Cheguei a São Tomé de noite. Ia entrar num continente desconhecido e confesso que estava impressionada com essa ideia.
As ilhas de São Tomé e Príncipe e os seus ilhéus minúsculos iam ser a minha África durante cinco anos. Situadas sobre a linha do Equador, no Oceano Atlântico, só o pensamento de que eu ia estar sobre esta “linha” excitava a minha imaginação.
O que era para mim o Equador para me parecer tão importante? Era a distância acima de tudo, a lonjura do percurso e saber que dividia o globo ao meio. Estudara nos compêndios que era uma linha imaginária e sentia um pouco aventurosa essa região longínqua onde iria viver.
Eu era imaginativa, sempre fui, e naquele momento pensava ainda que poderia ver a constelação Cruzeiro do Sul, a mais importante do hemisfério Sul, e talvez pudesse distinguir algumas das suas estrelas.
Sim, quantas vezes vi mais tarde o Cruzeiro do Sul deslocar-se por cima da minha cabeça
- enquanto o senhor Semedo me ia explicando tudo sobre o céu, o mar e o nosso
jardim.
Era Outubro quando cheguei. Deixara para trás um Outono tranquilo e fresco.
O avião aterrou em São Tomé e a porta deslizou para o lado e imediatamente respirei o ar abafado e o perfume forte da noite equatorial, na “estação das chuvas”.
Uma noite negra com um cheiro especial.
Desci as escadas do avião e atravessei a pista a pé com os outros passageiros sem saber o que me esperava. Estranhei o calor, já passava das nove horas da noite e nunca sentira tanto calor - nem nas noites de Agosto mais quentes do meu Alentejo.
A humidade era enorme e respirar era um esforço para mim. Tudo era novo: esse calor húmido, o perfume intenso das flores de magnólia, as cores agressivas dos hibiscos.
Era cheiro a flores? A fruta? A terra húmida? A especiarias? Ao aspirar todos esses perfumes sentia na boca um gosto a canela, a cacau - sinestesia com certeza apenas criada por mim.
Era uma realidade diferente e ao mesmo tempo familiar. Teriam os livros de aventuras que lera ajudado a perceber essa forma de intimidade com a magia do novo mundo?
Mais tarde descobriria nessa "estação das chuvas", a terra barrenta e gretada pelo calor e, logo, embebida na água de chuvadas intermináveis. As trovoadas ensurdecedoras com relâmpagos que durante poucos segundos iluminavam as ruas sem luzes de São Tomé.
Agora caminhava apenas, perscrutando a escuridão para além das luzes fortes da pista de aterragem.
Ouvia ao longe o ladrar
dos cães. Perto, era o barulho de vozes, de chamamentos, de risos - o ruído da multidão
que esperava lá fora a chegada do avião que chegava todas as semanas de Lisboa
Acrescentava-se ao entusiasmo dos viajantes que chegavam de Lisboa, carregados de coisas “preciosas”, coisas que não havia em São Tomé.
Empurrando, esbracejando, os passageiros iam seguindo em frente e eu com eles. As malas desapareciam de repente, sugadas por braços invisíveis que procuravam retirar as malas e os pacotes meio desfeitos aos dois empregados que, vagarosamente, iam amontoando numas carretas de madeira que tinham trazido para esse efeito.
De repente percebi que nada me espantava, deixara-me entrar noutro ritmo e deixava-me levar, curiosa e divertida, mas ao mesmo tempo com um sentimento de irritação que não conseguia controlar.
No hall da ‘aerogare’ havia dois guichets, um para os passaportes, outro para a inspecção sanitária pois tínhamos de mostrar o "caderno amarelo" que provava que tínhamos feito as vacinas necessárias.
As pessoas acotovelavam-se para chegarem mais depressa, de braços esticados, com os livrinhos amarelos, tudo numa confusão indescritível.
Olhava para todos os lados, curiosa, a ver, a observar bem como era a gente da terra onde iria viver uns anos.
De repente dei por mim numa ânsia a querer
chegar à rua - sempre atrás dos outros a ser empurrada e a empurrar – e, de repente, já estava cá
fora.Como se tivesse vindo nos braços dos outros.
“Como é possível esta agitação e esta confusão que até parece organizada?”
Tudo me parecia “surrealista” mas à medida que a noite avançava, eu avançava com a noite, e tive a sensação clara de que começara a aceitar aquele mundo.
A noite avançava mas o calor era cada vez mais intenso, a minha pele parecia arder. Custava-me respirar.
Em redor o movimento era tranquilo: gente alegre, risonha, despreocupada, a viver, porém, como eu já sabia, um dia a dia muito difícil sem nunca se queixar.
E esse à vontade que então vi neles, essa alegria iria encontrá-los sempre em São Tomé.
Um táxi conduziu-me ao bairro
residencial de construção recente, onde iria residir o tempo necessário antes
de me instalar na casa definitiva.
A mudança para a casa “nova” só
seria feita meses mais tarde. Ficava na Rua Damão, no bairro da Índia, com um jardim maravilhoso à
roda cheio de perfumes e cores vivas de plantas e flores e brilhantes da água
das chuvas. Mas nessa altura nada disso teria qualquer significado para mim.
Acabada de chegar, eu não sabia nada disto. O táxi levava-me, na noite, balançando-se, procurando os pedaços da estrada menos escalavrados e a minha cabeça agitava-se para todos os lados, como um boneco tonto. E o que via encantava-me.
Praias, riachos, pântanos,
árvores variadas e plantas floridas. Mais adiante, na encosta da montanha do
lado contrário ao do mar, a escuridão da mata que subia até ao alto e que era já
a floresta virgem, o “óbó”.
Ao chegarmos à cidade apareceu a baía de Ana Chaves na sua beleza invulgar. Baía de cores maravilhosas que naquela primeira noite foi como uma dádiva aos meus olhos cansados.
Uma ponta de luar iluminava a praia e desenhava arabescos cintilantes nas águas. Nela, ia desembocar o Água Grande, o rio que atravessava a parte central da cidade correndo majestoso até ao areal da baía.
Foram estas as
primeiras imagens da pequena cidade onde ia viver. A baía de Ana Chaves era o lugar
mais belo que me fora concedido ver. Nunca igual, com os seus cambiantes e
matizes conforme o céu, a luz, a água ou o fundo do mar.
Naquela pequena terra, fui encontrar pessoas com quem muito aprendi e lugares que me ensinaram muito sobre as dificuldades da vida. Encontrei sinceridade e a vontade de querer mais e de acreditar nos outros.
Gente que deixou
o meu coração preso na ilha de São Tomé. Num tempo que nem sempre foi fácil.
Durante o tempo que ali vivi,
era junto da baía de Ana Chaves - plácida
e eternamente bela - de águas brancas, cinzentas ou azul-turquesa, que eu me
tranquilizava nos momentos difíceis. A balaustrada branca, os caroceiros de copa enorme plantados à beira da praia, já na Avenida Marginal, eram de uma beleza calma que contrastava com a ideia vermelha do calor, do rosto queimado, do ardor da água do mar na pele.
Nos momentos em que a luz “ia embora” e o “poço secava” como diziam na terra - era quando não havia ar condicionado, nem havia música e o sol caía a pino sobre a cidade, ardendo nas paredes brancas.
E era a baía de Ana Chaves que me fazia esquecer o abandono e a pobreza que ia descobrindo pouco a pouco na terra, adormecia as minhas penas e me refrescava a alma.
(continua)