Na sexta-feira
passada foi a noite dos Césars, em Paris, a distribuição dos Prémios a
actores e realizadores. O César é o equivalente francês aos Oscars americanos.
O realizador e
os actores e toda a equipa do filme de Roman Polanski, “J’Accuse”, face às
manifestações agressivas contra Polanski, iniciadas à tarde, fora do edifício da
Salle Pleyel - preferiram não se apresentar.
Emmanuelle Bercot e
Claire Denis
Afinal, o filme
teve dois ou três Césars, entre eles o de "melhor realizador"
para Roman Polanski e o de "melhor adaptação" do romance “An Officer
and a Spy” de Robert Harris - para Polanski e Harris e um outro para “o
vestuário”.
Os prémios foram recebidos pelas actrizes Emmanuelle Bercot e
Claire Denis, uma vez que o realizador e toda a equipa estavam ausentes.
Fiquei contente
porque o que receava não aconteceu. E explico:
Hesitei em
escrever este post que já tinha começado quando a estreia do filme em paris é perturbada por manifestações.
Premiado
no Festival de Veneza, em Setembro de 2019, com o Prémio do Júri, a estreia é boicotada
no mês de Dezembro em várias salas de cinema de Paris. Manifestações em que se
acusava o realizador de ser um violador.
Meses antes, tinha aparecido uma denúncia
contra Roman Polanski por parte de uma actriz francesa a quem teria
presumivelmente violado há trinta anos.
A projecção foi
pois anulada e a entrada dos espectadores fisicamente impedida, por uma multidão
com pancartes acusando o realizador de “violador”, as salas de cinema e
os produtores de “culpados” e os espectadores de “cúmplices”.
Confesso
que não gostei. Vivi demasiado
tempo sob a Censura de um ditador no meu país. Ditadura que durou 48 anos – e
não aceito Censura seja de que tipo for ou por que razão seja.
Porque muitas
pessoas das gerações anteriores à minha não souberam o que era a Liberdade.
Muita gente não pôde pensar o que queria. Muita gente não escreveu o que
pensava. Muita gente morreu porque pensava de modo diferente.
Por isso eu vou
dizer o que sinto e o que penso! Defender ou não defender o filme de Polanski,
eis a questão! Aqui estou eu a defendê-lo! A liberdade de expressão é um
direito conferido pela Democracia, nos países democratas.
Não me interessa
aqui a personalidade de Polanski que nunca conheci mas cujos filmes admirei,
como "O pianista" ou "Tess d' Ubervillies".
"J'accuse"
é um filme cujo tema é a injustiça contra um inocente Capitão do Exército
francês, Alfred Dreyfus, judeu. “J'accuse" é o título do artigo de
Zola que vai chamar a atenção para a ignomínia desta condenação. E assim se
abre o "Affaire Dreyfus".
Não
concordo com as atitudes de manifestações de massa, nem formas de
“fundamentalismo”. Só me convencem se deveras nelas se integrarem pessoas sem
hipocrisia, sem outros interesses pessoais, a manifestarem-se. Neste caso,
realiza-se sob o manto da defesa de mulheres violadas, mundo fora.
Essa atitude
de desrespeito para a mulher, coisificada, mulher-objecto - que
desde tempos imemoriais é considerada uma coisa inferior que pertence
aos homens, em quem os homens – pais, maridos e talvez filhos – ‘mandam’.
Na Idade Média, duvidou-se mesmo que as mulheres tivessem “alma”.
Esse "abuso" é uma
questão de Poder, excepto quando se trata de causas psiquiátricas.
O mundo é um “men’s world”, um mundo de homens, com leis feitas por homens,
para o bem dos homens, onde as mulheres não eram incluídas até muito
recentemente.
Seria
importante começar pela educação – e creio que já se começou felizmente - nas
Escolas, falando do problema, ensinando a tolerância e o respeito. Fundamental ir
ao cerne do problema e educar as crianças para a igualdade, respeito das diferenças, para os deveres e direitos iguais quer sejam diferentes de raça, de religião e de sexo.
Só a educação pode
levar a que coisas como estas não aconteçam. Os movimentos de
protesto, emotivos, super mediatizados, numa histeria quase incontrolável, podem
desviar a atenção de outras formas de agressão das mulheres são sempre
complicados, pouco transparentes e podem acabar em atitudes condenáveis, quando
multidão se torna agressiva. Destruir o presumível culpado, numa “linchagem
simbólica”, não resolve nada.
Creio que todos
somos presumíveis inocentes até ser provada a culpabilidade não é assim? Roman
Polanski ainda não na cadeia. Há os tribunais para
tratar do assunto.
A obra pode - e
deve - ser vista! “Censurar” um filme, por causa do seu autor, é censurar uma Obra
que tem o direito a existir e a ser vista: ninguém me impede nem me pressiona para
eu não ver o filme - que eu sou livre de ver.
Quem perguntou
como era a vida do Caravaggio
Michelangelo, Pietà Rondanini
Ou de Michelangelo? Ou Leonardo da Vinci? O que
fizeram eles na vida? Além das obras que temos deles? O que sabemos de
Sófocles ou de Eurípedes?
Voltemos ao
filme que me trouxe - e à razão por que falo dele. É um filme que merece ser
visto e que ensina como o Capitão Dreyfus - que não era culpado - passou 5 anos
na Ilha do Diabo porque o consideraram culpado.
Este filme tem toda a razão de existir, de ser visto sejam quais forem as
acusações contra o seu autor.
O filme
“J’accuse” é uma obra de Cinema, de Arte, tal como a Poesia, o Romance, o
Teatro. O seu autor é, sem dúvida, um artista. Por isso eu defendo a liberdade
da Arte e, portanto, a liberdade do filme ser projectado.
O filme trata
de um caso verídico e alucinante de anti-semitismo – o chamado “Affaire
Dreyfus” que pouca gente conhece hoje.
Passou-se na
França, no século XIX. É a história de um oficial francês de origem judaica
(dos poucos judeus que no Exército chegaram a oficiais), acusado injustamente
de crime de alta traição.
Alfred Dreyfus apesar das provas insuficientes, é
condenado em 1889.
Dreyfus na cela da Ilha do Diabo
É degradado e
humilhado, apesar de se clamar inocente. É enviado para o degredo, na Ilha
do Diabo, na Guiana Francesa onde passa cinco anos.
“Cinq Années
de ma Vie” é o livro em que conta esses anos de inferno - publicado quando,
finalmente, é ilibado dessa culpa infame. "J'accuse" é o título do
artigo de Zola que vai chamar a atenção para o caso e tentar repor a
verdade.
Emile Zola vai
contribuir para a sua libertação quando, em 1898, publica no jornal cultural e
artístico “L’Aurore” (13/01/1898) um artigo intitulado “Lettre au
Président” (2). É um libelo de defesa extraordinário que ajuda a
reconhecer a inocência do Capitão Dreyfus.
Robert
Harris
Roman Polansky,
além de se inspirar no livro de Dreyfus, escolhe a versão do historiador Robert
Harris, intitulado An Officer and a Spy (3), saída em 2013, em Inglaterra
e cujo protagonista é Georges Picquart –
também ele oficial que fora aluno de Dreyfus na Escola Militar.
Depois de ler o
artigo de Zola, Picquart que inicialmente acreditara na culpabilidade de Dreyfus,
tendo sido promovido a tenente coronel e, por inerência do caso, a director do
Gabinete de Estatística, decide iniciar uma investigação completa ao caso
Dreyfus.
Georges Picquart
De 1896 a 1906, Picquart vai procurar a verdade, incansavelmente. E, lutando pelo reconhecimento
da inocência de Dreyfus, conseguirá a revogação da condenação, a reabilitação e
sua a reintegração no Exército.
Com a família depois da reabilitação em 1906
O ódio aos
Judeus é uma coisa “cíclica”, que volta para explicar como todos os males
- ou para afastar o que não se quer ver. Neste caso, houve de facto a
procura do bode expiatório mais fácil, o judeu.
No momento da
cerimónia de destituição do oficial, da quebra da espada e do opróbio lançado
sobre ele, a multidão, excitada, gritava “Morte
ao judeu!”
Theodore Hertzl
Presente, em
Paris, no meio da assistência, outro judeu que vai ser célebre, Theodore Hertzl, o criador do Sionismo político ( decide exactamente nesse momento “que os judeus precisam de uma terra para eles.”
De facto, em 1894, interessa-se pelo Affaire Dreyfus e dá a conhecer ocaso na Europa.
Infelizmente voltaram
tempos difíceis para as democracias. Tempos de racismo, de ventos de ódio -
empurrados por aqueles que querem trazer as velhas tempestades.
Simone Veil, Paris 2018, anti-semitismo
O
anti-semitismo voltou, forte, e as sociedades deixam-se “encaminhar” de novo
para o passado.
O fascismo aparece
hoje, sem complexos, com o nacionalismo feroz, o racismo, o anti-semitismo.
Penso: será que ainda é mau falar de judeus?
***
Roman Polanski e a mulher Emmanuelle Segnier
Roman Polanski
está em liberdade, não está? Como tantos outros sem culpa formada.
É livre de
realizar e apresentar o seu filme, ou não é? E cada um dos seus futuros
espectadores deve ser livre de escolher ver o filme ou não. O filme que fala do
judeu Alfred Dreyfus acusado injustamente de alta traição à França, sua pátria.
E veio-me uma
dúvida... Será que o judeu, Capitão Dreyfus, acusado de espionagem quando
inocente - por ser judeu – ainda incomoda? Seria melhor não se ouvir falar mais
dele nem da Ilha do Diabo? Melhor deixá-lo morrer de febres, sozinho e
inocente?
Passam tantos
filmes realmente ignóbeis com desrespeito total e o aproveitamento
vergonhoso do corpo da mulher; passam tantos filmes violentos e
perversos - e nunca nenhum criou uma agitação deste tipo. Será que esta dupla
dos judeus “Polanski-Dreyfus” incomoda?, pensei então.
O resultado dos
Césars 2020 sossegaram a minha alma: afinal esta “dupla” de judeus não
incomoda toda a gente.
Os prémios
foram concedidos num ambiente de “cortar à faca” entre os “pró” Polanski e os “contra”
Polanski.
Há os que saem da sala quando é anunciado o nome de Polanski e há os que o defendem - como Anne-Catherine Lochard (France Culture) que afirma:
Há os que saem da sala quando é anunciado o nome de Polanski e há os que o defendem - como Anne-Catherine Lochard (France Culture) que afirma:
“É
vergonhoso, não se pode deitar para o lixo o trabalho da vida de uma pessoa de
86 anos. Realizou filmes inesquecíveis. Nunca deixarei de o defender, até à
morte”.
O que na
realidade se deveria discutir era o valor do filme em si. E penso: como
esquecer “Tess d’Ubervilles” ou “O pianista”?
Bem, agora
tenho que ver “J’accuse” que ainda não consegui ver!
(1) Alfred Dreyfus, Capitão do Exército Francês, foi acusado de alta traição, por -presumivelmente- ter passado informações à Alemanha, então pertencente ao Império Austro-Húngaro.
(2) O artigo dirigido ao Presidente da República Francesa (Félix Faure, 1841-1899) revela as dúvidas do escritor Emile Zola e de uma parte da opinião pública, descontente com o veredicto.
(3) Richard Harris, An Officer and a Spy, 2013, Londres
(4) Theodore Hertzl
(1860-1904) jornalista, judeu austro-húngaro, fundador do moderno Sionismo político.