Quem
conheceu a Florinda nunca a esquecerá. Lembro-me
dela desde os meus quatro ou cinco anos. Sei que foi para casa dos meus pais
quando a minha irmã mais nova tinha seis meses, por isso é fácil fazer as
contas: eu tenho mais quatro anos do que a minha irmã.
Alegrete, hoje
Ela
tinha dezassete anos e vinha da vila de Alegrete onde o meu pai fora médico alguns
anos e onde deixara saudades.
Não
sei quantos anos faria, mas lembro-a com saudade. Morreu cedo, com um
cancro de estômago, estava eu já a viver em Roma.
As
datas confundem-se e já não existe quem me diga os tempos certos mas não
importa.
A Florinda viveu em casa dos meus pais durante toda a minha infância e
adolescência e marcou-me essa jovem mulher, ávida de cultura e de conhecimento,
que amava a beleza, em todas as suas formas.
Com
um temperamento sensível, estava sempre pronta a captar tudo o que a
interessasse. A beleza era uma dessas coisas.
“O que é o Belo?”,
pergunta Baudelaire, em “Le spleen de
Paris” e diz:“Encontrei a definição de Belo,
do “meu” Belo. É algo ardente e triste, um pouco vago, que deixa lugar à
conjectura..”
Sempre soube que a Florinda era capaz de entender este conceito de Belo. Porque havia
espanto nela, entusiasmo, surpresa agradada, algo de ardente e certa tristeza.
A
Florinda tinha a sua beleza especial, interior, detrás do olhar melancólico e
observador, atenta a tudo. Era alguém com muita sensibilidade e inteligência.
Com
a sua terceira classe mal preparada, sabia claro ler, escrever e contar. Mas a
situação dos pais pouco mais lhe permitira.
A
morte da mãe deixara-lhe um desgosto e um vazio imenso. E o pai, sem mulher nem
ninguém que lhe desse ajuda, teve de por as três filhas a servir, palavra dura
que nunca expressará devidamente o que esse estatuto era e permitia.
Recordo
as palavras da Adélia, sua irmã mais nova, me confessar: “O dia mais triste da minha vida foi aquele em que saí da minha casa
para ir servir”. Dela como nossa.
A
Florinda queixava-se pouco dessa condição. Penso, no meu coração, que talvez
por ter sido tão amada por nós todas não tenha sofrido tanto: aquela era a “nossa
casa”.
Não
pôde ir tão longe quanto deveria e poderia, mas quis melhorar-se a si própria,
aproveitando o que estava ao seu alcance.
Absorvia,
como uma esponja de verdade, tudo o que era cultura e educação à sua volta.
Naqueles
tempos e na sua situação, podia dizer-se que, a seu modo, era uma mulher culta.
Alegro-me
que fosse em casa dos meus pais e, mais tarde na nossa casa, que ela tenha tido
acesso a outras coisas que apreciava.
A
Florinda era muito mais do que vou contando nestas páginas que lhe quero
dedicar.
Havia,
nela, o encanto pela beleza, a cultura, a música. Os artistas, a Literatura e a
Arte em geral, exerciam sobre ela um grande fascínio. Deslumbrara-se desde
muito nova com reproduções de quadros do Impressionismo que os meus pais
traziam de Paris. Gostava do pintor Renoir e encantava-a o quadro “Les amies”
que era também um dos meus preferidos.
Pierre-Auguste Renoir "Les amies"
Outro
das suas gravuras preferidas era “Les Amoureux” de Picasso que depois de uma
dessas viagens a Paris foi colocada na salinha do piano.
Como
sei que um dos momentos grandes da sua vida foi quando conheceu o poeta José
Régio.
Picasso, "Les amoureux"
A
Florinda gostava muito de ler e um dos seus escritores preferidos era Júlio
Dinis. A Morgadinha dos Canaviais era um livro que amava e a deixava
sonhadora.
A Morgadinha, personagem favorita, tocava-lhe no coração a coragem, a finura e a generosidade; no entanto, sabia apreciar o humor e a bonomia das páginas d’ “As Pupilas do Senhor Reitor” ou de “Os Fidalgos da Casa Mourisca”.
A Morgadinha, personagem favorita, tocava-lhe no coração a coragem, a finura e a generosidade; no entanto, sabia apreciar o humor e a bonomia das páginas d’ “As Pupilas do Senhor Reitor” ou de “Os Fidalgos da Casa Mourisca”.
Recordo,
como se fosse hoje, estarmos a ouvir, no rádio da cozinha, os episódios desses
folhetins.
Eram
eles o equivalente das telenovelas de
hoje mas com a vantagem de assentarem em textos de nível. Também me lembro d “A Mulher de Branco”, de Wilkie Collins,
outro folhetim radiofónico. “Ouço” ainda o locutor anunciar, com voz tétrica o
título -já que se tratava de um romance policial.
Foi
o meu primeiro livro policial pois fui logo comprar o livro - saído nas Edições
Romano Torres - à loja do Senhor Tiaguinho, na rua Direita, que era a nossa
livraria preferida porque a mais completa na escolha.
A
Florinda gostava de aprender tudo e imitava, com coragem, tudo o que nós
fazíamos, desde, às leituras até à
vontade de andar de patins e, mais
tarde, quis aprender inglês connosco quando entrámos para o liceu - e tinha o
seu caderno.
Sentávamo-nos
em redor da mesa da cozinha que, no Inverno, tinha por debaixo da camila de fazenda, uma braseira.
Ficávamos
perto da chaminé, aproveitando o calor do fogão de lenha. Primeiro éramos
só eu e a minha irmã mais velha, mais tarde acompanhava-nos a irmã pequenina.
As
brasas meio acesas e as cinzas quentes tornavam confortável o ambiente da
cozinha. Aqueciam as costas da Florinda que se sentava de costas viradas para o
fogão.
Havia também grandes conversas sobre a vida! É nessas conversas que aparece sempre o meu primo Marco, que já andava no liceu e gostava muito de nos ensinar coisas científicas e me emprestava muitos livros do Júlio Verne.
Numa tarde, vimos as cegonhas através da janela da cozinha. Passavam sempre, porque havia, perto da estação, muitas árvores com ninhos de cegonhas!
A
minha irmã mais velha perguntou, logo:
-
Mas afinal de como é que vêm os bebés, Florinda?
-
Bem, há muitas maneiras, disse ela com um ar compenetrado.
-
Há os cestinhos e há outras coisas. Mas elas
preferem trazer os meninos numa fralda dobrada, com um nó, bem seguras no bico.
-
De verdade?, perguntei eu.
-
Bem, eu ouvi dizer que é o que elas gostam mais…
O
Marco espreitava-nos, por detrás do livro que fingia ler, com um olhar
desafiador e irónico.
-
Não é verdade!
E
ria-se. Não lhe ligámos atenção nenhuma. Ele gostava de criticar as nossas brincadeiras
e queria explicar-nos tudo cientificamente.
Era
um aluno estudioso e gostava de nos ensinar. Recordo bem que foi ele que me
emprestou os livros do Jules Verne - que tanto me interessaram.
A
minha irmã não aguentava a curiosidade e insistiu:
-
Mas como? Explica lá, Florinda?
-
Há cestinhos e há outras coisas. Eu acho que elas preferem trazer os meninos nas
fraldas, bem seguras no bico, é o que elas preferem.
O Marco ria, agora sem se esconder.
E ela continuou a cortar o feijão verde, ou a descascar ervilhas, impassível, sem nos olhar. A Florinda nunca estava parada, a não ser quando, depois do almoço,
O Marco ria, agora sem se esconder.
E ela continuou a cortar o feijão verde, ou a descascar ervilhas, impassível, sem nos olhar. A Florinda nunca estava parada, a não ser quando, depois do almoço,
***
Vem-me
uma grande nostalgia ao lembrar também as noites de Inverno da nossa infância. A imaginação poética da
Florinda ia para além do imaginável - uma imaginação poética, cheia de figuras
lendárias, de fadas, de príncipes e princesas.
Como
se foi ela lembrar do burro cor-de-rosa? Fazia parte da memória inventada de
outra vida em que fora personagem, num mundo extraordinário. Era um conto que
escolhia para nos fazer estar quietas. Eram as histórias que preferíamos. Ela
ia descascando batatas, cenouras, ou ervilhas e lavava-as no alguidar de barro que
tinha ao lado.
- Eu era uma princesa, dantes – começava, com o olhar perdido na lonjura, para lá
de nós e da cozinha.
-
Sim, eu era filha do rei de Alegrete e tinha muitas terras. Nesse reino, havia
sol o dia todo e à noite no céu escuro viam-se brilhar as estrelas como
vidrinhos! Ou, melhor, pareciam cristais…
- Que bonito!, pensei.
- Que bonito!, pensei.
Renoir "A primeira saída"
- E eu vestia-me de azul...- Sim, era filha do rei e tinha vestidos de seda, sapatinhos de cetim, brincos de oiro e esmeraldas. E anéis e colares de pedras de várias cores.
Estávamos de olhos muito abertos. Ela disse, a olhar para nós:
-
Não sabiam, pois não? E tinha também um burrinho cor-de-rosa.
Era
a primeira vez que falava do burrinho cor-de-rosa e entreolhámo-nos e ver se
seria verdade.
-
Um burro cor-de-rosa, Florinda?, perguntou a minha irmã. Um burro de verdade?
A
Florinda explicou, tranquila:
-
Os reis podem ter os burros que quiserem. De todas as cores. São reis…
-
Não há burros cor-de-rosa!, pensei para mim, a decidir se ia acreditar ou não.
Renoir "Meninas a ler"
- E eu vestia-me de azul...A minha irmã virara-se a ver o que eu pensava, mas eu não dizia nada. De olhos perdidos, imaginava já o burro cor-de-rosa, os olhos doces do burrinho, o pêlo macio por onde devia ser bom passar a mão. A imaginação dela era tão forte que nos contagiava. Ia enriquecendo a história de pormenores maravilhosos.
Ao fim e ao
cabo, o que me importava se era verdade? Era a Florinda que contava e ela sabia
tantas coisas…
Acabei
por concluir: “Se calhar há burros
cor-de-rosa!”
E
sorri, contente, enquanto a Florinda continuava:
-
Tinha as orelhas cinzentas o meu burrinho. Pareciam mesmo de veludo. E uns olhos
azuis muito abertos e as pestanas grandes.
Olhou-nos
de lado, a ver o efeito das suas palavras. Acreditávamos?
-
De olhos azuis?, perguntou a minha irmã, encantada. Ela era uma sonhadora, que
tinha criado para si própria uma figura, a Lili
Viloíno como lhe chamava, que tinha existência só para ela.
E
nós acreditávamos em tudo.
A
Florinda ia dizendo:
-
Tudo era diferente, nessa altura. Eu era loira, penteada aos caracóis. Era uma
princesa muito bonita…
-
E depois, Florinda?, perguntou a minha irmã.
-
Todas as manhãs passeava no meu burrinho, vestida de branco, com uma capa azul
esvoaçante e uma coroa de flores na cabeça.
-
E depois, Florinda?
Agora
era eu que perguntava.
-
Conta mais coisas!
Ela
entristeceu e encolheu os ombros como se o que ia contar a seguir fosse culpa
do destino inevitável.
-
Um dia o meu pai quis voltar a casar! E passei a ter uma madrasta muito má. Era
uma bruxa com grandes poderes e uma varinha mágica negra, com a qual podia
destruir tudo. E…
Calou-se,
a ver a janela que dava para o jardim dos limoeiros.
-
Oh Florinda, disse eu, triste. O que te aconteceu?
Adivinhávamos
o que estava para vir.
-
Um dia, tudo acabou.
-
Como?, perguntei, querendo guardar alguma esperança.
-
Pois, meninas, a verdade é que a bruxa má ‘tocou-me’ com a varinha mágica e lançou-me
um feitiço. E assim foi. Acabou a minha bela vida, os vestidinhos de seda, os
sapatos de cetim. Tudo!
-
Ai, Florinda, coitadinha!
Olhávamos
para ela, com angústia.
-
E fiquei sem o burro cor-de-rosa. Já não sou princesa, nem loira, nem bela…
Não
tínhamos coragem para dizer nada. Claro que não havia dúvidas que o burrinho
tinha existido!
Tínhamos estado a patinar nessa manhã na garagem dos meus tios, na
casa da Boavista.
-
Eu também quero experimentar!
E
ninguém mais lhe tirou a ideia da cabeça. Sentou-se numa cadeira e atou as
fivelas dos patins, levantou-se e quis começar a patinar.
Grande
aflição a sua, aos “ais”, agarrada com força à mesa; depois quando soltou as
mãos lá foi, toda inclinada para a frente, as rodas dos patins incontroláveis, a
deslizar até ao lava-loiças. Ali ficou abraçada à pedra do poial, a tremer, os
pés, descontrolados a baterem, ora um ora outro, no armário de madeira.
Confesso que nós rimos dela às escondidas, antes e a irmos ajudar a tirar os patins. Senti-lhe o coração bater no peito, com força.
Confesso que nós rimos dela às escondidas, antes e a irmos ajudar a tirar os patins. Senti-lhe o coração bater no peito, com força.
Ela
disse, sem desanimar: "Amanhã experimento outra vez!"
Mas
nunca mais experimentou.
Jarra de flores, de Odilon Redon
Hoje recordo-a e é como se a visse. Deixo-lhe estas flores no seu dia de anos.