Hoje
lembrei-me de José Régio. O amigo José Régio que, nos meus velhos tempos de aluna do Liceu, era o Dr. Reis Pereira.
Lembro-me
com saudade forte porque era um grande amigo e deu provas disso – se bem que
não sejam preciso provas de nada quando se trata de sentimentos.
Não
sou uma especial leitora de poesia. Leio quando calha, quando tenho um livro à
mão quase por acaso – mas Régio vou buscá-lo à estante de propósito para o ler. Amo o
ritmo e a força dos seus versos,
parece-me sentir nas entrelinhas o não dito
e dá-me tantas vezes vontade de soluçar, soluçar.
O
que terá sentido nas longas noites de solidão, na casa ao pé do
cemitério? Casa com a janela que tinha uma bela vista sobre os
campos e os caminhos que descem por ali abaixo, a caminho da Igrejinha de Sant'Ana.
vindos de Sant'Ana (MJF)
Por
ali, daria os seus “passeios aos domingos”. Bela e triste história tão cheia de
desilusão, de desconsolo esta sua história de uma órfã jovem pobre que vai viver
para casa de uma tia rica.
“Davam
grandes passeios aos domingos” é uma história que retrata bem, em
traços de grande dureza, a hipocrisia de certa camada de gentes de
Portalegre e arredores. Aponta a crueldade das relações humanas, a hipocrisia, a indiferença e a
dificuldade de se ter um pouco de sol para cada um de nós.
"um pouco de sol"
A
heroína não vai ter esse lugar ao sol, quando se julgava “igual” aos
primos. Era bonita, talentosa e tentou mostrar-se como era, numa festa de Carnaval. A sua
beleza simples e pura, a cultura e o seu "charme" natural impressionaram os outros? Alguém compreendeu quem ela era, a vontade de encontrar um outro semelhante?
No final da noite, a tia perguntou-lhe, friamente: "quem julgas que és? A dares nas vistas daquela maneira!"
No final da noite, a tia perguntou-lhe, friamente: "quem julgas que és? A dares nas vistas daquela maneira!"
Teria ela perdido o juízo? Envergonhar a família que a “aceitara” em casa?
Criticada, humilhada e desrespeitada pelo primo boçal e bruto, percebe qual o lugar que ali tem. E vai ficar por ali, a ver os outros viver as suas “vidinhas”.
Criticada, humilhada e desrespeitada pelo primo boçal e bruto, percebe qual o lugar que ali tem. E vai ficar por ali, a ver os outros viver as suas “vidinhas”.
Desistindo
das ilusões, restam-lhe os passeios na companhia da velha tia Vitória, que
lhe explica o que ela não sabia. Aceitar. Resignar-se.
“Portalegre tem lindos passeios para se darem aos domingos” – assim termina o livro.
“Portalegre tem lindos passeios para se darem aos domingos” – assim termina o livro.
E
tenho, na parede, trazido de casa de meus pais, um quadro de Miguel Barrias que
“evoca” esses passeios aos domingos. Régio apreciava o pintor Barrias, que viera do Porto e ensinava na Escola Industrial de Portalegre. Chegou a
oferecer um quadro dele ao meu pai.
A verdade é que, a querer falar da solidão de eremita (in)voluntário do meu
amigo, fui parar à história da Rosa Maria.
“Viver
É,
para mim, duvidar
Desvairar,
Interrogar,
Procurar-me,
Torturar-me,
Agarrar
fumo nas mãos…”
Tanto
querer, tanta insatisfação. “Sou um
desejo/que não tem satisfação” escreve nos Poemas de Deus e do Diabo.
E
a solidão do meu amigo Régio, passa entre as belas imagens de santos e de Nossas Senhoras
de madeira que tem em casa – com quem fala às vezes. São eles que dão, com a sua cor, a vida àquela casa.
"Nossa Senhora", de Bernardino Luini, discípulo de Leonardo
Com a vista que se tem das traseiras da casa sobre os campos floridos ou as searas salpicadas de papoilas. E as árvores batidas pelas chuvas fortes do Inverno.
Van Gogh, Jardim de flores
E a trepadeira que vai subindo pela parede nua. Nascida duma folhinha ou sementinha trazida pelo vento. E resiste e resiste.
E ele o Poeta? Ah! Quantas vezes desistiu e quis ser levado pelo vento, destruído pelo mar, abandonado nas areias do deserto!
E ele o Poeta? Ah! Quantas vezes desistiu e quis ser levado pelo vento, destruído pelo mar, abandonado nas areias do deserto!
Luís Alexandre Tinoco, Mar
"Prostrai-me,
ventos que ides passando e assobiando
Ondas do mar que desabais
(Ah! o mar...!)
Levai-me!
E quantas vezes, em ânsia, esperou. O Anjo ou a Morte ou o Amor. Porque viver
é igualmente a ânsia de encontrar o que lhe quebraria a solidão. Que não acalmaria nunca a insatisfação.
“…acenar
a uns irmãos
Que
eu sinto por perto e não vejo
Por
causa da multidão…!”
É
Natal. Penso nos amigos vivos e nos amigos que morreram. Veio-me à memória
Régio, mas são já tantos os amigos perdidos para sempre.
Recordo a companhia dele, a ternura, em breves momentos – e a ligeira ironia do seu sorriso divertido quando me "apanhava" distraída nas aulas, a olhar pela janela.
Uma coisa é certa e me confortou: a certeza que tinha de que este amigo me receberia sempre que eu precisasse. E que viria se eu lhe pedisse para vir!
Briullov, Anjo Voador
Botticelli, Anjo em adoração
Bom Natal, amigos! Andam uns anjos bons por aí...