Para as minhas irmãs
Em frente dessas escadas havia uma janela sempre fechada e a ordem da minha mãe nos meus ouvidos: “não podes debruçar-te!”
Uma das minhas tentações, muito pequenina, era empoleirar-me na poltrona e espreitar a rua, quase deitada no parapeito da janela do segundo andar. Costumava empurrar sozinha a cadeira e subia para ver o que se passava lá em baixo.
Um dia, a tia Nina apanhou-me com a cabeça inclinada a ver a rua, com as mãos ainda pequeninas apoiadas no parapeito. Há pouco tempo voltou a contar-me essa história, ainda com uma expressão de susto no rosto:
“Ai, Maria João, peguei em ti e dei-te uma data de açoites! Tinha o coração na boca, tanto medo tive de não chegar a tempo.”
Aventureira e teimosa, continuei sempre nas minhas aventuras e nada me assustava.
Mais crescida, um dia apanharam-me na janela da sala do piano no andar de baixo, a fazer circo. Era Verão e o Circo passara na cidade durante a “Feira das Cebolas”, num Setembro qualquer.
Uma amiga da minha mãe que morava na nossa rua viu e mandou um recado à minha mãe, a dizer que eu estava no parapeito. A minha mãe desceu com certeza a correr e levei umas palmadas pela certa.
O Circo era o meu encanto e a minha perdição!
O Circo vinha com as barracas, os carrinhos de choque, o Carrossel e recordo que um dia veio o cilindro da morte. Nessas alturas ficava apaixonada pelos trabalhos de circo e só pensava em trapézios e em equilibrismos.
Sei que uma vez subi para uma cadeira e agarrei-me à trave de madeira de uma porta que havia nos baixos da nossa casa. Fiquei pendurada pelos braços numa espécie de baloiçar. Acabei por cair e parti a cabeça.
Calhou ser num dia em que havia um filme que eu queria tanto ver: "O leão de Damasco". Sei que era um filme italiano - como italiano era o autor do livro (publicado em 1910), Emilio Salgari, um dos escritores que mais li na minha infância.
Era na varanda lá no alto que no Verão lia as histórias dele. A Florinda - que está tão ligada à nossa infância e que, mais tarde, cuidou dos meus filhos em São João do Estoril - punha um lençol de lado a lado a fazer de toldo e ali nos instalávamos ao fim da tarde.
Que imaginação tinha Salgari! Tantas aventuras, tantas viagens, tantos piratas, tantos combates em mundos, selvas e mares que ele, Salgari, nunca conhecera - pois nunca saiu de Itália.
Era
a mania de imaginar o mundo das alturas e a ideia de ser capaz de fazer tudo? Apenas
curiosidade ou desafio? A verdade é que nunca tive medo das alturas e devo dizer que julgava não ter medo de nada. Controlava o meu medo.
Quando pequenina era, claro, a inconsciência das crianças mas, adolescente, parece-me um desafio a mim própria. Penso que talvez sentisse medo e queria confrontar-me com ele.
Essas imagens habituara-me a vê-las da pequena varanda que dava para o telhado - uma varanda de onde se contemplava a cidade toda e, lá bem ao fundo, se viam os campos de trigo e o limite do horizonte.
Teria sido um sonho, com certeza, não creio que me aventurasse a saltar para o telhado. Muitas vezes, porém, tinha a dúvida se o teria feito ou não, de tal modo real era o sonho.
Sentava-me no primeiro degrau a recortar bonecos de papel com uma tesoura sem bicos. Vendiam-se nas papelarias uma espécie de cadernos com bonecos para recortar e roupa também de papel que, depois, se “pendurava” nos ombros das figuras para as vestir.
Comecei a desenhar os meus bonecos, pintava-os com lápis de cor e recortava-os de
modo a fazer deles actores das minhas histórias. E, assim, logo apareceram índios e cowboys, os heróis preferidos desses anos.
Às vezes, fazia uma concessão especial à minha irmã mais nova e deixava-a brincar comigo. Fazíamos uma certa diferença de idade, eu achava-me “grande” ao pé dela.
Gostava de andar atrás de mim, queria brincar comigo e gostava das minhas brincadeiras. Acho que tinha curiosidade talvez por eu ser mais crescida.
Quando resolvia ir pintar com as aguarelas, ela vinha com a sua caixa de lápis de cor e vinha fazer desenhos ao meu lado. Certos dias não me apetecia ver ninguém e fugia para outra sala mas, minutos depois, lá a sentia vir com o caderninho e os lápis de cor.
No tal vão das escadas cada uma tinha os seus bonecos: eu virava-me para a parede e ela sentava-se na outra ponta do degrau a falar baixinho como eu.
Ria-se muito a minha irmã pequenina, foi sempre a mais "solar" de nós três - e ainda é. A mais
velha parecia-me mais séria do que nós - eu era muito pensativa por momentos, mesmo um pouco taciturna, no entanto gostava muito de brincar. E era bom brincar com ela.
Há uns
anos, voltei à velha casa da infância, a casa amarela no meio das casas
brancas da rua. Creio que era Natal.
Quis ver o que ficara das memórias tão vivas que tenho ainda. A sensação desse reencontro foi dolorosa.
A casa pareceu-me abandonada, a tinta das paredes desbotada - mas a cor era ainda o amarelo. A porta da rua era igual, tinha o velho martelo de bater à porta e as grades dos postigos e os vidros também eram os mesmos.
Lá estava a janela do primeiro andar onde me punha a fazer de equilibrista depois do Circo se ir embora.
A cor da porta é que já não era verde - um verde tão bonito - e sim um encarnado vivo. E vi as escadas de pedra que nesses tempos subia a correr.
No primeiro andar não estava o quarto dos meus pais, o quarto azul como lhe chamávamos, nem a sala do piano onde a minha mãe vinha tocar quando começava a Primavera.
O primeiro andar era agora um escritório de advogados. Fui subindo. Parei a meio das escadas que levavam ao segundo andar, talvez à procura desse canto mesmo onde costumava brincar. No vão das escadas.
Não pude ir mais adiante, não consegui subir as escadas. Desculpei-me dizendo para mim que a porta estava de certeza fechada. Tinham separado os dois andares e, ao cimo das escadas, havia a porta de uma casa habitada por alguém. Em vez do velho trinco havia uma fechadura moderna.
A meio das escadas, parei.
Quem sabe se haveria uma campainha ou se estaria gente detrás
daquela porta? Podia ir ver o meu vão das escadas... Não tive coragem de
tocar à campainha talvez com medo que alguém abrisse.
A verdade era que não tinha a coragem de voltar ao mundo perdido da infância e perceber que não existia.
O tempo foge, corre e tudo fica para trás. No entanto, o que se viveu intensamente não há tempo nenhum que o leve.
Julgamos
nós. Bom Natal!