terça-feira, 26 de novembro de 2019

GIANI STUPARICH, ESCRITOR TRIESTINO, E A NOVELA “L’ERBA NOCCA”


Descobri uma pequena novela de Giani Stupaparich. Um pequeno livro que é uma peça de arte pelo formato, pela apresentação gráfica, pelas ilustrações (de Giovanna Nascimbene) que são de grande beleza e poesia.

A novelinha intitula-se “L’erba nocca” (1) e foi publicada em 1946 na colecção “Novellatori” – colecção que reúne, “numa série de pequenos volumes, contos e novelinhas dos mais considerados escritores italianos, ilustradas por artistas de qualidade e pretende ser um testemunho vivo do nosso tempo”.

Título difícil de traduzir uma vez que se trata do nome de uma planta, a ‘heléboro verde’, que aparece por toda a Europa mas que nem todos conhecemos. (2)
Giani Stuparich é um conhecido escritor de Trieste (1). Pertenceu a um grupo de escritores que, desde  jovens, começaram a escrever e a serem notados pela sua cultura e entusiasmo. 
Carlo e Giani Stuparich
Scipio Slataper
Grupo de que fazem parte, além de Giani, o irmão Carlo Stuparich, o amigo Scipio Slataper  - estes dois mortos na Iª Guerra, com 27 e 24 anos respectivamente - Bobi Bazlen, Prezzolini e outros.
E, também, "as amigas"  Elody Oblath, Anna Pulitzer e Luisa Carniel. Gianni Stuparich conhece Elody Oblath em 1914 e casam em 1919, no final da Guerra.
Carlo e Scipio foram duas figuras que se apagaram cedo, em plena maturidade literária. Deixaram alguns livros, poucos, que o testemunham. Depois da morte do poeta e estudioso de filosofia e Arte, Scipio Slataper, Giani publica um livro com as cartas que Scipio escrevera às "três amigas": Anna, Elody e Luisa.
 Nesta história, a erba nocca é a flor que Orsola, desde pequenina, vai pôr na jarra no escritório do pai, logo que começa a Primavera.
 A verdade é que ela pensava que a flor não parecia primaveril, tão verde era e tão diferente das prímulas coloridas que vira já rebentar pelos campos - mas a ideia do pai era outra: quando nascia a erba nocca era Primavera!
 
"prímula", a flor da Primavera
O pai “escondia-se” no último andar da casa, onde tinha feito o escritório, para viver no seu mundo. Rodeado de livros, a ler e a escrever, exilava-se na “torre”, como dizia o resto da família. 
Acabado o almoço, ou o jantar, logo se desculpava com o trabalho e subia para a torre. 
Que homem estranho!”, dizia a mãe.
Orsola compreendia-o, sabia que “entre ela e o pai havia qualquer coisa que não existia no resto da família.”
O cipreste de Van Gogh
 Habituara-se a subir pelo tronco do enorme cipreste que estava à frente da janela da torre. Ficava a ver o pai sem lhe dizer nada.
No alto, mesmo quase no pico parece-lhe estar no céu e a cabeça gira-lhe inebriada e lá em baixo o jardim afasta-se e está tão longe que nem sonha voltar para lá.”
 O cipreste é mais alto do que a casa, mais alto do que a janela do pai. Estende um braço e quase lhe parece poder tocar os óculos do pai.
O pai está inclinado, a escrever. Se estiver calada, sente o ruído da pena a arranhar no papel. Fica encantada a olhar para ele.
Um dia decide descobrir o seu segredo, e chama-o:
- Papá! Papá!
Ele, espantado com aquela coragem e atrevimento e, ao mesmo tempo, seduzido pela aventura de alguém que se parece tanto consigo, não se admirou, não ralhou, disse apenas com voz forte:
- Como um passarinho! Gostas de estar aí?
Orsola olhou em volta a ver se gostava. "Ah, sim, como gostava..."

Esse momento de comunhão, no desejo de liberdade e independência que ambos sentiam, de poesia e de sonho que os ligou, fica só para os dois. Permitia-lhes comunicarem noutra zona, agora mesmo nesta situação, aparentemente perigosa para ela, que os aproximava mais do que qualquer outra coisa, antes.

Em baixo, a mãe gritava:
- Desce já!
E a irmã mais velha insistia:
- Orsola, desce daí! És mesmo doida!

Ela só desceu quando lhe apeteceu. Ficou um bocado a espreitar o pai, no seu poiso seguro, enquanto o saudava com a mão.
Anos mais tarde, já crescida e com filhos, depois de o pai morrer, gostava de se refugiar na “torre”, abria as gavetas, passava com a mão suavemente na lombada dos livros que tinham sido dele, lia os apontamentos que deixara.
“Olhava para o alto do cipreste, olhou para si, mulher, e sentiu que a menina desse tempo, clara e precisa, estava outra vez no alto do cipreste, abanava os ramos mais leves; a mulher que era estava ali, direita, em frente da janela, Próximas? Apesar dos anos que separavam as duas imagens, sentiu que a criança que fora tinha saltado para dentro do peito.” (pg 13) 
E, como sempre, quando chegava a Primavera, pegava na jarra de cristal transparente onde o pai punha as flores de “erba nocca” e pensava na criança que fora há tanto tempo.

Todos os anos as primeiras flores do heléboro iam para o escritório do pai”. E sempre que a Primavera voltava, mesmo depois da morte do pai, a jarra de cristal recebia as suas flores brancas.
Nessas investigações na Torre, um dia Orsola descobre que o pai, durante aqueles anos todos, escrevera um diário – coisa que todos ignoravam. 
E percebe que o "homem" que parecia distante e egoísta a todos, que se furtava ao convívio familiar para se refugiar na torre com os seus livros, afinal sofria com o que se passava à sua volta. 
E via como se preocupara sempre com ela. 

Cada criatura tem o seu mundo”, murmurara, pensando que de facto a deles era uma amizade de pai e filha muito especial - porque ela "adivinhara" o que o pai era e os outros não. 
Nesse "diário" referia-se a ela muitas vezes, anotando os seus êxitos, as esperanças que punha nela, sentimentos que nunca deixara transparecer, aparentando até uma certa indiferença em relação a tudo. Como, afinal, se preocupara com a partida dela quando casou, como sentira tão fortemente os acontecimentos ligados à Guerra, à partida dos jovens, e a preocupação de que nunca mais voltassem.
É uma história doce, de ternura, de grande delicadeza de sentimentos, sobre a infância de uma menina e da compreensão íntima que existia entre um pai e uma filha. E da flor primaveril, a "erba nocca", que ficara ligada à memória dele.
    ***
(1) Giani Stuparich nasce em Trieste, em 1891, e morre, em Trieste, no ano de 1961. Vive com Elody Oblath muitos anos, mas separaram-se e ela vai viver para Roma. Continuam em contacto. 
Elody morrerá depois de Giani, já com muita idade e deixa escrita uma obra de que aqui voltarei a falar. 

Giani escreveu esta novela, L’erba nocca, que é publicada em Milão, em 1946, pelo Istituto Editoriale Italiano, na colecção “Novellatori”. Com ilustrações, muito delicadas, da pintora Giovanna Nascimbene.

(2) “Helleborus viridis” ou heléboro verde que, em italiano, se chama “erba nocca”, é uma planta perene da família dos ranúnculos. (ranunculaceae). 
É, como referi atrás, originária do Cáucaso, da Europa Central e Ocidental, existe também na Ásia e nos Balcãs. Planta conhecida, desde a Antiguidade, pelas propriedades medicinais, usava-se para “curar” a epilepsia ou a loucura.
E era, igualmente, receada porque extremamente venenosa. A espécie erba nocca tem as flores verdes, daí chamar-se helleboris viridis. Costuma florescer, precoce, ainda no Inverno - ou no início da Primavera.

Obras de Giani Stuparich:
Publica La nazione czeca, em 1916; Colloqui com mio fratello, em 1922; Ritorneranno, em 1941; L’ isola, em 1949; Il Judizio di Paride 1950. Dos contos é fundamental recordar Un anno di scuola – recordações da adolescência e dos amigos da escola.