Faz-nos recordar massacres de Judeus passados e esquecidos, mais recentes ou mais antigos que foram acontecendo ao longo dos séculos - em nome da cristandade. Falsamente, claro, em nome de Deus.
Neste caso, são as famosas
Cruzadas que estudámos nos livros de História sem perceber na altura o que
significavam realmente. Já antes soubéramos dos Autos da Fé da Inquisição e até do Massacre da Páscoa em Lisboa, em 1506 no reinado de D. Manuel I.
Massacre de Judeus em Lisboa em 1506
Os inimigos que os Cruzados iam combater eram os "infiéis", “pagãos”, os muçulmanos de religião. Mas nesses combates estranhamente eles começavam por ir matar alguns judeus ali por perto antes de seguir a longa viagem para Jersusalém. Contam as crónicas que a primeira "acção bélica" era entrar numa aldeia de judeus e incendiar, perseguir os seus habitantes, torturar os judeus para revelarem onde guardavam as suas riquezas, roubar tudo e matar.
Quero
falar-vos de “Jusqu’à la mort”. É duro recordar essas lutas e matanças. Quando
combater era até à morte. É difícil entender o ódio, o fanatismo e a
intolerância religiosa - e não só religiosa.
É a cegueira que leva os Soldados de Deus a matar o seu próximo? O que haverá por detrás desses movimento, desse impulso que leva a matar? Pode parecer paradoxal mas eu creio que existe um sentimento de medo subjacente.
A História conta que no Concílio de Clermont-Ferrand, no ano de 1095 depois do nascimento do Salvador, o Papa Urbano II exortou os fiéis à Guerra Santa. “Um sermão que incitava os senhores e Reis a arrancarem a Terra Santa do jugo muçulmano”.
E envia o seu “rebanho” numa Cruzada ao Oriente para “defender os peregrinos que iam à Terra Santa e cujas viagens se tornavam cada vez mais perigosas.”
Para tornar mais aliciante o projecto, o Papa juntou “indulgência plenária dos pecados cometidos” aos participantes neste combate - o que tornou as cruzadas mais populares. De facto, depois de anunciado o “perdão” a multidão aplaudiu o Papa.
A partir de 1095, pois, as potências cristãs europeias fizeram a Guerra Santa “com o objectivo declarado de combater o domínio islâmico na chamada Terra Santa, reconquistando Jerusalém e outros lugares por onde Jesus teria passado.”
Outros interesses havia por detrás das cruzadas. Interesses políticos daqueles que procuravam desviar para a Terra Santa as lutas que os nobres travavam entre si, lutas internas que perturbavam a paz na Europa. As cruzadas desviavam um fluxo de descontentamento para longe.
Explica uma personagem do livro o “cronista” Charles-le-Bossu: “O país estava cheio dessas pequenas comunidades judaicas. Muitas cidades lhes tinham aberto as portas pensando que assim desafiar a antiga maldição divina (op.cit.pg 65). E os judeus tinham desenvolvido profundas raízes nesses lugares.”
Tinham alguma influência e, sobretudo, tinham ganho dinheiro com os seus negócios. Nestas
regiões, nobres e camponeses tinham “confiado” nos judeus. “Os cavaleiros tinham armado as suas tropas
com o dinheiro que eles lhes tinham emprestado. (...) Alguns até tinham
convidado um Judeu para sua casa e assim iam vendendo insensivelmente as suas
almas.”
Por isso, outros acusavam os Judeus de estar a criar uma “Judeia de trevas e instaurado um poder maléfico em terras cristãs” (op.cit.p.67)
Sentia-se uma certa excitação nas aldeias cristãs -era sempre um prenúncio de uma matança ou de um "pogrom" (3).
“E apareciam todos os dias maus sinais. Visões estranhas que anunciavam aos habitantes que alguma coisa ia acontecer. Contavam-se coisas vistas assustadoras. E aos cristãos da aldeia parece-lhes ver uma alegria suspeita nos bairros daqueles malditos judeus.”
“É no começo do Outono, quatro dias depois das
vindimas - escreve Amos Oz - que o Senhor
Guillaume de Touron parte das suas terras - endividadas - à cabeça de um
pequeno exército de servos, camponeses, alguns soldados e muitos fora-da-lei
(...).” (pg 10)
Com ele vai o autor da crónica, o jovem Claude-le-Bossu, de que já falei - homem letrado que o Senhor de Touron apreciava muito. Apesar do seu aspecto físico (“bossu” é “corcunda”) a sua inteligência e saber mantinham-no perto do poder - respeitado e receado por todos.
Tudo começa a correr mal logo de início. O Outono é gelado, as temperaturas baixam e gelam os dedos que seguram as lanças. Os homens sentem-se “vigiados” de longe. Surgem males inesperadas, quedas e desastres, epidemias desconhecidas que matam os cavalos. O medo entranha-se.
Entreolham-se, falam baixinho à volta das fogueiras. O percurso torna-se ainda mais difícil pela insubordinação dos homens e pela insolência de alguns. “Intrigas, calúnias, conspirações multiplicam-se” (pg.57)
E Claude escreveu: “um estrangeiro está entre nós. Todos imploramos cada noite ao Salvador, mas um de entre nós é um perjuro, inimigo do nosso Salvador.” (pg.58) E acabam por concluir que deve haver um Judeu no meio deles, um estrangeiro. Desconfiam uns dos outros. “Um de entre nós é outro.”
O Senhor enquanto avança sozinho à frente do pequeno exército vai pensando.
"Por detrás das pálpebras cerradas, o Senhor olha agora o flautista Andréas Alvarez com desconfiança."
Sim, até o suave tocador de flauta Andréas que viera penitenciar-se e, assim, trazia uma roda de pedra ao pescoço é considerado suspeito.
Por que razão queria ele ir morrer no caminho de Jerusalém? E os três irmãos Celtas com as suas setas mortíferas que se tinham juntado a eles logo no princípio e falavam uma língua estranha quem seriam?
Na manhã seguinte chegam a Grenoble e vão em direcção a leste. À frente, o Senhor “montado na égua Mistral, com o frio constante em seu redor, na estranheza da floresta que não vê, solitário e concentrado, silencioso como se esperasse ouvir alguma voz”.
Atravessam o Piemonte mas a distância do destino deles é incomensurável.
Por sua vez, Claude-le-Bossu pensa que o moral das tropas está em baixo e sabe que, se pudessem, voltavam já para casa. Preocupa-se com o silêncio do Senhor e escreve:
“O nosso Senhor, Guillaume de Touron, cavalga o dia inteiro, solitário e a alguma distância da tropa, sem olhar para trás nem se preocupar se os companheiros o seguem, como se se dirigisse sozinho para Jerusalém.” (pg.58)
Jerusalém! “A sua alma era uma alma que falava da necessidade de amor.”
Cavalga em direcção ao sol nascente até os raios do sol poente fazerem brilhar a parte detrás do seu elmo dourado. Só então parava. E, então, observava os seus homens um a um, vigiando-lhes as expressões enquanto comiam, jogavam, dormiam ou cavalgavam.
Pensava que era inútil esse cuidado: como podia distinguir um Judeu?
“Para quê procurar sinais exteriores e concretos? Por que na verdade o que há de judeu num Judeu?”, meditava. Certamente não a sua forma exterior ou a sua silhueta mas algum elemento abstracto. O contraste nem se pode descobrir nas qualidades da alma?”
O tempo vai correndo, surgem pequenas escaramuças e grandes combates com cruzados vindos do Norte. Aparece um grupo bem armado de cavaleiros da Flandres, com os quais lutam e alguns morrem. Sendo mais fracos em número o Senhor teve de pedir tréguas. Não sem ter pago em moedas o “direito de passagem”.
E o Senhor Guillaume de Touron continua a interrogar-se. Por que razão o pequeno exército ia sendo dizimado?
E sempre a mesma frase na cabeça: "na verdade o que há de judeu num Judeu?" Todos eles podiam ser Judeus. Receava pela viagem, pelo futuro da sua missão.
“Alguma coisa lhe dizia que este lugar era estranho e que Jerusalém talvez não estivesse no fim desta viagem mas sim de uma outra viagem que nada tinha a ver com esta; Jerusalém não era a Cidade de Deus e que Andréas talvez fosse o Judeu escondido ou talvez fosse apenas Andréas.”
Obcecado, um dia chegou a pensar: "quem sabe? talvez o Judeu fosse ele próprio.”
***
É muito
difícil dizer mais sem revelar o fim da história que tem muito que se lhe diga apesar
da aparente simplicidade. Um fim que nem é bem um fim, é uma continuação.
Que acrescentar? Numa peregrinação à Cidade Santa, uma tropa de cruzados segue o seu Senhor numa cavalgada triunfante em que a matança de Judeus vai acompanhando o seu avanço. A dado momento, porém, uma espécie de maldição cai sobre os soldados e pouco a pouco deixam-se dominar pela inquietação e pela ansiedade.
É um livro que fala de um tema sempre actual: o racismo em geral e o anti-semitismo em particular e a dificuldade de aceitar o outro.
Sobre o estilo do seu autor cito as palavras da crítica Claude Kiejman, na contracapa: “Amos Oz escreve de um modo conciso, linear, preciso e aqui o seu estilo pode lembrar Tchekhov ou Gogol.” (2)
E é verdade, trata-se de um relato seco, sem floreados nem excessos a não ser a brutalidade dos acontecimentos em si. Esta dureza e secura de expressão talvez se devam à força do essencial do assunto: o fanatismo. Nessa altura o que nos rodeia é solidão, ódio e morte.
(1(1)“Jusqu’ à la mort”, Ad Mavet, Sifriat Poalim, em 1971; “Jusqu’ à la mort” e “Amour tardif” (tradução francesa), Seuil, Ed. Calmann-Lévy, Points, 1977
(2(2)Claude Kiejman no Magazine Litteraire, citado na contracapa de “Jusqu’ à la mort”
(3) O termo pogrom vem do russo; o significado está ligado à perseguição deliberada de um grupo étnico ou religioso. Historicamente, o termo tem sido usado para referir ataques de massa violentos e matanças de judeus e destruição de casas e bens.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Conc%C3%ADlio_de_Clermont
https://super.abril.com.br/mundo-estranho/o-que-foram-as-cruzadas/