A
‘voz’ de José Régio ficou-me para sempre na memória. Ouço-a, quando o leio. O
ritmo dos seus versos faz-me vibrar, comove-me, e por vezes tenho vontade de
chorar. Hoje quero lembrar um momento muito especial dessa “amizade”.
Convidaram-me – e ao Manuel – para fazer uma “evocação” daquele que tinha
sido um amigo de ambos. O momento era a abertura das
“Comemorações dos cinquenta anos da morte de José Régio.” Na Casa-Museu José Régio.
Estávamos numa sala enorme cujos enfeites eram apenas os Cristos variadíssimos de tamanhos e estilos, à nossa volta.
Um dos que estavam à minha direita era um crucifixo não muito grande com um Cristo triste que tinha à sua volta, em desenho ingénuo, cabeças de anjinhos.
Estávamos numa sala enorme cujos enfeites eram apenas os Cristos variadíssimos de tamanhos e estilos, à nossa volta.
Um dos que estavam à minha direita era um crucifixo não muito grande com um Cristo triste que tinha à sua volta, em desenho ingénuo, cabeças de anjinhos.
As Comemorações, organizadas pelo Município de Portalegre,
na pessoa da Presidente da Câmara Drª Adelaide Teixeira, pela comissária Drª
Maria José Ascenção e a directora da Casa-Museu, Drª Maria José Maçãs,
iniciaram no dia 21 de Março, no Dia da Poesia.´
Para
mim era uma espécie de "missão", quase uma peregrinação, dedicada à
amizade. Antes de tudo, José Régio foi o meu amigo José Maria dos Reis
Pereira, meu professor.
Muito
tempo passou desde a criação da nossa amizade: eu criança de oito ou nove anos, ele o
meu professor de Francês e Português. E a confiança e a amizade perduraram toda a vida.
José Régio e Feliciano Falcão, 1952
Conheci-o, criança, antes de entrar para o Liceu, porque era um amigo do meu pai e, por essa razão, tive a sorte de "conviver" com ele, de o ver lá por casa, onde vinha ouvir música, ou nos cafés e esplanadas a ouvi-los conversar.
Conto
algumas pequenas histórias dessa amizade, era eu já crescida. Lembro-me que estava a acabar o Curso de Filologia Românica e, na época de Outubro, daria o último exame de
Literatura para o qual não me sentia ainda verdadeiramente preparada.
Era Setembro, o tempo estava maravilhoso, as árvores começavam a ganhar os tons outonais, mas havia ainda muitas flores e giestas bem amarelas nos campos à volta da cidade.
Pierre- Auguste Renoir, paisagem
vista da casa de José Régio.
Agora, de férias em Portalegre, fui visitá-lo e pedir-lhe que me desse uma ajuda.
Quão
depressa passara o tempo! Estávamos em 1966. Eu estava grávida do Diogo que ia
nascer no mês de Dezembro.
Casara cedo, com 17 anos, e continuara a estudar na Universidade e este ia ser já o meu segundo filho.
A Gui nascera 6 anos
antes e Régio conhecia-a e, numa carta que me escreveu, dizia que era muito "gira" -e acrescentava "como se diz hoje".
Casara cedo, com 17 anos, e continuara a estudar na Universidade e este ia ser já o meu segundo filho.
Eu
trazia um vestido de florinhas brancas e vermelhas sobre fundo azul vivo e com
um pequeno folho, debaixo do peito, para disfarçar a barriga que era grande.
“Grávida,
eu?” O meu velho professor que me conhecera menina talvez achasse estranho,
pensei na altura. Mas o meu amigo olhou-me com a mesma ternura e
condescendência – tal como se eu continuasse a ser a sua pequena aluna e
protegida dos tempos do liceu.
Pierre- Auguste Renoir, Flores
A
relação de amizade tinha continuado. Como prenda de casamento, Régio
oferecera-nos, a mim e ao Manuel, uma ‘colcha de noivado’ de Castelo Branco,
bordada a seda com suaves cores matizadas, sobre um desenho do século XVII que
simbolizava a Árvore da Vida.
Guardo
o cartão que acompanhava a prenda. Diz apenas:
“Com os meus mais sinceros votos de
felicidade, aí envio aos Noivos, de entre as minhas velharias, essa chamada
“colcha de noivado” de Castelo Branco.”
Durante anos, a colcha esteve pendurada na parede da sala - bem forrada e protegida, atrás, com um tecido forte. Depois, as muitas viagens, a mudança de países, fez com que acabasse guardada na prateleira dum armário, onde a vou espreitar de vez em quando e pôr sobre a cama só para a ver.
Durante anos, a colcha esteve pendurada na parede da sala - bem forrada e protegida, atrás, com um tecido forte. Depois, as muitas viagens, a mudança de países, fez com que acabasse guardada na prateleira dum armário, onde a vou espreitar de vez em quando e pôr sobre a cama só para a ver.
Falava
de Literatura com a simplicidade dos que sabem muito e não precisam de o
mostrar. As coisas pareciam claras, explicadas por ele. O que me parecia complicado,
antes, as diferenças entre os diversos períodos e movimentos: modernismo,
simbolismo, decadentismo – tudo se
tornava exacto, nítido.
Nessas
tardes de fim de Verão, muito me ensinou. Ele falava e eu ouvia. E desta vez,
bem atenta, não me distraía a olhar pela janela, para ver as nuvens – como
quando era sua aluna.
Que
saudades das horas de calma a aprender, como num sonho, nesse momento belo
desse final de Verão. Fora o calor do Alentejo tudo queimava, mas dentro das
paredes brancas, com as portadas de madeira meias fechadas, havia frescura. Era
um maravilhoso fim de Verão.
Lembro
a nostálgica canção de Barbara: “Septembre/Quel joli temps”
“Jamais
la fin d’été, n’avait parue si belle...
Les
vignes de l’année auront de beaux raisins
On
voit se rassembler, déà les hirondelles
Mais
il faut se quitter, pourtant, l’on s’aimai bien.” (1)
Amigo
do meu coração, pouco te falei, pouco falo de ti, por timidez, mas hoje quero
dizer-te que nunca te esqueço e que conhecer-te foi uma das coisas mais
importantes da minha vida!
Desde
os meus 9, senti a tua amizade e quis mantê-la. Soube desde o primeiro olhar
que, em qualquer aflição na minha vida, eu podia correr para ti e tu dar-me-ias
abrigo e consolo.
Tinha a sensação de que, pela vida fora, me bastaria chamar-te para que viesses ter comigo e tu ajudar-me-ias fosse no que fosse.
Tinha a sensação de que, pela vida fora, me bastaria chamar-te para que viesses ter comigo e tu ajudar-me-ias fosse no que fosse.
Como é possível sentir-se, deste modo tão seguro, tão intenso, a amizade de alguém - se a pessoa de quem falo me não tivesse mostrado que podia ter confiança total nela?
Se a pessoa de quem falo não fosse uma pessoa
especial? Era especial, sim.
O meu professor Dr. Reis Pereira que era também o poeta
José Régio era uma pessoa invulgar. Inesquecível. Quando morreu, senti-me desamparada. Era tão bom saber que havia uma pessoa assim
na minha vida. E era tão triste perdê-la! Assim escreve poeta japonês, Soseki, sobre a breve passagem:
“A vida dura
o
tempo
de
uma chuvada”...
É
curto o tempo de se viver, mas enquanto as mãos de alguém, como um ninho,
pousam e nos protegeram algum tempo - quando as mãos se abrem e as avezinhas
voam... o que será delas? Saberão o caminho?
“Por
um momento, as suas mãos ali pousaram,
Como
aves no ninho.
Depois
abriram-se, e voaram.
Saberão
o caminho?” (2)
O
Poeta sabia isso, melhor do que ninguém... E sabia que eu encontraria o
caminho.
Agora, tantos e tantos anos passados, tantos amigos perdidos, naquela sala branca e fria, cheia de Cristos tão humanos, queria falar dele mas tudo o que "escrevera" se esvaíra da memória.
Falei do que aqui contei acima... Histórias simples, mas tão vivas, tão importantes que em nenhum tempo foram – ou serão esquecidas!
Agora, tantos e tantos anos passados, tantos amigos perdidos, naquela sala branca e fria, cheia de Cristos tão humanos, queria falar dele mas tudo o que "escrevera" se esvaíra da memória.
Falei do que aqui contei acima... Histórias simples, mas tão vivas, tão importantes que em nenhum tempo foram – ou serão esquecidas!
Havia
na assistência uma compreensão, quase uma conivência – sabiam que eu não ia
falar do poeta que todos conheciam e de que tantos falaram já.
José Régio, uma bela fotografia de Pedro Sevylla
Eu
ia apenas ter um encontro de saudades com o meu amigo Dr. Reis Pereira, uma vez
mais na sua casa, à espera que ele me inspirasse...
***
(1) https://youtu.be/u2qkzDb4UZU
(2) Poema intitulado “Voo”, Cântico Suspenso, Portugália Editora, Lisboa, Novembro 1968
(2) Poema intitulado “Voo”, Cântico Suspenso, Portugália Editora, Lisboa, Novembro 1968