domingo, 29 de julho de 2018

Um susto do Ratinho e amigos...Outra viagem?!



Tenho andado um pouco desorientada. Acontece-me, de tempos a tempos, quando a vida normal se altera e, por exemplo, penso em viagens e em mudar a minha rotina um tanto simplista mas a que me habituei e de que gosto…

“Eles”, que me conhecem melhor do que ninguém, percebem logo que alguma coisa paira no ar: coisa boa ou preocupação?, ou mesmo coisa má? Andavam desconfiados.

Hoje, ao pequeno almoço, estava na cozinha a beber um café com bocadinhos de chocolate e a ver a fruta belíssima que ontem me ofereceram. Um prazer para os olhos.

O Ouricinho - que, como sabemos, não é nada tímido - ousou perguntar-me:
- O quê? Vais viajar outra vez?! Andas tão alheia a tudo...
Havia uma certa censura na voz, talvez por nunca lhes ter falado directamente do assunto. A verdade é que eles sabiam da viagem, tinham uma ideia vaga do destino e tudo, mas faltava a conversa a sério e a data da partida. Olhava fixamente para um tomatito do feitio dum coração.
O Ratinho, fingia-se entretido com um caderno preto e branco que parecia um bloc-notes, e espreitou pelo canto do olho. O Ratinho sabe muitas coisas que não diz.
E ouviu-se, logo a seguir, a voz fina da gatinha japonesa, talvez a imitar o  verso da joaninha do poema:
- “Viajar sim, mas para onde?”…
Até agora, pensara apenas que ia ser uma viagem tranquila, a descobrir lugares desconhecidos, mas aos quais me sentia ligada por livros e escritores. Partir, significa sempre para mim voltar às odiadas maletas, aos preparativos de dias, e às dúvidas sobre aquilo de que me vou esquecer e não lembrar. 
 Mas esta viagem ia ser tão especial! 
Vem-me à memória Steinbeck e o “Tortilla Flat” (O milagre de São Francisco), livro extraordinário.


Ou “A um deus desconhecido”. Ou “O Inverno do nosso descontentamento”. Para não falar do romance “clássico” de que todos nos lembramos decerto: “As vinhas da ira”.
Todas as histórias se passavam em lugares, cidades que, confesso, me deixaram cheia de curiosidade. Ir vê-los agora? – quem o julgaria possível? 

As Highways gigantescas, com paisagens extraordinárias, que vão de São Francisco para o Sul?

Os mares "de cor azul da prússia" que ficam do outro lado do Pacífico? Terras de mistérios, de pegos profundos nas rochas. De belas paisagens de pinheiros. 

Tudo perto de Tortilla Flat que era o nome do bairro. Perto do mar de Monterrey, dos pinhais marítimos do Carmel, debruçados sobre as águas. Se calhar estava a inventar um pouco, mas acontece-me, gosto de imaginar… 
Como se adivinhasse o que pensava, o Ouricinho perguntou-me:
- E os índios e os cowboys ainda lá andam? A Califórnia e essas coisas assim. Sei que nunca te curaste dos filmes de aventuras…
- Sim…
Não adiantei mais nada, não era bem neles que estava a pensar mas no meu subconsciente isso sim, os filmes de cowboys e índios estavam.

Nesse momento, o Ratinho dignou-se pôr o caderno de lado e disse-me.
- Não é bem nisso que estavas a pensar. Os filmes sim – mas os livros? Pensavas no “Tortilla Flat” não era? Vi-te nos olhos. 
E explicou aos outros dois:
- Chama-se “O milagre de São Francisco” em português. Era nele que pensavas não era? Quem esquece esse milagre?
- Um milagre?, interrompeu-o o Ouricinho, de olhos bem abertos. O Ratinho já descobrira não sei onde o livro que tinha guardado de parte para reler. 
O Ouricinho já estava de focinhito mergulhado na capa a ver o que era. Ri-me. Era tão ingénuo e bom o Ouricinho. Tão transparente. 
O Ratinho disse:
- Ele há tantos milagres! E acrescentou logo:
- Este é o da amizade, não é ?
Eu pensava que tinha lido o livro há pouco tempo e parecia ter-se esvaído todo, na cabeça. Ficara-me um sentimento bom, um calor dentro.
- Comprei-o na papelaria de Porto Covo há uns quatro ou cinco anos. Como o tempo passa! Lembram-se? Dessa vez foram comigo…
- Fomos sim e gostei tanto! E tu, Ratinho?
- Muito, claro.
Tive saudades de Porto Covo, da tranquilidade desse tempo, da boa comida, dos amigos, das praias - do meu Alentejo entre o mar e a charneca, como costumo chamar-lhe. Passaram mais de cinco anos.
O livro lembro-me bem de o comprar! Numa nova edição dos Livros do Brasil.
Uma história dolorosa, de amizade, mas de frustração, de vidas perdidas, de sonhos e de desilusões. Coisas difíceis, lutas e desistências. E, sim, de amizade ou generosidade e de dedicação, de fidelidade à adolescência e aos amigos. 

Eles olham para mim, e continuam à espera, em silêncio. Preocupados ainda. E disse-lhes:
- Vamos a São Francisco!
Todos sabíamos afinal mas não tínhamos “nomeado” a viagem.
- E nós também vamos?, era o Ouricinho ansioso.
O Ratinho olhava calado e a Gatinha japonesa pusera um ar tímido outra vez.
- Se vos levo? Claro que sim! O tempo passa cada vez mais depressa e não quero perder nem um minuto do tempo dos meus queridos amigos!
Fui dar um beijo na testa do Ouricinho que se estendeu no sofá todo contente -e continuei. Acho que o Ratinho teve ciúmes, mas não o mostrou.
- Como deixar para trás os amigos mais fiéis? Vão, sim!
- Quando?
- Vamos dar tempo ao tempo. Nada de pressas, há coisas a tratar com calma.
- Levas-nos a ver Alcatraz? Era o Ratinho, claro. O Ratinho sabia tudo!
- Ó Ratinho, o que era Alcatraz?
- Amigo Dan, é a prisão mais famosa do mundo! Fica numa ilha, era quase uma fortaleza e super-vigiada! Há um filme que se chama "Fuga de Alcatraz", de Don Siegel, com Clint Eastwood. Esses conseguem fugir!
- Ah….
E o Ouricinho pôs um ar preocupado.
- Claro que vamos ver Alcatraz!, respondi. 
- Não é perigoso?, pergunta o Ouricinho.
- Não, já está fechada! 
O Ratinho sorria.
- E a floresta das sequóias gigantes e centenárias?
A Gatinha perdera a timidez. Vermelha de excitação, olhava-me com ardor entusiasmo.
- No Japão falava-se muito dessa floresta e dos belos Parques Naturais, os mais bonitos dos Estados Unidos…
O Ouricinho voltou a falar:
- Tu não queres dizer, mas nós vamos é ver a Gui!
E a conversa ficou por ali. Fugiram para a varanda, a rirem, e eu fiquei a olhar pelas vidraças. A noite caía e o céu estava azul e rosa. É tão bonita a hora do crepúsculo.
Chandler e Hammett, 1936

Estava a “ver-me” em São Francisco, desta vez dentro das histórias do Chandler e do Hammett. Frisco, como eles lhe chamavam! A cidade das subidas e descidas íngremes, dos carros eléctricos que lembram os de Lisboa e que giram por toda a cidade. Penso no "Vertigo" de Hitchcock...

Sim, a mítica cidade dos romances que tanto amei espera por mim! Será possível?

sexta-feira, 27 de julho de 2018

"Lá no Água Grande", recordação da poetisa Alda do Espírito Santo

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"Lá no Água Grande", óleo de Armindo Lopes (1085)

As ilhas de São Tomé e Príncipe voltam muitas vezes ao meu pensamento. Escrevi algumas pequenas crónicas de recordações das maravilhas que vi, que senti, que vivi nessa terra onde a afectividade era uma moeda de troca importante.
Vou falar de Alda da Graça Espírito Santo, uma figura sagrada das Letras e da Política da ilha. Nasceu em São Tomé, em 30 de Abril de 1926, e morreu em Angola, em 9 de Março de 2010. Viveu grande parte da sua vida - e estudou- em Portugal.
Passaram os 43 anos da independência de São Tomé e Príncipe. Quando, em 1975, o país se torna independente, Alda Espírito Santo foi chamada a ocupar cargos muito importantes no novo governo.
 Alda Espírito Santo no CCP
Alda Espírito Santo e Manuel Poppe (Conselheiro Cultural da Embaixada de Portugal e  Director do Centro Cultural Português)

Mulher forte, de espírito crítico acerado, aliado a um humor extraordinário, era uma mulher imponente, psicológica e fisicamente. Mulher de quem fiquei amiga, nesses cinco anos que vivi em São Tomé, de 1991 a 1996.
Leio os poemas “Lá no Água Grande”, ou “Descendo o meu Bairro” ou, ainda, “Em torno da minha baía” e reencontro as minhas memórias misturadas com as gentes, com a paisagem, com a realidade e com a vivência das mulheres que conheci, com quem privei e de quem fiquei amiga.
O “Água Grande” era o rio que atravessava a cidade, dividindo-a ao meio. Água era o nome que se dava aos rios, em São Tomé. Lembro outro rio: o “Água-Izé” (Rio dos camarões) que passava na roça do mesmo nome, onde havia cultura de flores tropicais - que eram vendidas para todo o mundo: a ‘rosa de porcelana’ - que tinha no meu quintal mas que nunca vira antes- é uma flor sem perfume com pétalas que parecem enceradas e com variados tons de rosa, e são invulgares.
o rio Água Grande (foto M.J.F, 1995)
Mas o Água Grande era também o bairro central da cidade capital, o local onde o comércio se desenvolvia, onde havia a pequena livraria-papelaria e impressora, as lojas de panos, o barbeiro, a farmácia, os alfaiates e as costureirinhas que estavam no largo do Mercado.
Foi na Rua Morta, ali muito perto, que vivemos os primeiros meses de São Tomé. Na Rua Morta aprendi os primeiros conhecimentos sobre as gentes, os lugares, o quotidiano da gente da ilha. E foi na Rua Morta que comecei a ter amigos. A D. Alda -como era conhecida- vivia não muito longe, no bairro da Chácara.
ôssobô ou 'cuco esmeraldino'

O rio fazia parte da vida, estava presente em cada canto, descendo lá do alto da floresta, o ôbô misterioso, quase sempre envolto nas brumas. Lá onde se escondia e onde cantava o pássaro mais belo, o ôssobô
No rio, as mulheres iam colher ervas, talvez mesmo as folhas de matabala que via rebentar, fortes, no leito do rio, entre as duas balaustradas que o protegiam das cheias. 
Comi muita sopa de matabala porque não havia batata naqueles tempos. A matabala era um tubérculo essencial na alimentação básica de São Tomé e Príncipe, juntamente com a fruta-pão e os frutos das bananeiras de vários tipos que existiam ali. Como o nome diz, a banana-pão, fazia as vezes do alimento base que seria o pão.
o "Água Grande" ( no blog Viagens-outras terras)

 O Água Grande ficou na minha memória marcado pela beleza do desenho, da força e da cor das águas na estação das chuvas, no Outono que é o da secura dos meses da Gravana (de Maio a Agosto), em que se viam seixos como na praia. 
A caminho do aeroporto e do Ilhéu das Cabras, perto das zonas pantanosas, havia porções vastas de “água”, ou braços do rio, onde as mulheres iam lavar a roupa, colorida ou muito branca, “bate que bate” como diz a poesia.
Encantou-me sempre a vida que corria ali em volta, a miudagem que ia e vinha da escola ou ia para o Liceu.
Um dos primeiros poemas de Alda Espírito Santo, e que a tornou famosa, na ilha, intitula-se “Lá no Água Grande”.

“Lá no ‘Água Grande’ a caminho da roça
Negritas batem que batem co’a roupa na pedra.
Batem e cantam modinhas da terra.
Cantam e riem em riso de mofa,
Histórias contadas, arrastadas pelo vento.
Riem alto de rijo, coma roupa na pedra
E põem de branco a roupa lavada.
As crianças brincam e a água canta.
Brincam, na água felizes…
Velam no capim um negrito pequenino.
E os gemidos cantados das negritas lá do rio
Ficam mudos na hora do regresso…
Jazem quedos no regresso à roça.”

E outros poemas se seguem, muito perto da realidade onde agora vive, poemas ‘essenciais’, simples e de grande beleza e ritmo. E cada vez mais profundamente a poetisa se entranha na sua terra. Como no poema “Angolares”.
“Canoa frágil, à beira da praia,
Panos presos na cintura,
Uma vela a flutuar…
Calema, mar em fora
Canoa flutuando por sobre as procela das águas,
Lá vai o barquinho da fome.
Rostos duros de angolares
Na luta com o gandú
por sobre as procela das águas,
remando, remando
no mar dos tubarões
p’la fome de cada dia
(…)
A canoa é vida
A praia é extensa
Areal, areal sem fim.
Nas canoas amarradas
Aos coqueiros da praia.
O mar é vida.
(...)
E o angolar na faina do mar,
Tem a orla da praia,
As cubatas de quissandas,
As gibas pestilentas,
Mas não tem terras.”
"Canoa" do pintor são tomense Nezó, de Angolares 
óleo e escultura de Nezó 

Alda Espírito Santo vivera muitos anos em Portugal, onde estudara até chegar à Universidade, fora educada na cultura ocidental. Ao regressar a São Tomé, talvez tivesse sentido –dolorosamente - que essa cultura onde vivera antes podia tê-la afastado do seu povo.
Temia que alguns dos que considerava como “seus” pretendessem afastá-la, considerando-a “do outro lado da canoa”; receava que a sua gente a julgasse distante, pertencendo a outro mundo, a outro núcleo.
Um dia escreve o poema “No mesmo lado da canoa” em que diz: “Queremos unir nossas mãos milenárias,/p’los sonhos dos nossos filhos,/ para nos situarmos todos do mesmo lado da canoa.” Ela quer pertencer à mesma realidade, pertencer-lhes!

“(…) Nós queremos ainda uma coisa mais bela
Queremos unir nossas mãos milenárias,
Das docas. Dos guindastes
Das roças, das praias,
Numa liga grande, comprida,
Dum pólo a outro da terra,
P’los sonhos dos nossos filhos,
Para nos situarmos todos do mesmo lado da canoa.”

***
 Imagino-a agora, como nesses tempos, sentada no sofá da nossa casa nova, casa branca e pintada com uma risca azul junto ao chão, rodeada do belo jardim que o Senhor Semedo, nosso jardineiro e guarda, criou para nós, com as flores mais maravilhosas e mais desconhecidas. Flores do paraíso, pensei na altura.
Ela de olhos bem abertos, a ver tudo, e eu ao lado dela – e o meu cão Zac chegadinho a mim, do outro lado, encostado ao espaldar do sofá. Eu ouvia-a com atenção, queria compreender tudo o que ela me contava e eu ignorava. Queria fazer-lhe companhia, estar perto dela.
Vinha almoçar a nossa casa, nesses tempos, algumas vezes, o Bispo de São Tomé, Dom Abílio Ribas, personagem curiosa, natural do Minho e de quem o meu cão gostava. De facto, durante os almoços, ia arranhar a batina branca do bispo para ele lhe dar pedacinhos do almoço. O bispo dava-lhe, disfarçadamente, até que um dia eu descobri. O que não serviu para nada pois tudo continuo na mesma.


A D. Alda e Dom Abílio Ribas entendiam-se, eram os dois pessoas inteligentes que bastante compreendiam da dureza da vida. A humanidade unia-os.
Com o copo de gin na mão – bebia sempre dois gins tónicos- ela observava tudo com os seus olhos vivos. Curiosidade atenta. Mais tarde essa atenção curiosa transformou-se em confiança e depois em amizade. 
Um dia, muito mais tarde, ofereceu-me um trabalho delicado feito sobre cartão negro, com um vaso, ramos e folhas pintados em branco e duas rosas de porcelana, feitas com escamas de peixe, envernizadas de cor de rosa, que guardo em penhor dessa amizade. 
Confesso que só mais tarde conheci a sua poesia. E descobri versos com uma força anímica invulgar, cortados com uma grande nostalgia que me emocionaram e emocionam.

O olhar e o sorriso eram doces, o riso podia ser alegre, mas sabia que a realidade se revelava muitas vezes amarga e dura. Sentira-o na pele, quando estudante universitária em Lisboa, fora presa pela PIDE. Queria agora identificar-se com a sua gente.

“Eu vou descendo a Chácara
Subir depois pelos coqueiros do pântano
Ao coração do Riboque (…)
E vou subindo dum lado e do outro da estrada barrenta
Com gente sentada nos caminhos,
Vendendo cana, azeite, micócó,
Com uma candeia acesa em cada porta.”

Na subida do Riboque, vivia o Osvaldo com a sua lojinha onde trabalhava a casca da tartaruga, como se fosse um ourives. Das suas mãos saíam os trabalhos mais delicados: brincos, colares, pulseiras, caixinhas de todos os formatos e tamanhos.
Na ilha, muita gente vivia desses trabalhos artísticos em tartaruga, casca de coco, osso, madeira. 
A vida era dura e tudo era um modo de sobreviver, comer e dar comida à família, quando se não é pescador. A carne da tartaruga comia-se sim, mas, sobretudo, vendia-se. 
Nesses tempos não era proibido apanhar tartarugas. 
fotografia de Ana Paula Menezes Cordeiro

Ainda comi “calulu” onde, com outros peixes fumados e muitas ervas, se misturavam bocadinhos de tartaruga. Como isso vai longe! Numa estrada, como a fotografia que pus, algures era a minha casa hoje desfigurada. 
"À beira do cais da minha baía" fotografia de Ana Paula Menezes Cordeiro

Alda Espírito Santo quer revelar a sua realidade essencial, no fundo igual, a mesma vivência dos da sua terra. Quer estar próxima, quer estar "do mesmo lado". E que o reconheçam - na força e a delicadeza com que revela o seu sonho, um sonho igual. Sentada no areal da magnífica baía de Ana Chaves, num dos seus poemas, fala disso tudo. (“Em torno da minha baía”)

Volto a pensar na baía de Ana Chaves que era o meu encanto, na sua eterna beleza e placidez. E peço emprestadas as fotografias de uma amiga, a Ana Paula, que mas enviou .
fotografia de Ana Paula Menezes Cordeiro 

Um dia escrevi: "A baía de Ana Chaves, plácida, de águas brancas, cinzentas ou azul-turquesa, eternamente bela, atraía-me  o olhar e fazia-me esquecer  a distância, o abandono.

Ia admirá-la, ao entardecer, perto da Igrejinha que funcionava como o Arquivo Histórico. Ao lado, uma acácia rubra, de flores quase mágicas, para mim, que as via pela primeira vez. Em frente de nós, o sol descia, rápido, no horizonte, rubro como as flores da acácia, e desaparecia a arder no mar."
Baía de Ana Chaves, fotografia de Ana Paula Menezes Cordeiro 

E posso imaginar bem a figura da poetisa, à beira do cais da baía, a sonhar o seu "sonho"...
“Aqui na areia,
sentada à beira do cais da minha baía,
do cais simbólico, dos fardos,
das malas e da chuva
caindo em torrente
sobre o cais desmantelado,
Caindo em ruínas,
eu queria ver a volta de mim
nesta hora morna do entardecer
no mormaço tropical,
desta terra de África
à beira do cais a desfazer-se em ruínas,
abrigados por um toldo movediço
uma legião de cabecinhas pequenas,
à   roda de mim,
num voo magistral, em torno do mundo
desenhando na areia
a senda de todos os destinos
pintando na grande tela da vida
uma história bela
para os homens de todas as terras
ciciando, em coro, canções melodiosas
numa toada universal
num cortejo gigante de humana poesia
na mais bela das lições:
HUMANIDADE.”

Nesse desejo de união da especificidade humana de que falou Marcelo da Veiga, outro grande poeta do Príncipe que viveu também muitos anos em Portugal, e que “aceitava que a cor da pele pode dar outro tom `sua poesia, que compreenda a especificidade humana: “a procura do homem total, que conheça e domine a sua essência múltipla de africano negro.”
o voo do ôssobô

E com o sonho de ambos de Humanidade, de Paz, Igualdade e Liberdade  me identifico.
***
Neste apontamento, baseei-me nas poesias e informações que recolhi no livro “Antologias de Poesia da Casa dos Estudantes do Império 1951-1963”, organizada por um grupo de poetas e estudiosos e que sai em 1994, na editora ACEI (****).
(*) Água Grande ou “Rio grande” porque a palavra água significa também "rio", em São Tomé.
(**) Outros locais a que dá vida nos poemas: “Descendo o meu Bairro”  trata-se do bairro popular do Riboque) e “Em torno da minha baía”  (a Baía de Ana Chaves).
(***) Marcelo da Veiga nasceu no Príncipe (1892-1976) e morreu em Lisboa. É o autor do belo livro “Canto do Ôssobô” (edições ALAC, 1989, Amadora)
(****) “Antologias de Poesia da Casa dos Estudantes do Império 1951-1963”, I Volume, “Angola e São Tomé e Príncipe”, Edição ACEI, 1995. A finalidade era: “preservar e difundir o legado cívico e cultural da CEI”, segundo refere a Associação da Casa dos Estudantes do Império, fundada em 1992”.