobre o simbolismo e os simbolistas".
Claude-Edmond Magny (in Arthur Rimbaud, Poètes d'Aujourd'hui) rebate: “Estranho que Mallarmé, tão clarividente, não consiga ver tudo o que, na
sua própria procura poética, convergia com a de Rimbaud.”
E recorda a influência enorme sobre os vindouros. Sobre Claudel por exemplo que, ao ler as Illuminations, escreve : o “choque
revelador do que podia e devia ser a poesia verdadeira: uma recriação de tudo o
que existe. Um co-nascimento do mundo e de si próprio.”
(1868-1955)
Na sua Lettre du Voyant (fins de 1870-1871),
Rimbaud fala do “carácter visionário” do poeta. Sente-se um “vidente” (voyant) e define a sua “teoria” poética.
Paul Demeny
A Lettre du Voyant é dirigida a Paul
Demeny e é uma “lição” de literatura moderna.
Conta as visões, o sofrimento enorme até ao
que ele chama o desregramento dos sentidos – quase à beira da loucura. E
descreve fielmente as suas visões. O vidente “vê” o que os outros homens procuram, tacteando: o mistério que envolve o destino da raça humana e o fim para que se dirige.
Quer inventar uma nova linguagem – a única que o consegue revelar adequadamente.
Rimbaud achava, desde 1871, que “era
necessária uma língua nova” e dispunha-se a criá-la. Achava a língua ‘poética’
do século XIX insípida, monótona e incolor.
Assim, escolhe palavras raras, inventa outras, mesmo tiradas de outras línguas e ‘afrancesadas’…
O poeta devia inventar uma poética nova. Rimbaud inclinava-se para a “anotação pura e simples” das coisas. O poeta devia abrir
os sentidos à sensação. E, depois, fixar com palavras o que os sentidos tinham
recebido. O seu principal cuidado seria, pois: “ver, ouvir e anotar” - seja o que
for, sem intervenção da inteligência.
"Inventei a cor das vogais! - A negro, E branco, I vermelho, O azul, U verde. -Regrei a forma e o movimento de cada consoante e, com ritmos instintivos, gabei-me de ter criado um verbo poético capaz de todos os sentidos." (Iluminações, 'Alquimia do Verbo, pg.131-2)
A cor das vogais? Sim, o poeta pode “sentir” a
cor e deve traduzir essas suas sensações: pela cor, pelo ritmo, pelo peso –quase-
as palavras são chamadas a fazer nascer nos outros a sensação que o poeta
experimentou e quis transmitir. Por isso, as palavras podem ter uma cor!
Eugénio de Castro, desenho de Félix Valloton
E lembro Eugénio de Castro (4 de Março 1869- 17 de Agosto
de 1944), o nosso grande poeta do Simbolismo:
Félix Valoton, Mon portrait, 1885
“Providencialmente passaram sob
os meus olhos alguns livros de simbolistas franceses recentemente publicados,
de Verlaine, de Moréas, de Mallarmé (…) Esses livros ensinam-me milagrosamente
a orientar as vagas e flutuantes aspirações do meu espírito e mostraram-me como
a poesia portuguesa facilmente recobraria o seu vigor e a graça das suas
grandes épocas, se alguém iniciasse nela um movimento idêntico ao francês,
variando os ritmos da inspiração,
renovando o fatigado guarda-roupa das imagens, substituindo a expressão pelo
símbolo e a expressão linear dos parnasianos pela sugestão musicalmente vaga
dos simbolistas.” (in “Autobiografia de Eugénio de Castro, publicada em La
Nación, Buenos Aires, 1924)
Tudo tem de ser reinventado, desde a linguagem poética, aos sentidos duplos, metáforas, símbolos. Usa sinestesias, rimas e métricas novas, poemas em prosa ou prosa poética.A escolha das aliterações e vocabulário rico e musical. É o inebriamento dos sentidos que procura: cultivar as alucinações. É, para ele, o tempo das drogas, dos estimulantes, dos excitantes, dos perfumes e venenos.
Escolhe o desregramento de todos os sentidos. Desregrar as palavras e, logo, desregular os
sentidos. Ou vice-versa.
O poeta segue a “Marche au Progrès”. Nada de religioso –
apenas a vitória sobre a natureza. Esse futuro do homem não será religioso, mas
sim materialista.
Continua: “A inteligência do homem estenderia até ao
infinito as conquistas da ciência. Melhorar as condições de vida. Adquirir ‘padrões
mentais’ novos.”
Jan Vermeer e a ciência: O Astrónomo e o Geógrafo
O Poeta vai ser, para os outros, “o grande doente, o grande criminoso, o
grande maldito.” Porque reinventa o mundo, dolorosamente, destruindo antes tudo o que tinha sido esse mundo de 'normalidade' que ele recusa. Por isso, incompreendido.
Magritte
O sentido de muitos dos seus versos e metáforas é ainda hoje discutido, ambíguo para alguns. Porque havia um 'código' para os entendidos de que só ele tinha a'chave' de que fala muitas vezes. Mas a Arte é ambígua, não é? Por que querer desvendar o código do Poeta?
Poeta sem esperança, sem caridade para si, nem para os outros, o poeta de "Estação no Inferno".
Vrubel, Demónio sentado
“(...) mais do que a falta da
esperança e da caridade o seu pecado maior é a impaciência.” - escreve Claude-Edmond Magny. “A impaciência que é, aliás, um pecado infantil, a não resignação ao
tempo das crianças."
Em muitas coisas, Rimbaud permanece uma criança insatisfeita, que se aborrece, que gostaria de ser entretida.
Jan Sanders- Hermessen, Vaidade
anjo ‘satânico’?
Adolescente ‘satânico’ e mal-amado? Anjo caído? Um adolescente, sempre “como Satã o era”, diz Magny.
“São
muitos os textos do Talmude em que Satã é chamado 'o Adolescente'. Um adolescente
incapaz de chegar à idade adulta, sem deixar pelo caminho a parte melhor de si,
a parte mais grave (pesada?) dos seus dons.” (** pgs. 49-50)
Rimbaud à procura do sentido da vida? à procura da Idade de Ouro perdida? Da sua juventude e vida perdidas por "delicadeza"? Como diz na "Chanson de la plus haute tour":
The falling angel (1849-50), de Karl Brullov
"Oisive jeunesse
à
tout asservie
pour délicatesse
j’ai perdu ma vie.
Ah! Que le temps vienne
Où
les coeurs s’eprennent!"
Perdeu a vida, e agora é tarde. Perdeu-a por aceitar todas as sugestões e influências alheias, par délicatesse. Submete-se dócilmente ao
que a vida lhe trazia –mas é a vida que perde.
Bannières de Mai
"Je veux bien que les
saisons m’ usent.
A toi, Nature, je me rends;
Et ma faim et toute ma soif.
Et,
s’il te plait, nourris, abreuve.
Rien de rien ne m’ illusione."
Sente-se gasto. Desiludiu-se. Aceita que as 'estações' o gastem e rende-se à Natureza. O Outono da vida chegou cedo para ele. Há como uma entrega a um certo doce “fatalismo”, ao
aborrecimento que sempre o tentou e amou. Não vale a pena resistir…
"Abomino todos os modos de vida", queixa-se.
"-Ai! estou tão sozinho que ofereço a qualquer ídolo as minhas orações." (pg.112)
Antonio de Pereda, A Vaidade (1611-1678)
Que acredita em poucas coisas. Mas acredita na 'ciência', porque nada é vão.
Ao "vaidades das vaidades, tudo é vaidade" do Eclesiastes, responde:
A Ciência é a resposta! Pela Ciência e em frente!, clama.
"O trabalho humano! explosão que ilumina de quando em quando o meu abismo.
Homens e fábricas, Laurence Lowry
Nada é vaidade; pela ciência, marchar", grita o Eclesiastes moderno, isto é: Toda a Gente. E no entanto o cadáver dos maus e dos vadios caem em cima do coração dos outros... Ah! depressa, depressa, depressa um pouco; lá longe, além da noite, as recompensas futuras...eternas... fugir-nos-ão?..."
Haren Steenwijck, "Vanitas"
“Jadis
je me souviens bien, ma vie était un festin où s’ouvraient tous les coeurs, où
tous les vins coulaient."
Agora:
"Está gasta, a minha vida, É andar, enganemos, vagabundeemos, ó piedade! Existiremos em diversão perpétua, sonhando amores monstruosos e universos fantásticos, chorando-nos e discutindo a aparência das coisas, saltimbanco, pedinte, artista, bandido -padre!" (pg.145-46)
Esperance, de Puvis de Chavanne ,1872
"Un soir j’ai assis la Beauté sur mes genoux. –Et je l’ai trouvée amère. –Et je l’ai injuriée."
Como não pensar na "Beleza" fria e indiferente de Baudelaire?
Mary Cassatt
"Je suis belle ô mortels!
Comme un rêve de pierre,
Et mon sein, où chacun
s’est meurtri tour à tour,
est fait pour inspirer au poète un amour."
***
O espírito do poeta erra entre a pureza das 'ondinas' e da água fina, do céu azul, das transgressões várias, entre a procura do Belo e a libertação dos sentidos, das errâncias e dos exílios... Partir, não partir? O que é verdade, nele?
"L’esprit
"Eternelles Ondines,
Divisez l’eau fine.
Venús, soeur de l’azur,
Emeus le flot pur."
Magritte, 'Chamada do alto'
No poema 'Mau Sangue', escreve:
"Eis-me na praia armoricana. Que as cidades cintilem ao anoitecer. A minha jornada está feita: deixo a Europa. O ar do oceano queimará meus pulmões; ignotos climas me bronzearão.
Nadar, pisar erva, caçar, fumar, fumar muito; beber licores abrasivos (...) Regressarei com com nervos de ferro, a pele curtida, o olhar irado. (...) terei ouro: serei indolente e brutal. (...) Agora sou um maldito, tenho horror à pátria. O melhor ainda é uma sesta bem bêbada na praia." (tradução de Mário Cesariny, pg. 111)
E - paradoxo!- logo acrescenta:
"Ninguém parte. - Voltemos aos mesmos caminhos, carreguemos outra vez com os meus vícios, os vícios que, a meu lado, plantaram raízes de dor."
Adeus:
"Já o Outono! - Mas porque desejar um sol eterno, se partimos à descoberta da claridade divina - longe daqueles que florescem e morrem com as estações."
Myrna Landau, claridade azul?
A procura infindável, numa estação luminosa, mas breve, através da Poesia, que não durou mais do que três anos!
Ah! como o espírito do(s) Poeta(s) é inquieto, inseguro - e afasta para longe a felicidade! O que terá sido a
vida de Rimbaud afinal?
A busca da Idade de Ouro?
"Perdeu-se. Buscai.
Quem? A idade de Ouro."
A expectativa das recompensas futuras...eternas?
Marisa Volonterio, Luar
"Ah! depressa (...) lá longe, além da noite, as recompensas futuras...eternas... fugir-nos-ão?"
E a eternidade, de que fala na 'Alquimia do Verbo', encontrou-a?
"Elle est retrouvée!
Qui? l'éternité.
C'est la mer mêlée
au soleil."
Mas a eternidade é o fim da vida...
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NOTAS:
(*) Eugénio de Castro nasce em 4 de Março 1869 e morre em 17 de
Agosto de 1944.
(**) Introdução
de Charles-Edmond Magny, à obra “Arthur Rimbaud” (Pierre Seghers Editeur -Colection poètes d’aujourd’hui)
(***) Introdução de Antoine Adam, Oeuvres Complètes, Pléiade.
Segui a tradução do poeta Mário Cesariny a "Iluminações/ Uma cerveja no inferno", Edições Cor, 1972