Há
uns dias, pensei fazer um bolo e fui para a cozinha organizar-me. Esperava
umas amigas e quis provar a mim mesma que ainda faço tudo pelos amigos: mesmo
bolos. Coisa que detesto fazer!
Os amigos vieram atrás de mim, claro. Nunca me largam.
-
Para que servem estas coisas boas que aqui puseste na mesa? Nozes, açúcar 'mascavado', canela em pauzinhos?
Era
o Ratinho.
-
Mascavado? O que é isso?, perguntou o Ouricinho.
Um
pouco hesitante, o Ratinho explicou:
-
É o açúcar que não foi refinado. É mais puro, faz menos mal acho. Já li sobre
isso.
Eu
continuei a explicação:
-
É um açúcar que vem quase directamente do melaço. É a cristalização do mel do
engenho e tem esta cor meio dourada, meio castanha. Também lhe chamam açúcar “mascavo”.
-
Pois. E é para um bolo? Que bolo vais fazer?
-
É um bolo de mistura, Ratinho. Bolo da minha avó. Ela chamava-lhe ‘bolo podre’.
A Florinda também o fazia.
-
O quê? Bolo podre? Então não presta…
O
Ouricinho estava preocupado.
-
É só o nome, Ouricinho. De resto, só leva coisas boas. Leva mel, laranja,
canela…
O
Ratinho disse, a rir:
-
…açúcar mascavado…
A
verdade é que não era nada o bolo da minha avó, era um bolo inventado, duas
receitas misturadas.
-
Ah…disse um.
-
Ah…disse logo o outro.
Entreolharam-se
e começaram a falar baixinho entre eles. Ia ouvindo umas coisas.
-
Está a inventar, parece-me. Ela não sabe fazer bolos!
O
Ratinho é um céptico. E foi continuando na crítica.
-
Já viste a batedeira dos bolos? Não presta para nada.
O
Ouricinho deu um longo suspiro.
-
Pois foi, ofereceu a tua Kenwood grande à Svitlana! A Gui até ficou furiosa porque
era com ela que fazia os croquettes de carne, batia o puré da batata, fazia o
pastelão e tantas comidas boas!
-
Sim. E a “mousse”! E o bolo de chocolate de que o Diogo gostava tanto. A Gui
sim que sabia fazer bolos tão bons. Que pena!
Havia
saudade na voz do Ratinho. E aquele “que pena” seria a pensar em mim ou na
recordação desses bolos maravilhosos da Gui de que tinha saudades, mas nunca
comera! Que mentiroso!
Fingi
que não os ouvia e pus mão à obra. Ia falando comigo, furiosa: “Claro que a batedeira é uma porcaria. Faço um
esforço enorme e as pás tremem de tal maneira no fundo da tigela que estou
sempre a ver se não se vira ou se não cai tudo para o chão. Oh, sim, tenho saudades
da velha Kenwood que tanto me ajudou em Itália. Paciência”.
De
repente, pensei:
“Mas os
bolos são bolos e no fim sabem sempre ao mesmo!” Fiquei aliviada, de facto
não há nada como um pensamento positivo.
Mas
a verdade é que nem esse pensamento ajudou. Por pouco não caiu a tigela das
claras batidas no chão e, a agarrá-la, já tinha a mão dentro da tigela do bolo e,
à minha volta, tudo estava salpicado de bolo desde a torradeira à máquina de
café.
E
eles olhavam-me, empoleirados no lava-loiças para verem melhor. Pareciam
receosos, talvez se lembrassem da história do João Ratão caído no caldeirão.
Eu,
nervosa, já mexia o bolo com uma colher de pau. Ainda fiz mais confusão. Eram
as claras em castelo a desfazer, o sumo de laranja, o mel, a raspa da laranja,
as nozes partidas. Ia deitando tudo ao mesmo tempo e caiam para dentro da taça. Queria
lá saber.
Olhei-os de lado. Eles estavam sossegadinhos só a olhar e até
pareciam contentes.
-
Parece bom, sussurrou o Ouricinho.
-
Mas ainda falta ir ao forno. A prova do fogo! Hihihi!
O
Ratinho ria com vontade. Não lhes disse palavra. Não sabia se devia sentir-me ofendida.
Tanta desconfiança em mim. Pus o bolo no forno, verifiquei a temperatura e eles
a espretarem, desconfiados.
“Ah,
bichinhos de pouca fé!”
Quando fui ver o bolo, lá vieram as duas cabecinhas espreitar. Já
havia sorrisos.
- Mais um bocadinho...
-
Cheira bem, não achas Ratinho?
-
Hum, parece que sim.
Mais uns minutos de espera. Furei
o bolo com o palito e como vinha seco, irei a forma e embrulhei tudo num pano
molhado, não fosse queimar-me, ou, pior ainda, deixar cair o bolo no chão ao virá-lo.
Pu-lo no prato de vidro.
E
ouço:
-
Ó Jana, está lindo!
O
Ouricinho estava sempre pronto a admirar os outros. Sem reservas. Sorri-lhe.
-
Gostas?
O
Ratinho então disse, com filosofia:
-
Confesso que parece feito numa pastelaria. Parabéns querida Jana! Nós sabíamos
que ias conseguir!
“Grande
malandro!, pensei. A fingir que não tinha pensado que eu não era capaz de fazer
bolos como a Gui!”
-
Posso provar?, perguntou o Ouricinho, que é muito guloso.
Para
os castigar de tanta desconfiança para com a cozinheira, só disse:
-
O bolo só se parte quando chegarem as convidadas.
-Oh,
disse o Ourinho, tu sabes que elas vêm sempre atrasadas. Quando é que vamos
comer o bolo?
Era
verdade, as minhas amigas e queridas alunas têm o hábito de vir sempre sem
olhar para o relógio. A últma mensagem da Marty era: “atrasadas como sempre mas já no caminho”. E eu respondera com outro sms: “o principal é chegarem!”
-
Sabes que vêm levi-levi. Meninas de São Tomé, disse o Ratinho, encolhendo os
ombros. Mas são tão giras! E gostam muito de ler.
De facto, elas iam sempre espreitar os livros.
Eles
tinham compreendido. Foram sentar-se no sofá à espera da Valéria, da Marty e da
Kuty. As minhas alunas de há dez anos, no curso da noite. Inteligentes, cultas,
cursos feitos a trabalhar e hoje formadas. Tenho orgulho nelas. Foi isso que
expliquei ao Ratinho e ao Ouricinho, os três sentados no sofá.
À
espera do bolo.