segunda-feira, 13 de março de 2023

O Ratinho e o Ouricinho e as árvores cortadas

Numa destas manhãs já há uns tempos acordei com um ruído estranho e desagradável lá fora. Parecia uma serra electrica e confesso que me preocupei. Os amigos Ratinho Poeta e Ouricinho vieram a correr e abriram a persiana. A Gatinha japonesa vinha atrás. Eles dão por tudo o que se passa em casa e fora dela. Estavam a espreitar à janela  e pensei: "mais um desgosto para os meus amigos".

- Jana anda cá depressa!

- Vem ver uma desgraça...

Como falaram os dois ao mesmo tempo não sei quem disse isto ou aquilo. Levantei-me para ir à janela. O Ouricinho gritava, em pânico.

- Uma coisa horrível!

Imaginei o que era: as maravilhosas árvores de rama imponente que ao acordar tinha, como um quadro vivo, em frente da janela, estavam a ser podadas.

Cerca de duas semanas antes, quando de noite houve o grande temporal que varrera a nossa zona,  pensei no perigo em que estavam.  

Quando o vento sopra, em rajadas muito fortes, os troncos dos eucaliptos e a rama dos salgueiros e das faias, agitavam-se em movimentos violentos, chegando a dobrar-se como se estivessem a quebrar.

Lembro-me que nessas noites tive medo, porque tinha medo que os troncos mais altos se  partissem. Os tufos de folhas prendiam-se uns aos outros abraçados e pareciam gemer. Receara o pior porque a situação das árvores tornara-se perigosa. Vira cair ramos rasgados e soltos das árvores, pendurados, que em qualquer momento podiam cair em cima de alguém ou de algum carro.

Agora o Ratinho e o Ouricinho davam grandes “Ah!” e “Oh!” de espanto e também de susto. A Gatinha japonesa tinha-se sentado no parapeito da janela e não dizia nada, olhava muito calada como era seu hábito.

- Jana, anda ver o que estão a fazer às nossas árvores. É um crime!

 Estão a cortá-las, coitadinhas!

- Já aqui estou, Ouricinho, estou a ver.

A voz do Ratinho reflectia tristeza quando disse:

- Vão cair os ramos todos. Estão a cortar tudo rente. As nossas lindas árvores...

Ficou pensativo: 

- Eram tão bonitas, não eram? Ficávamos ali sentados horas a olhar lá 

para fora não era, Ouricinho?

As "nossas árvores", como eles diziam, eram de facto uma maravilha da natureza. Na mudança das estações era um espectáculo que eu e eles adorávamos: ver as folhas mudar de cor, depois as árvores perderem as folhas. 

As folhas espalhadas no chão são como tapetes coloridos com nuances entre o amarelo dourado e às vezes mesmo vermelho.

Na Primavera era um encanto ver as folhinhas animarem no seu verde puro aqueles troncos secos. Tínhamos orgulho na beleza daquelas árvores, como se de facto nos pertencessem.

Lá fora, havia um movimento fora do vulgar e muita gente a tratar das árvores que pouco a pouco iam perdendo os ramos que caíam com grande ruído. Estavam a cortar os ramos dos eucaliptos que eu vira crescer e que tinham adquirido uma altura espantosa. 

No parque do liceu – eu chamo-lhe sempre ‘liceu’ apesar de hoje ser uma ‘escola secundária’.  Os ramos que caíam em peso eram serrados e deitados para o lado de fora das grades do parque. Fazia realmente impressão.

O que podia fazer para consolar os amigos neste momento?

Lembrei-me do terreiro do liceu como era dantes, sem árvores, apenas com os eucaliptos e pouco mais. “E se lhes contasse a história?”, pensei. Dito e feito!

- Ouçam, não tenham medo, os ramos e as folhas vão voltar a crescer! Como dantes!

O Ouricinho olhou para mim, desolado.

- Ó Jana, não acredito nisso! O que se corta não nasce mais.

- Tudo renasce nesta vida, Ouricinho. Como é que estas nossas árvores apareceram aqui? Foram plantadas! Querem que eu vos conte uma história verdadeira?

- Claro que queremos – disse, sério, o Ratinho.

- Eu também quero saber!

O Ouricinho quer sempre saber tudo. E eu comecei a contar.

 

- Vocês não sabem, mas eu ajudei a plantar estas "nossas árvores"!

- Tu? A sério? Não acredito!

Era o Ouricinho, desconfiado. E acrescentou :

- Não sei, mas conta, Jana, quero ouvir!!

E contei-lhes a história daquele terreiro onde dantes só havia uns arbustos e um ou outro eucalipto.

Ouviam, atentos, e eu ia desfiando as memórias de um dia especial em que eu, jovem professor acabada de ser colocada na Escola Preparatória António Pereira Coutinho, tinha andado com muitos colegas e alunos, imensa gente generosa, a plantar árvores de todos os tipos. Árvores e arbustos de cores e folhas diferentes que ainda duravam hoje.

- Sim, foi num “dia da árvore” de há muitos anos.

E contei-lhes como, levados pelo entusiasmo de um colega mais velho, professor de Desenho, um pintor que viera do Porto, os professores - e os jovens alunos do 1º e 2º anos do Ciclo Preparatório- se puseram a cavar e a plantar árvores. Eles ouviam tudo, calados, já interessados.

- Tenho pena, mas não consigo recordar o nome completo desse colega, só sei  que se chamava Manuel e tinha um bigodinho branco.

- Claro! Lembras-te por causa do Manuel... - disse o Ouricinho um pouco triste.

- Sim, lembro-me por causa do Manuel.

Via-os divertidos com a ideia de pessoas crescidas e miúdos andarem todos de  enxadas na mão a cavar buracos para enterrar os rebentos com raízes das plantas que iriam alegrar o terreiro da escola. Porque assim tinha sido.

- Ó Jana, mas isso é muito giro! Tu plantaste muitas?

- Algumas! Já não sei quantas. Começávamos de manhã ou de tarde e demorou vários dias. Eu era nova, tinha força e gostei de ter participado. Passado um tempo ficou lindo aquele espaço vazio cheio de plantinhas verdes! Que hoje estão assim!

- Tu plantaste?, riu-se o Ratinho. Sabias trabalhar no campo?

- Sim, plantar era fácil e nenhum de nós tinha experimentado plantar uma árvore! E eu gostei. Sempre gostei...

Lembrava-me da quinta da Serra e da avó. Era ela quem tinha a mania de plantar coisas! E expliquei-lhes:

Serra de Portalegre

- A minha avó gostava de ter a sua  horta na quinta da Serra e, quando íamos de férias, ela não parava. Sempre a subir e a descer o caminho que levava ao tanque porque era lá que estava a horta. E eu gostava de ir atrás dela. 

(Agora já chegara o índio Navajo e o burrinho. Todos queriam ouvir a história das árvores e da minha avó.)

- A sério? E tu sabias essas coisas? Era o Ouricinho curioso como sempre.

- Sim, aprendi, era simples. A avó plantava tomate, alface, cebolas e eu ia atrás dela. Até aprendi a fazer a rega, com um sachinho a afastar a água que corria do tanque e a empurrá-la no sentido certo para regar as alfaces. 

-Ah é por isso que tens a varanda cheia de tomateiros e de salsa... Saíste à tua avó!

- Acho que sim, mas este ano tentei plantar pimentos e não nasceram.

O Ratinho disse:

- Sim, mas para o ano nascem...

O Ouricinho protestou.

- Sei lá se nascem! Isso foi há muito tempo.

Fiquei a pensar em tanta coisa que passara por cima da vida desses professores e alunos cheios de boa vontade, agarrados ao seu sacho ou enxada para arranjar o "nosso jardim". Quantos desapareceram já? Estava a ficar comovida.

 Felizmente a Gatinha Japonesa lembrou-se de voltar à conversa:

- E as azeitonas? E a oliveirinha? Também foste tu e nós. Bem, nós ajudámos a colhê-las.

O Ratinho que estava encostado à portada da janela olhou lá para fora e disse:

- Tens razão, Jana. As árvores estavam perigosas e os ramos podiam cair de um momento para o outro. Tinha de ser feito. Mas custa ver...

E apontou:

- Vejam só a quantidade de madeira que está ali no passeio. Se caísse em cima de uma pessoa.

O Ouricinho resmungou, pouco convencido, e mudou de conversa para continuar a protestar:

- Pois é, e os passarinhos que lá viviam tiveram tempo de mudar os ninhos de sítio? Terão tido tempo de fugir? Alguém pensou nisso?

- Esperemos que sim, disse o Ratinho. Os trabalhadores devem ter agitado as árvores antes. E os passarinhos estão sempre de ouvido à escuta, com um olho aberto e devem ter fugido muito antes.

- As árvores vão crescer, amigos, vão crescer. Tudo cresce não é verdade?

 Tudo passa, tudo renasce e tudo continua a ser igual, bem o diz Camões. Quando crescerão outra vez aqueles ramos no parque do Liceu?, pensei. 

 - Ó, Jana, tudo isso é muito bonito mas não acredito que as árvores cresçam assim tão depressa. Quanto tempo vai demorar. Julgas que crescem como os tomates?

Apontou com o dedo espetado:

- Viste o buraco que ali está? 

O Ratinho perguntou:

- Qual buraco? Não vi.

O Ouricinho continuava a apontar com a mãozinha dele:

- Não se via nada e agora vês a escola quase toda pelo meio do buraco!   Dantes estava escondida. Era uma verdadeira floresta, a nossa floresta privativa.

- Nada de pessimismos, Ouricinho! Eu também estou triste mas não faço as tuas fitas - o que tinha de ser, tinha de ser e pronto.

A Gatinha japonesa era pragmática.

- Só sei é que ventania dos últimos meses me metia medo!, continuou ela.

Apoiei-a claro:

 - Gatinha, tens razão. Este trabalho tinha de ser feito. E quero ver-vos optimistas, as folhas vão voltar a crescer!

O Ouricinho ainda tentou duvidar:

- Achas mesmo?

Continuaram a conversar uns com os outros e pouco a pouco acalmaram-se. A verdade é que já sinto saudades da mata de árvores e folhas verde que via de manhã, chovesse ou fizesse sol. A tal mancha verde de folhas como um quadro vivo à minha frente. A qualquer hora do dia ou da noite. Senti uma dor no coração. Quando crescerão os ramos? Será que já os não vou ver? E encontraremos alguma vez quem amámos e se foi embora

Voltei a responder ao Ouricinho mas sem a mesma certeza.

- Não sei, Ouricinho, talvez...Não sei.

Mas ele já estava a brincar. Fiquei a olhar para os ramos  cortados em bocados. O fim de um pequeno mundo, o nosso pequeno mundo.