terça-feira, 3 de março de 2020

O filme “J’accuse”, de Roman Polansky que ganhou dois Césars!


Na sexta-feira passada foi a noite dos Césars, em Paris, a distribuição dos Prémios a actores e realizadores. O César é o equivalente francês aos Oscars americanos.
O realizador e os actores e toda a equipa do filme de Roman Polanski, “J’Accuse”, face às manifestações agressivas contra Polanski, iniciadas à tarde, fora do edifício da Salle Pleyel - preferiram não se apresentar.

Emmanuelle Bercot e Claire Denis
Afinal, o filme teve dois ou três Césars, entre eles o de "melhor realizador" para Roman Polanski e o de "melhor adaptação" do romance “An Officer and a Spy” de Robert Harris - para Polanski e Harris e um outro para “o vestuário”.
Os prémios foram recebidos pelas actrizes Emmanuelle Bercot e Claire Denis, uma vez que o realizador e toda a equipa estavam ausentes.
Fiquei contente porque o que receava não aconteceu. E explico:  
Hesitei em escrever este post que já tinha começado quando a estreia do filme em paris é perturbada por manifestações. 
Premiado no Festival de Veneza, em Setembro de 2019, com o Prémio do Júri, a estreia é boicotada no mês de Dezembro em várias salas de cinema de Paris. Manifestações em que se acusava o realizador de ser um violador. 
Meses antes, tinha aparecido uma denúncia contra Roman Polanski por parte de uma actriz francesa a quem teria presumivelmente violado há trinta anos. 
A projecção foi pois anulada e a entrada dos espectadores fisicamente impedida, por uma multidão com pancartes acusando o realizador de “violador”, as salas de cinema e os produtores de “culpados” e os espectadores de “cúmplices”. 
Confesso que não gostei. Vivi demasiado tempo sob a Censura de um ditador no meu país. Ditadura que durou 48 anos – e não aceito Censura seja de que tipo for ou por que razão seja. 
Porque muitas pessoas das gerações anteriores à minha não souberam o que era a Liberdade. Muita gente não pôde pensar o que queria. Muita gente não escreveu o que pensava. Muita gente morreu porque pensava de modo diferente.
Por isso eu vou dizer o que sinto e o que penso! Defender ou não defender o filme de Polanski, eis a questão! Aqui estou eu a defendê-lo! A liberdade de expressão é um direito conferido pela Democracia, nos países democratas. 
Não me interessa aqui a personalidade de Polanski que nunca conheci mas cujos filmes admirei, como "O pianista" ou "Tess d' Ubervillies".
"J'accuse" é um filme cujo tema é a injustiça contra um inocente Capitão do Exército francês, Alfred Dreyfus, judeu.  “J'accuse" é o título do artigo de Zola que vai chamar a atenção para a ignomínia desta condenação. E assim se abre o "Affaire Dreyfus".
 Não concordo com as atitudes de manifestações de massa, nem formas de “fundamentalismo”. Só me convencem se deveras nelas se integrarem pessoas sem hipocrisia, sem outros interesses pessoais, a manifestarem-se. Neste caso, realiza-se sob o manto da defesa de mulheres violadas, mundo fora.
Um problema que tem de ser encarado como problema social, cultural, que é. 
Essa atitude de desrespeito para a mulher, coisificada, mulher-objecto - que desde tempos imemoriais é considerada uma coisa inferior que pertence aos homens, em quem os homens – pais, maridos e talvez filhos – ‘mandam’. Na Idade Média, duvidou-se mesmo que as mulheres tivessem “alma”. 

Esse "abuso" é uma questão de Poder, excepto quando se trata de causas psiquiátricas. 
O mundo é um “men’s world”, um mundo de homens, com leis feitas por homens, para o bem dos homens, onde as mulheres não eram incluídas até muito recentemente. 
Seria importante começar pela educação – e creio que já se começou felizmente - nas Escolas, falando do problema, ensinando a tolerância e o respeito. Fundamental ir ao cerne do problema e educar as crianças para a igualdade, respeito das diferenças, para os deveres e direitos iguais quer sejam diferentes de raça, de religião e de sexo.

Só a educação pode levar a que coisas como estas não aconteçam. Os movimentos de protesto, emotivos, super mediatizados, numa histeria quase incontrolável, podem desviar a atenção de outras formas de agressão das mulheres são sempre complicados, pouco transparentes e podem acabar em atitudes condenáveis, quando multidão se torna agressiva. Destruir o presumível culpado, numa “linchagem simbólica”, não resolve nada.

Creio que todos somos presumíveis inocentes até ser provada a culpabilidade não é assim? Roman Polanski ainda não na cadeia.  Há os tribunais para tratar do assunto. 

A obra pode - e deve - ser vista! “Censurar” um filme, por causa do seu autor, é censurar uma Obra que tem o direito a existir e a ser vista: ninguém me impede nem me pressiona para eu não ver o filme - que eu sou livre de ver.
Quem perguntou como era a vida do Caravaggio

 Michelangelo, Pietà Rondanini
Ou de Michelangelo? Ou Leonardo da Vinci? O que fizeram eles na vida?  Além das obras que temos deles? O que sabemos de Sófocles ou de Eurípedes?
Voltemos ao filme que me trouxe - e à razão por que falo dele. É um filme que merece ser visto e que ensina como o Capitão Dreyfus - que não era culpado - passou 5 anos na Ilha do Diabo porque o consideraram culpado. Este filme tem toda a razão de existir, de ser visto sejam quais forem as acusações contra o seu autor.
O filme “J’accuse” é uma obra de Cinema, de Arte, tal como a Poesia, o Romance, o Teatro. O seu autor é, sem dúvida, um artista. Por isso eu defendo a liberdade da Arte e, portanto, a liberdade do filme ser projectado.
O filme trata de um caso verídico e alucinante de anti-semitismo – o chamado “Affaire Dreyfus” que pouca gente conhece hoje. 

Passou-se na França, no século XIX. É a história de um oficial francês de origem judaica (dos poucos judeus que no Exército chegaram a oficiais), acusado injustamente de crime de alta traição. 
Alfred Dreyfus apesar das provas insuficientes, é condenado em 1889.
 Dreyfus na cela da Ilha do Diabo 
É degradado e humilhado, apesar de se clamar inocente. É enviado para o degredo, na Ilha do Diabo, na Guiana Francesa onde passa cinco anos. 
Cinq Années de ma Vie” é o livro em que conta esses anos de inferno - publicado quando, finalmente, é ilibado dessa culpa infame. "J'accuse" é o título do artigo de Zola que vai chamar a atenção para o caso e tentar repor a verdade.
Emile Zola vai contribuir para a sua libertação quando, em 1898, publica no jornal cultural e artístico “L’Aurore”  (13/01/1898) um artigo intitulado “Lettre au Président” (2).  É um libelo de defesa extraordinário que ajuda a reconhecer a inocência do Capitão Dreyfus.

Robert Harris

Roman Polansky, além de se inspirar no livro de Dreyfus, escolhe a versão do historiador Robert Harris, intitulado An Officer and a Spy (3), saída em 2013, em Inglaterra e cujo protagonista é  Georges Picquart – também ele oficial que fora aluno de Dreyfus na Escola Militar.

Depois de ler o artigo de Zola, Picquart que inicialmente acreditara na culpabilidade de Dreyfus, tendo sido promovido a tenente coronel e, por inerência do caso, a director do Gabinete de Estatística, decide iniciar uma investigação completa ao caso Dreyfus.
Georges Picquart

De 1896 a 1906, Picquart vai procurar a verdade, incansavelmente. E, lutando pelo reconhecimento da inocência de Dreyfus, conseguirá a revogação da condenação, a reabilitação e sua a reintegração no Exército.
Com a família depois da reabilitação em 1906

O ódio aos Judeus é uma coisa “cíclica”, que volta para explicar como  todos os males - ou para afastar o que não se quer ver. Neste caso, houve de facto a procura do bode expiatório mais fácil, o judeu. 
No momento da cerimónia de destituição do oficial, da quebra da espada e do opróbio lançado sobre ele, a multidão, excitada, gritava “Morte ao judeu!”
Theodore Hertzl

Presente, em Paris, no meio da assistência, outro judeu que vai ser célebre, Theodore Hertzl, o criador do Sionismo político ( decide exactamente nesse momento “que os judeus precisam de uma terra para eles.”

De facto, em 1894, interessa-se pelo Affaire Dreyfus e dá a conhecer ocaso na Europa.
Infelizmente voltaram tempos difíceis para as democracias. Tempos de racismo, de ventos de ódio - empurrados por aqueles que querem trazer as velhas tempestades.  

Simone Veil, Paris 2018, anti-semitismo

O anti-semitismo voltou, forte, e as sociedades deixam-se “encaminhar” de novo para o passado.
O fascismo aparece hoje, sem complexos, com o nacionalismo feroz, o racismo, o anti-semitismo. Penso: será que ainda é mau falar de judeus?
***
Roman Polanski e a mulher Emmanuelle Segnier

Roman Polanski está em liberdade, não está? Como tantos outros sem culpa formada. 
É livre de realizar e apresentar o seu filme, ou não é? E cada um dos seus futuros espectadores deve ser livre de escolher ver o filme ou não. O filme que fala do judeu Alfred Dreyfus acusado injustamente de alta traição à França, sua pátria.
E veio-me uma dúvida... Será que o judeu, Capitão Dreyfus, acusado de espionagem quando inocente - por ser judeu – ainda incomoda? Seria melhor não se ouvir falar mais dele nem da Ilha do Diabo? Melhor deixá-lo morrer de febres, sozinho e inocente?
Passam tantos filmes realmente ignóbeis com  desrespeito total e o aproveitamento vergonhoso do corpo da mulher; passam tantos filmes violentos e perversos - e nunca nenhum criou uma agitação deste tipo. Será que esta dupla dos judeus “Polanski-Dreyfus” incomoda?, pensei então.
O resultado dos Césars 2020 sossegaram a minha alma: afinal esta “dupla” de judeus não incomoda toda a gente. 
Os prémios foram concedidos num ambiente de “cortar à faca” entre os “pró” Polanski e os “contra” Polanski. 
Há os que saem da sala quando é anunciado o nome de Polanski e há os que o defendem - como Anne-Catherine Lochard (France Culture) que afirma:
É vergonhoso, não se pode deitar para o lixo o trabalho da vida de uma pessoa de 86 anos. Realizou filmes inesquecíveis. Nunca deixarei de o defender, até à morte”.
O que na realidade se deveria discutir era o valor do filme em si. E penso: como esquecer “Tess d’Ubervilles” ou “O pianista”? 
Bem, agora tenho que ver “J’accuse” que ainda não consegui ver!

(1) Alfred Dreyfus, Capitão do Exército Francês, foi acusado de alta traição, por -presumivelmente- ter passado informações à Alemanha, então pertencente ao Império Austro-Húngaro.

(2) O artigo dirigido ao Presidente da República Francesa (Félix Faure, 1841-1899) revela as dúvidas do escritor Emile Zola e de uma parte da opinião pública, descontente com o veredicto.

(3) Richard Harris, An Officer and a Spy, 2013, Londres 


(4) Theodore Hertzl (1860-1904) jornalista, judeu austro-húngaro, fundador do moderno Sionismo político.