quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Lembrando "Les Poneys Sauvages", de Michel Déon

Michel Déon, 1970

Morreu o escritor francês Michel Déon, um grande romancista que deixou dois livros inesquecíveis, Les Poneys Sauvages e Un Taxi Mauve
E muitos outros: Le Balcon de Spetsaï, Un parfum de Jasmin, Le Jeune Homme Vert, Madame Rose, Je vous écris d'Italie - se bem que a minha preferência se fixe nos dois que citei antes.
Viveu muitos anos entre a Grécia e a Irlanda, procurou os prazeres dos países tranquilos e dos céus diferentes. 
Escritor que pertenceu ao grupo dos Hussards, grupo que incluia também Roger Nimier (autor de Le Hussard Bleu que deu nome ao grupo). 
 Déon festeja os 95 anos, na Académie Française

Em 1978, foi escolhido para a Académie Française. Não ganhou nunca o Prémio Nobel, mas isso pouco importa porque foi lido e amado por muitos leitores de bom gosto. 
Em 1970, porém, recebera o 'Prix Interallié' pelo livro Les Poneys Sauvages, saído na Gallimard.
Escreve Josyane Savigneau, em Le Monde de hoje: "O seu amor pela descoberta era uma felicidade que ele sabia partilhar. Lia as novidades feliz por ver aparecer novos escritores.”
A mim interessou-me sempre o seu entusiasmo, a sua humanidade e o sentido alto da amizade e do dever. Várias vezes ‘usei’ passagens dos Póneis Selvagens para falar aos meus alunos desses sentimentos. Nos tempos em que ensinava, tive turmas muito interessadas pelas artes e pela literatura - por vezes, basta 'provocar' as pessoas para elas se interessarem!- e falávamos de filmes, de livros, de sentimentos nobres, de liberdade de escolha. De tudo um pouco!
E era o filme de Peter Weir - "O Clube dos Poetas Mortos". E era Les Poneys Sauvages (1970) de Déon -romance que muito me tocara na altura em que o li pela primeira vez. E outras vezes se seguiram porque é um livro muito interessante.


Lia-lhes, então, o capítulo em que o velho Professor Dermot Dewag se despede dos alunos – alunos de quem fora durante anos  ‘tutorship’, em Cambridge- Georges Saval, Barry Roots, Horace McCay e Cyril Courtney. A Guerra vai rebentar, os tempos são confusos, um mundo vai acabar. 
E que lhes diz "A loucura dos homens torna ainda mais sábia o meu retito..."
Nesse ano, lembro-me,  eu ia partir para África e quis deixar-lhes uma mensagem forte. Ilusão minha talvez… ou talvez não. Creio que nenhum gesto é inútil.
Sibilla Delphica, de Michelangelo
E já que são as ilusões e os sonhos que nos fazem viver e dão sentido à vida, aparentemente absurda, vou recopiar esse texto. 
É um dos alunos do Professor, Georges Saval, que conta ao narrador(1):
“O professor Dewag vai deixar a Universidade e voltar à Irlanda e quer que nós os quatro continuemos a escrever-lhe. Vê cair sobre o mundo a catástrofe predita pelo Apocalipse. De mão estendida sobre a salamandra apagada, fez-nos jurar que recusaríamos um destino medíocre. E que iríamos em socorro uns dos outros sempre que fosse preciso. Dewag está convencido que se quatro homens, em dois biliões de indivíduos, mantêm essa promessa, o mundo pertence-lhes,,, Jurei, mas pareceu-me um juramento pueril, o sonho um tímido de meias de seda que nunca saiu do seus livros. A guerra que nos vai cair em cima não deixa grandes esperanças aos juramentos deste tipo…” (pg.236)
Eu acredito no que o velho professor Dermot Dewag disse aos seus alunos: se um punhado de pessoas fizer um juramento idêntico, eu sei que alguma coisa vai acontecer. Algo de forte. De importante. De decisivo.
A verdade é que, apesar de desconfiado ao fazer o juramento, Georges Saval vai ser salvo, numa praia de Dunquerque, por um desses condiscípulos do grupo de então. 
É Barry Roots (pg. 243) que vai levar o corpo do colega às costas, através da areia escaldante da praia, no meio dos gritos dos soldados feridos, debaixo das balas, sem nunca o largar, batendo-se contra tudo e contra todos, desobedecendo às ordens e às proibições, até o deixar num lugar seguro, num hospital de campo. 
E salva-lhe a vida. Contra si próprio, também, e contra o seu ressentimento. Georges e Barry tinham acabado zangados na Universidade e nunca mais se tinham falado.
Creio que a época que hoje vivemos, tem muito desse pré-Apocalipse da 2ª Guerra: no desencanto, nas desilusões, nos medos. E na violência e nos perigos! 
Muitos anos mais tarde, Georges Saval dirá a uma amiga: “Estes são os primeiros póneis selvagens que vejo. E talvez sejam os últimos. Seguimos em direcção a um mundo onde cada vez menos haverá póneis selvagens”. (pg.251)
Não é simples ser-se livre e correr como correm os póneis selvagens! O peso da sociedade dos consumos vários, as injustiças, a sede de ganhos e de lucros, o desinteresse, o egoísmo são os mesmos...
No entanto, pode-se sempre seguir a última lição do Mestre Dermot Dewag aos seus alunos:
Sempre que um de vós precisar de ajuda, ou chamar o outro, ou correr perigo, os outros devem responder a essa voz.”
 Michel Déon, jornal Le Point

E quem lê hoje Os Póneis Selvagens? É interessante o que o escritor disse uma entrevista, em 2011. Michel Déon fala do sucesso dos Poneys Sauvages: 
"Nestes últimos anos acontecia-me que me parassem na rua alguns jovens, para me falarem dos 'Poneys'. Coisa  singular, pois bem sabemos que a vida dos livros não é longa. (…) Por isso fiquei curioso e quis verificar por que razão, duas gerações mais tarde, o livro continuava a interessar. Ao relê-lo, fiquei horrorizado com certos erros, não com a história, pensei até que o livro não era mau, desculpem a falta de modéstia, só que precisava de uma limpeza.

Em 2016, Michel Déon recebeu o Prix Larbaud. É, com certeza, um escritor cuja leitura recomendo! Vi que está publicado na Bertrand "O Táxi Cor de Malva"  e, na Difel, "Escrevo da Itália".

 (1) Les Poneys Sauvages, Oeuvres, Gallimard, 2006
 (2) Entrevista ao jornal Le Point, em 2011

Biografia breve:
Michel Déon nasceu em 1919, em Paris. Foi jornalista e colaborador de uma casa de edições. Viajou pelas Américas, na Europa e em África. Viveu muitos anos, com a mulher e os filhos, ora na Grécia, em Spetsaï, no Golfo de Argos, ora na Irlanda, em County Galway. 


quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Mais um Natal, com os amigos!


Os amigos andam agitados a preparar o que ainda não está feito. E eu, cansada e na ressaca da dor ciática que me tem dado cabo da paciência, continuo sentada enquanto eles falam.
- Este  ano não fazes uma árvore de Natal grande?, pergunta o Ouricinho. Estás com preguiça, depois do passeio?
Não respondo. Sei que ele tem razão: devia já estar pronta. E ainda estou a pensar em Trieste. O Ratinho respondeu-lhe, olhando de lado para mim:
- Coitada, não a vês tão cansada? Queres ajuda, Jana?
- Não sei ainda…Custa tanto a tirá-la de cima do armário!
- Pede ao Manuel. Ele sobe-se no escadote e tira-a de lá em três  tempos!
O Ouricinho estava agressivo. Chocava-o esta minha preguiça, num momento destes, "o melhor do ano", dizia  sempre.
E lá desceu do alto a árvore de Natal, grande, informe, toda embrulhada num plástico. Não me apetecia enfeitá-la. Deixei-a uns dias detrás do sofá da sala. E fui preparando a pequenina, um lindo arbusto que a Gui me deu um dia.
Está, habitualmente, ao lado da janela da cozinha virada para as grandes árvores do liceu, ali quase ao lado. E comecei a pôr uns balões pequeninos, uns corações prateados, um grande coração vermelho. Eles espreitaram-na por todos os lados.
- Está a ficar muito bonita a pequenina, disse o Ouricinho. Mas…

- Pois é, disse o Ratinho, é o tal ‘mas’. Estávamos habituados à outra árvore que até foi o Diogo que a escolheu…
- Percebo, percebo…
Pois, pois, bem percebia a chantagem afectiva. E o Ratinho propôs, rindo:
- Olha, fazemos assim: tu vais-nos contando coisas da tua viagem e assim estás distraída. Nós vamos-te dando os balões…
Encolhi os ombros, convencida. Tinha de ser!
- Boa ideia! 
O Ratinho, para me espevitar talvez, disse:
- Voaste com a "bora"? Diz lá, como era afinal a “bora” de Trieste? O  burrinho disse-nos que as coisas voavam na Piazza. E que até quiseste comprar um barrete de lã vermelho!
O burrinho é o amigo burrinho-das-chaves que viaja sempre connosco.
- Que exagero! Não comprei nenhum barrete! Bem, confesso que pensei nisso. É verdade...
E lembrei-me dessa manhã em que senti a cabeça gelar quando cheguei à Piazza dell’Unità. Na via Armando Diaz, o vento era suportável, a rua é protegida pelos antigos palácios em estilo “liberty” e há sempre modo de nos abrigar do vento. 
Mas, ao entrar no largo que vai dar à Piazza, parecia que ia tudo voar: o meu cachecol desenrolou-se, a mala caiu-me do braço e não conseguia agarrar tudo ao mesmo tempo, as luvas impediam-mo. 
A primeira coisa que fiz foi entrar na loja de chapéus que fica ao lado do que foi o Café Garibaldi - hoje desaparecido- e “quasi quasi” comprei um chapéu pequenino, daqueles dos anos 20, que estavam na moda por lá. Provei um de feltro cor de rosa, que tinha visto na montra, com um lacinho ao lado, lindo, mesmo dos tempos do Fitzgerald. 
Quando me olhei ao espelho - e enquanto a menina da loja me dizia “li sta proprio molto bene, signora…”, tirei-o da cabeça e fugi. Eu detesto chapéus, gorros e barretes! Sempre detestei. 
Enquanto ia começando a esticar os ramos da árvore de Natal grande, respondi apenas:
- A “bora” é gelada!!!
Pus um Pai Natal no cimo da árvore porque sabia que ia ser demorado o trabalho mas, pelo menos, o Natal já estava ali assinalado! Tantos Natais passados, tanta gente ida, tanta recordação nestes dias de festa. A nostalgia instala-se e prende-nos a vontade. Ficamos a olhar para dentro.
- O burrinho também contou que caíste! Hi hi hi…Tinhas descido do comboio... Hihihi e as malas andavam sozinhas a andar!
E o Ouricinho ria-se! Ora o parvo do burrinho. Senti-me ridícula. Porque essa cena foi mesmo ridícula! De facto, no regresso, quando passei por Veneza para apanharmos o avião, dei uma queda na estação.
- Magoaste-te? Era o Ratinho, atencioso.
- Não meus queridos! Tive muita sorte. Não sei como caí e, melhor ainda!, não sei como me levantei!
E vi-me em acção, cheia de casacos,  com a mala a tiracolo, a ‘conduzir’ duas malas de viagem. Uma de quatro rodinhas, super rápida, uma espécie de mala-turbo, e a outra mais antiga só com duas rodas,  coitada, lenta, e a tropeçar. Ou eu a tropeçar nela?
- Como foi?
- Sei lá! Um senhor que ia a passar disse-me, um momento antes: “Atenta signora, la valigietta a le ruote all’inverso! Così non girono...
- Um perigo! , disse o Ratinho, preocupado.
- Pois é, eu arrastava a mala em vez de a deixar rodar. Conclusão, dei por mim no chão agarrada às maletas. 
- Coitadinha! O Ouricinho era sincero.
- Na minha frente, estavam dois namorados, num banco, a olharem,  curiosos e…
- Ajudaram-te?, perguntou ansioso o Ouricinho.
- Não. Não sei como fiz mas vi-me, de repente, em pé. Tinha-me levantado sozinha. Mesmo na minha frente estava aquele par de jarras a olhar.
- Não disseram nada? Era o Ratinho, crítico.
- Disseram, disseram, mas creio que o espanto foi tal por me verem ‘aterrar’ assim que nem tiveram tempo de pensar.  
- Eram lentos! E o Manuel não te ajudou?
- O Manuel vinha atrás agarrado a outra mala…
E desatei a rir. Que história tão estúpida. Continuei a rir enquanto lhes contava o resto.
- Mais adiante, um senhor muito gentil disse: “Signora, atenta…” Desta vez, era o casaco comprido que arrastava pelo chão, pendurado de uma das malas. O meu casaco preto novo!
Desta vez foi a Gatinha que comentou, abanando a cabeça:
- Ah, Veneza, Veneza…
E achei que ela entendeu tudo o que eu pensei nesses momentos. E concordei com ela.
- Sim! Ah, Veneza, Veneza, tão bela e tão transformada! Cheia de turistas e a pregar-me partidas destas!
Do alto da Ponte Nova de Calatrava, vi-a linda como sempre naquela tarde de Outono. A beleza eterna do Canal Grande, indiferente aos turistas e a tudo. Uma névoa ligeira começava a surgir junto à água do canal e um vaporetto subia, calmo, em direcção a San Marco. Fiquei pensativa a recordar aquela maravilha que durou poucos minutos. 
- E o resto da viagem foi boa? Arranjaram amigos por lá?
Como ter tempo para lhes explicar quanta gente maravilhosa encontrei por Trieste!
- Sim, muitos amigos! Amigos de sítios diversos! Croatas, eslovenos, marroquinos. Italianos do Norte, do Sul, da Sardenha. E até uma cubana, bailarina!
- Turistas?, perguntou o Ouricinho que é sempre o mais curioso.
- Não. Trabalhavam lá. Nos cafés…
- Turistas?, perguntou o Ouricinho que é sempre o mais curioso.
- Não. Trabalhavam lá. Nos cafés, sobretudo nos cafés. Algumas estavam a estudar.
- Chamavam-se como?
- Muitos nomes bonitos! Halima, Anika, Amarilda, Dragana. Algumas tinham estudado já muitas coisas! A Anika la blonde andava a aprender francês e falávamos sempre em francês. Ficámos amigas!
- A mania dos amigos... No Facebook, não? Virtuais... O Ratinho é muito crítico nestas coisas.
- Amigos são amigos, disse o Ouricinho. E que mais???
- Muitos estudantes festejavam a licenciatura!
De facto, naquela data de fins de Outubro, momento em que alguns acabam a licenciatura, havia grupos de jovens estudantes acabados  de formar que se passeavam pela cidade e se divertiam. 

Encontrámo-los no restaurante "Angelina", a ver as "Sartine" no porto, na Piazza della Borsa, por toda a parte. E, sobretudo, no Caffè Degli Specchi.
- E usavam coroas verdes de folhas de louros verdadeiros, na cabeça!
- Como o Nero?! Era o Ouricinho.
- Sim, como o imperador Nero!
- Conta mais ! Conta mais…
- Se conto mais, não acabamos a árvore de Natal grande…

E foi assim que os convenci. Havia ainda tantas coisas para contar! Para já, íamos começar a enfeitar a árvore. No meio do trabalho, ouvimos tocar a campainha da porta. 
- É uma menina para ti!
Fui ver. E descobri uma linda coelhinha vestida de cor-de-rosa!
- Quem és? Donde vens?
Muito mimosa, respondeu:
- Sou a Coelhinha Rosetta. Venho de Portalegre mas sou italiana... Manda-me a Mané para passar aqui o Natal.
- Ah! Entra Rosetta. Sei la benvenuta... 
Logo os amigos se aproximaram:
- Ciao, Rosetta! Vens ajudar-nos com a árvore?
Eu fiquei contente. A Rosetta estava encantada em frente da árvore pequenina e só dizia: "Che bello! Che bello!"
Deixei-os, na conversa, a tirar os balões da caixa e a enfeitarem a árvore, e sentei-me no sofá a ler! Por acaso, é um livro italiano, que me aconselhou em Veneza no ano passado a Nicoletta Trentin.

Comprei-o em Trieste e chama-se "Testimono inconsapevole" e é de Gianrico Carofliglio. Tinha aberto a primeira página quando senti alguém a puxar pelo livro.
- O que é? É bom?
Era o Ouricinho!
- Não sei, Ouricinho, comecei agora...
- Então lê. Eu fico aqui a descansar ao pé de ti. A Rosetta só quer falar com o Ratinho Poeta...
Ah! os amigos e os ciúmes dos amigos! E lembro Trieste e a noite na Piazza dell'Unità. E os amigos e as amigas. E a Amarilda que me mandou esta fotografia ontem...