segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Os Amigos e o Natal...


Hoje lembrei-me de José Régio. O amigo José Régio que, nos meus velhos tempos de aluna do Liceu, era o Dr. Reis Pereira.
Lembro-me com saudade forte porque era um grande amigo e deu provas disso – se bem que não sejam preciso provas de nada quando se trata de sentimentos.
Não sou uma especial leitora de poesia. Leio quando calha, quando tenho um livro à mão quase por acaso – mas Régio vou buscá-lo à estante de propósito para o ler. Amo o ritmo  e a força dos seus versos, parece-me sentir nas entrelinhas o não dito  e dá-me tantas vezes vontade de soluçar, soluçar.
O que terá sentido nas longas noites de solidão, na casa ao pé do cemitério? Casa com a janela que tinha uma bela vista sobre os campos e os caminhos que descem por ali abaixo, a caminho da Igrejinha de Sant'Ana.
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vindos de Sant'Ana (MJF)

Por ali, daria os seus “passeios aos domingos”. Bela e triste história tão cheia de desilusão, de desconsolo esta sua história de uma órfã jovem pobre que vai viver para casa de uma tia rica.

Davam grandes passeios aos domingos” é uma história que retrata bem, em traços de grande dureza, a hipocrisia de certa camada de gentes de Portalegre e arredores. Aponta a crueldade das relações humanas, a hipocrisia, a indiferença e a dificuldade de se ter um pouco de sol para cada um de nós.
"um pouco de sol"

A heroína não vai ter esse lugar ao sol, quando se julgava “igual” aos primos. Era bonita, talentosa e tentou mostrar-se como era, numa festa de Carnaval. A sua beleza simples e pura, a cultura e o seu "charme" natural impressionaram os outros? Alguém compreendeu quem ela era, a vontade de encontrar um outro semelhante?
No final da noite, a tia perguntou-lhe, friamente: "quem julgas que ésA dares nas vistas daquela maneira!"

Teria ela perdido o juízo?  Envergonhar a família que a “aceitara” em casa? 
Criticada, humilhada e desrespeitada pelo primo boçal e bruto, percebe qual o lugar que ali tem. E vai ficar por ali, a ver os outros viver as suas “vidinhas”.
Desistindo das ilusões, restam-lhe os passeios na companhia da velha tia Vitória, que lhe explica o que ela não sabia.  Aceitar. Resignar-se. 
“Portalegre tem lindos passeios para se darem aos domingos” – assim termina o livro.

E tenho, na parede, trazido de casa de meus pais, um quadro de Miguel Barrias que “evoca” esses passeios aos domingos. Régio apreciava o pintor Barrias, que viera do Porto e ensinava na Escola Industrial de Portalegre. Chegou a oferecer um quadro dele ao meu pai.
A verdade é que, a querer falar da solidão de eremita (in)voluntário do meu amigo, fui parar à história da Rosa Maria.
“Viver
É, para mim, duvidar
Desvairar,
Interrogar,
Procurar-me,
Torturar-me,
Agarrar fumo nas mãos…”

Tanto querer, tanta insatisfação. “Sou um desejo/que não tem satisfação” escreve nos Poemas de Deus e do Diabo.

E a solidão do meu amigo Régio, passa entre as belas imagens de santos e de Nossas Senhoras de madeira  que tem em casa – com quem fala às vezes. São eles que dão, com a sua cor, a vida àquela casa. 
"Nossa Senhora", de Bernardino Luini, discípulo de Leonardo

Com a vista que se tem das traseiras da casa sobre os campos floridos ou as searas salpicadas de papoilas. E as árvores batidas pelas chuvas fortes do Inverno.

Van Gogh, Jardim de flores


E a trepadeira que vai subindo pela parede nua. Nascida duma folhinha ou sementinha trazida pelo vento. E resiste e resiste.
E ele o Poeta? Ah! Quantas vezes desistiu e quis ser levado pelo vento, destruído pelo mar, abandonado nas areias do deserto! 
Luís Alexandre Tinoco, Mar

"Prostrai-me,
 ventos que ides passando e assobiando
Ondas do mar que desabais
(Ah! o mar...!)
Levai-me!

E quantas vezes, em ânsia, esperou. O Anjo ou a Morte ou o Amor. Porque viver é igualmente a ânsia de encontrar o que lhe quebraria a solidão. Que não acalmaria nunca a insatisfação.
“…acenar a uns irmãos
Que eu sinto por perto e não vejo
Por causa da multidão…!”
É Natal. Penso nos amigos vivos e nos amigos que morreram. Veio-me à memória Régio, mas são já tantos os amigos perdidos para sempre. 
Recordo a companhia dele, a ternura, em breves momentos – e a ligeira ironia do seu sorriso divertido quando me "apanhava" distraída nas aulas, a olhar pela janela.

Uma coisa é certa e me confortou: a certeza que tinha de que este amigo me receberia sempre que eu precisasse. E que viria se eu lhe pedisse para vir! 
 Briullov, Anjo Voador


Botticelli, Anjo em adoração

Bom Natal, amigos! Andam uns anjos bons por aí...