A verdade é que a tristeza deles não é só de agora. Há algum tempo que os sinto murchos, sem vontade de brincar. Confesso que pensei que a culpa era minha. Tenho um sentimento de culpa desde que o Zev veio para cá. Mas no fim percebi que eles estavam sentidos por não terem ido connosco a Trieste.
Perguntei-lhes o que tinham mas a resposta veio devagarinho. O Ouricinho
veio pegar-me na mão e encostou a cabeça no meu colo.
- O que foi,
Ouricinho querido?
Ele olhou para
o Ratinho como que a perguntar se estava a fazer bem e vi que o Ratinho acenou
com a cabeça com um ar grave.
- Achamos que
já não gostas de nós como dantes. Era tão bom estarmos contigo. Havia
brincadeiras, plantávamos tomates, íamos espreitar o casal de pombinhos que
viveu na varanda. Tocávamos aquele instrumento musical que trouxeste e Marrocos que é tão lindo.
E da última vez que foste a Trieste levaste-nos contigo. E no ano passado fomos a Roma! E agora tu...
- Agora eu o quê,
Ouricinho?
Foi o Ratinho
Poeta quem respondeu.
- Bem, agora és
outra pessoa. Não nos levaste contigo, não precisas da nossa companhia. Afastaste-te de nós. De tudo. De todos. O que te aconteceu, Jana?
Só gostávamos de saber.
- É isso -
acrescentou o Ouricinho. Pareces outra pessoa. Desinteressada de nós. E Trieste era uma cidade tão bonita. Adorámos lá ir! E fomos a Roma no ano passado!
Percebia que estavam magoados, mas a viagem a Trieste tinha sido adiada tantas vezes por motivos vários, até por doença. Depois foi tudo preparado a correr. Como explicar àqueles dois seres maravilhosos o
que acontece às pessoas quando estão cansadas? Sentem que estão a afastar-se da juventude - a envelhecer? Que têm medo até da morte? Quando as coisas começam a
perder algum encanto e sentimos o tempo a passar cada vez mais rápido e nós cansados. Como aquela
ampulheta do filme de Visconti (1) que de início está cheia de areia fina cor de rosa e corre devagar, devagar. Mas quando está
a chegar ao fim, vemos a areia deslizar rapidamente e sabemos que em breve estará vazia a parte
anterior da nossa existência. Não se sabe, não se pode explicar porque nem
nós sabemos por que mudámos por isso não há nada a explicar. É o nosso pensar
que nos leva atrás a mundos distantes que vimos e nos lembramos de pessoas perdidas que
gostaríamos de recuperar ou apenas voltar a ver.
- Talvez porque
estou mais velha...
O Ratinho não me deixou continuar, irritado:
- Tu, velha? Nem
é verdade. E isso não é desculpa, as pessoas são o que querem ser na vida - e a
idade não tem que ver com isso.
Acenou com a cabeça e continuou, convencido.
- Só envelhece quem se deixa envelhecer! Existem jovens que já são velhos, não é? E existem
também pessoas com mais idade que são jovens. Jovens de espírito, abertas às novidades, que não se fecham em mundo obsoletos!
Tive que me rir com aquela palavra do Ratinho - obsoleto!
- Sim, tens razão. Eu sinto-me jovem de espírito.
- Então por que
mudaste de atitude? Pareces assustada com tudo, ansiosa. Foi por o Manuel ter estado doente?
- Sim também
isso, as preocupações deixam-nos cansados e absortos em muitos problemas e
esquecidos de outros.
O Ouricinho fez
uma festa na minha mão.
- Eu percebo o
que se passa dentro de ti, eu senti porque sinto tudo o que tu sentes. Tudo de
preocupa mais agora. Vês morrer algumas pessoas e não gostas. Mas o Manuel está bom e bem vivo!
- Sim, isso
fez-me mal. Mas a Lívia...
- Sim, percebo, a Lívia era
tão divertida com aquelas gargalhadas engraçadas!
- Sim, Ratinho,
a Lívia faz-me muita falta.
Comecei logo a comover-me.
- Éramos duas garotas quando nos encontrámos no Liceu de Castelo Branco. Tínhamos a vida pela
frente e muita alegria. Ficámos amigas. Acreditávamos. Acreditar é ter confiança, não ter medo de nada.
Acreditávamos na Utopia, tínhamos ideais e vivíamos esses ideais e não tínhamos medo de nada, a morte andava tão longe. Era o tempo
de descobrir as novas leituras que nos marcariam para a vida inteira. Ríamos e é tão
bom rir.
- Claro, mas eu e o Dany também fomos crianças e brincávamos muito. Quando nos levavas à piscina, lembras-te? Na
vida temos de reagir e não deixarmos que a melancolia nos invada – tu estás
muito melancólica, de olhar perdido. Jana, volta a rir!
O Ouricinho
interrompeu-o:
- Ela tem razão, coitada, até morreu a Zé
Saraiva de Celorico. Ela gostava muitos das histórias que tu
contavas sobre as nossas aventuras.
O Ratinho perguntou:
- Era amiga do Manuel em pequenina, não era?Acho que ele me contou. O Manuel viveu muitos anos no 1º andar da
casa dela. Os pais dele tinham aquela casa alugada sempre para irem passar
férias e o Manuel passava lá grandes temporadas.
- Sim, a Zé
também foi embora. E outros amigos. Estou triste às vezes e tenho saudades.
Suspirei, eles não tinham culpa e de facto tinha sido muito distraída com eles. E sabia bem como são ciumentos e, sobretudo, como precisam de atenção. Perguntei:
- O que posso fazer para ficarem contentes?
O Ratinho
disse:
- Primeiro, não
falar de coisas tristes. O Manuel está bom, tu estás bem. Estás não estás?
Lembras-te da vez que fomos os dois para aquele lugar de onde se via o rio?
Estavas doente e eu fiz-te companhia.
Sim, era verdade. Recordava bem as vezes que me abraçara a ele e limpara as lágrimas no pelo branquinho do meu
amigo. Tinha sido um período duro mas tinha passado.
Eles têm-me ajudado tanto. As nossas brincadeiras na varanda, a plantação dos tomateiros, na cozinha. Ou a pintura do Monet que eles gostam com as anémonas ou as verduras que eles escolhiam para as fotografias terem mais cor! A vida tem de andar em frente!
- Olhem querem saber? Lembrei-me
agora de uma frase de John Steinbeck. “Voltar ao passado? Ficar parado a pensar? A recordar? Arriscamo-nos
a nunca mais andar em frente.”
- Tinha razão o Steinbeck, vês?
O Ratinho estava contente. Gostava que eu falasse de livros e de escritores. O Ouricinho perguntou-me.
- Já não estás
triste?
-Não. Vamos dar
uma volta à varanda. Choveu e deve estar tudo tão bonito.
A varanda
estava linda, brilhava um pouco de sol depois da chuva e as flores pareciam
frescas como se molhadas pelo orvalho da manhã.Tinha-se levantado um pouco de vento.
- Vês os teus hibiscos!? disse o Ouricinho. E ainda há um tomate por aqui perdido e já está a chegar o Inverno.
O céu estava de um azul impressionante e as nuvens pareciam bolinhas a flutuar em cor-de-rosa vivo com riscos
horizontais escuros, onde brilhava uma lua prateada, um fiozinho de prata quase invisível, em quarto crescente.
- Lindo que está o meu hibisco amarelo!
Lá estava uma flor amarela aberta a
começar a encolher as pétalas para a noite.
- O céu desta cor anuncia vento – disse
eu. Amanhã vamos ter muito vento.
O Ratinho só disse:
- Tu gostas do vento
e nós também gostamos quando ele faz bater a chuva nos vidros.
- Gosto muito de ver a chuva na janela! E quando põe
as árvores a agitarem-se no jardim do liceu. E fazem aquele barulhinho shshsh... - Ouricinho, sim, amanhã vamos ver o que se passa com as árvores
que se vêem do meu quarto com este vento. Tem uns ramos perigosos que ameaçam cair.
E viemos para dentro
– e eu a pensar como era fácil pô-los contentes. Bastava um bocadinho de atenção,
de ternura. Como todas as pessoas, afinal. Não conseguira dizer-lhes a verdade do meu aparente afastamento: a preocupação com a saúde do Manuel e como ele viera cansado de Trieste. Mas disso falaremos outra vez.
(1) "A morte em Veneza", de Luchino Visconti, um dos filmes que o Manuel mais amava.