sábado, 9 de julho de 2022

Selma Lagerlöf e outras histórias da sua vida

A escritora Selma Lagerlöf (1) nasceu em 1858 na Suécia numa casa senhorial em Márbacka, na província de Värmeland. Além de ser o local onde a escritora nasceu, foi também ali que viveu os primeiros 24 anos da sua vida e onde faleceu em 1940. (2) 

Vida complicada a sua e por vezes dolorosa devido a uma enfermidade com que nascera.

Värmeland

Todos conhecemos a escritora, não vou aprofundar a sua biografia. Refiro apenas que ganhou o Prémio Nobel em 1909 sendo a primeira mulher no mundo a ganhar este Prémio. Várias tentativas anteriores foram feitas propondo o seu nome, mas foi sempre recusado. A ideia era que  "só um homem podia ter esse Prémio".

Em 1941 vai ser também a primeira mulher nomeada membro da Academia Real Sueca.

Começa a ser bem conhecida depois do livro A Saga de Gösta Berling” (1891).

Entretanto, de 1906 a 1907, escreve uma das suas obras mais famosas, “A maravilhosa viagem de Nils Holgersson através da Suécia” traduzida em mais de 50 línguas e também em português. (3)

A razão da existência deste livro de viagens é interessante: sabendo das suas qualidades e do gosto de contar histórias para crianças, o director de uma escola primária pede-lhe que escreva um livro para os alunos da escola primária. Um livro que lhes ensine a história e fale também ‘geograficamente’ do país.

Daí o título referir-se a uma "maravilhosa viagem" através da Suécia. O professor era Alfred Dalin - director de uma escola muito famosa em Husqvarna. Selma Lagerlöf aceita. Informa-se, estuda e escreve então as aventuras de um menino muito teimoso que, montado num ganso, viaja pelos céus da Suécia percorrendo todo o país. 

   

Selma Lagerlöf, por Carl Larsson (1908)

 O livro teve sucesso - um sucesso mundial – logo publicado por todo o mundo. A maior alegria de Selma, além do sucesso claro, foi poder comprar em 1907, com o dinheiro do livro, a casa de Márbacka que a família perdera em 1887. 

 Em 1908, sai “O livro das lendas”, nove contos e lendas desse país nórdico, em que fala da história estranha de um músico arrogante, de dois irmãos inseparáveis que adoram Júlio Verne e de outras personagens que vêm à memória da infância e do mundo rural em que vivera. (4) Outros livros vão saindo e a escritora continua a ser muito apreciada.

 

Por curiosidade refiro um livro muito interessante de Cristina Carvalho (5) saído  e que é uma biografia romanceada de Selma Lagerlöf ou, como diz a autora, um “romance biográfico”, intitulado “A Saga de Selma Lagerlöf”. Ou talvez melhor uma “auto-biografia romanceada”.

Conta Cristina Carvalho:  “Foi escrito em golfadas, em horas imprecisas do dia ou da noite; não obedeceu a nenhuma rotina disciplinada. Como em todos os actos de paixão fui sobrevivendo em equilíbrios improváveis. Conheci regiões que jamais imaginei conhecer, reconheci a vida desta pessoa, imaginei-a com a possível intimidade. Julguei muitas vezes ouvi-la.” (4) 

 
Selma Lagerlöf  e Sophie Elkan

Acredito que só assim sem disciplina rotineira de noite e de dia a qualquer hora um livro destes poderia ser escrito!

Para não falar das viagens, do percurso que fez através dos lugares onde Selma viveu desde Sune ao cemitério onde a maior parte da família está enterrada. Recorda “o corredor interminável ladeado por enormes árvores, plátanos e bétulas. E o ácer vermelho, meu maior prazer na contemplação.”(op.cit, pg 31)

Penso que nesta biografia romanceada – que se lê num ápice porque escrita muito bem e com uma abertura enorme por parte da biógrafa para com a escritora - cada página permite descobrir um pouco mais do mundo íntimo de uma escritora muito lida mas pouco “conhecida” por dentro – como por exemplo a sua história de amor com Sophie Elkan, nascida em Gutemborg, na Suécia (6).

Gutemborg
 
Sophie Elkan

Já em 1942 a biógrafa de Lagerlöf, Elin Wägner, falara da importância da amizade das mulheres na vida da escritora. Fala de Sophie Elkan, uma jovem mulher que ficara viúva dez anos antes quando o marido e a filha pequenina tinham morrido de tuberculose e da amizade amorosa que se criara entre Sophie e Selma. 

Elkan pertencia a uma família judia culta, letrada, falando várias línguas. É ela quem vai acompanhar Selma na suas viagens a Itália, a Jerusalém e Egipto, por exemplo. Selma Lagerlöf dedica o seu romance “Jerusalém, a Cidade Santa” (1901) à amiga “companheira de vida e de cartas” – com quem viverá até à morte de Sophie.

No livro "A Saga de Selma Lagerlöf” lemos a páginas 121 e seguintes:Em Janeiro de 1894, vi, pela primeira vez, Sophie Elkan num jantar em casa de amigos.” 
E “o meu primeiro amor foi Sophie Elkan” confessa

Antes encontrara Valborg Olander, professora como ela e activista dos direitos da mulher. “Era um momento de intensas interrogações, de grande indecisão e ansiedade” e descobre que se apaixonara por ela. 

Sempre se entendera bem e compreendera os homens - explica - mas não ao ponto de abrir a sua intimidade, nisso havia uma certa desconfiança.

Não imaginava que ia ter uma relação de amor intenso com essa mulher durante mais de quarenta anos.”(op.cit.pg.114)

Tantas mais histórias haveria a contar. Quero apenas lembrar uma história diferente, de altruísmo da sua parte - talvez menos conhecida - a amizade com Nelly Sachs, judia alemã.

Esta escritora Nelly Sachs vai ganhar em 10 de Dezembro de 1966 o "Prémio Nobel" de Literatura, dividido com o grande romancista israelita Shmuel Y. Agnon. (7)

Nelly Sachs e Shmuel Y. Agnon (1966)

Em Estocolmo, no discurso de agradecimento quando recebe o Prémio Nobel,  Nelly Sachs (8) fala do momento em que aos 15 anos começara a escrever-se com Selma Lagerlöf. Vai ser um discurso comovente e com revelações inesperadas. 

 
Estocolmo

A amizade começara muito antes. Ao ler o primeiro romance de Selma, “A Saga de Gösta Berling” (1891), a jovem Nelly Sachs escreve à romancista dizendo quanto amara o livro. 

 

Nelly Sachs

Selma respondeu-lhe delicadamente. A amizade começou assim e transformou-se numa longa correspondência que a sobrinha de Selma, Elizabeth Lagerlöf, guardou e organizou. 

Na década de 1920, Nelly começa a publicar alguns poemas na imprensa. O escritor judeu austríaco Stephen Zweig (nasce em Viena em 1881e morre, suicida, em Petrópolis, Brasil em 1942) entusiasma-a e, em 1921, ajuda-a a publicar o seu primeiro livro, “Lendas e Histórias”.

 Livro que  ela  dedica à autora sueca. Esta responde-lhe num postal: “Agradeço sinceramente este livro tão belo. Eu própria não teria escrito melhor.” 

A vida vai seguindo o seu ritmo, Selma Lagerlöf continua a escrever e a publicar na Suécia e Nelly vai-a seguindo, em Berlim.

Em 1966, no momento solene da entrega do Prémio Nobel, perante o grande público, Nelly, comovida, revela a dívida enorme que tem para com a escritora sueca, que lhe salvara a vida. 

Durante o nazismo, em 1939, Selma Lagerlöf salvou-lhe a vida - quando a mãe e ela, como judias, iam ser deportadas para um campo de concentração.

 

As suas palavras são: “No Verão de 1939, um amigo alemão veio à Suécia visitar Selma Lagerlöf e perguntou-lhe se ela poderia encontrar alguém que desse refúgio à minha mãe e a mim”. 

Continuou: “Na Primavera de 1940, depois de meses difíceis e tortuosos, minha mãe e eu chegámos finalmente a Estocolmo. A Dinamarca e a Noruega tinham sido ocupadas pelos nazis - e a grande escritora já não estava aqui.”

Selma Lagerlöf morrera em 16 de Março sem saber se conseguira salvar da morte a poetiza e a mãe. Nunca esquecera o pedido de Nelly: um salvo-conduto para fugir de Berlim com a mãe.

Com a ajuda da Família Real Sueca, Selma Lagerlöf, a morrer, pede ao Príncipe Eugénio até ao fim o "visto de saída de emergência" que teria sido impossível arranjar de outro modo. 

O "salvo conduto" chega à Alemanha a tempo - no mesmo dia em que chegara a ordem de deportação para o 'campo-ghetto' de Theresienstadt.

 
Nelly Sacks e a mãe, em Estocolmo
 
Pode-se dizer que escaparam por um pelo: com o visto apanharam o último avião que partia de Berlim para Estocolmo.

Nelly Sacks escapara aos nazis mas o Nazismo afecta-a profundamente. Jovem, tinha uma visão romântica e alegre do mundo mas a descoberta do que foi possível fazer na Shoah - aos judeus e a outros seres inocentes - marca-a profundamente. Deixa de escrever - ela que começar tão jovem.

Quando o seu bem-amado (9) desaparece nos campos de concentração - onde toda a família de Nelly morre - a poetiza volta a pegar na caneta. A poesia perdera, porém, o tom de leveza e o que vai escrever reflectem o horror do que viveu. 

Escreve o poema ‘Prayer for the Dead Bridegroom’ (Oração pelo Noivo) dedicado ao seu amor assassinado.

A poesia ganhara um tom de profunda melancolia e amargura e escolhe os temas em que a morte, as imagens de pó e sombras se movem – e os versos têm agora um tom profético, místico.

No fundo, a literatura que a tornou famosa só a começou a escrever no exílio de Estocolmo. Graças a Selma a quem ficou eternamente grata.


A humanidade e solidariedade e a força de vontade de Selma Lagerlöf impressionam-nos e nunca conseguimos esquecer a figura desta escritora que marcou o seu século. Por isso quero salientar uma vez mais: foi a primeira Mulher que ganhou o Prémio Nobel, a primeira Mulher a entrar para a Academia Real da Suécia, uma feminista e defensora dos direitos da Mulher que inaugurou em Estocolmo do primeiro encontro das Suffragettes.

Uma autora que permanece viva a qualquer nível cultural. Anda hoje é representada nos teatros de Estocolmo e de Gotemburgo. Uma mulher nobre e generosa. Admirável.

 De Selma Lagerlöf escrevia o escritor alemão, Hermann Hesse: “Nenhum outro romancista consegue contar histórias tão inesquecíveis.”

E Marguerite Yourcenar: “Entre as escritoras de grande talento e génio, nenhuma, na minha opinião, ocupa posição tão alta como Selma Lagerlöf.”

***

(1) Selma Lagerlöf nasceu a 20 de Novembro de 1858 em Märbacka, na província de Värmland, perto da fronteira com a Noruega. Onde vai morrer em 16 de Março de 1940.

 (2) Construído em 1793, o edifício vai ser completamente refeito por decisão da escritora entre 1921-1923. Tem uma pequena livraria, um pequeno jardim e um café para os visitantes. No testamento Selma Lagerlöf deixou expresso que queria que a ‘Casa de Márbacka’ estivesse sempre aberta ao público. 

(3) A primeira tradução portuguesa do livro “Nils Olgersson” sai em 1936 – traduzido por Maria de Castro Henriques Osswald - na Porto Editora.

 (4) Cristina Carvalho, “A Saga de Selma Lagerlöf” (Romance Biográfico), “Informação”, Editora Relógio D’Água, 2018. Cristina Carvalho nasceu em Lisboa em 10 de Novembro de 1949. É autora de vários livros alguns incluídos no Plano Nacional de Leitura. Escreve biografias romanceadas como “O Olhar e a Alma de Modigliani” publicado em 2016. Cristina Carvalho de Carvalho é filha do poeta António Gedeão (Prof. Rómulo de Carvalho) e da escritora Natália Nunes.

 (5) “O Livro das Lendas” é publicado na Suécia em 1908. A tradução portuguesa reeditada em 2019, Livros do Brasil - Colecção Dois Mundos.

(6) ) Sophie Elkan nasce em 3 de Janeiro de 1853 e morre em 5 de Abril de 1921.

(7) Shmuel Y. Agnon nasceu em 17 de Julho de 1888 e morreu em 17 de Dezembro de 1970 em Jerusalém. É autor de um belo livro sobre a criação de Israel "Only Yesterday".

(8) Nelly Sacks nasce em Berlim em 10 de Dezembro de 1891 e morre em Estocolmo em 12 de Maio de 1970 com um cancro. De família abastada foi educada por professores particulares e teve uma infância tranquila. Estudou Dança, Música e Literatura e sonhava ser um dia bailarina. Na década de 1920, começa a publicar alguns poemas na imprensa. 

(9) Não se tem notícia de quem fosse este seu amor, perdido no Holocausto. Fala-se de um jovem que encontrara ainda muito nova mas do qual se ignora tudo.

(10) Selma Lagerlöf foi  um ícone do feminismo. De facto em 1911 inaugurou a International Conference for Suffragettes que se realizou em Estocolmo.

https://en.wikipedia.org/wiki/Shmuel_Yosef_Agnon

https://www.blogletras.com/2017/12/a-escritora-premio-nobel-de-literatura.htmlhttps://livrologia.blogs.sapo.pt/selma-lagerlof-a-amizade-colorida-com-308517

https://www.poetryfoundation.org/articles/158061/all-words-refugees

https://english.elpais.com/elpais/2017/12/20/inenglish/1513773260_669504.html