segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

POESIA...É POESIA!

Um poema 
de Cristovam Pavia

'Ó ondas de mar de Vigo
Ó girassóis de Alcoentre
Ó mancheinha de trigo,
Senhora do Ó sem ventre.'

Tadeu Gaddi, Madonna del Parto (Senhora do Ó)

e dois Haikais

'Noite breve –
Quantos dias
Ainda para viver?'

(Masaoka Shiki)


'No cimo de uma erva
Frente ao céu infinito
Uma formiga.'

(Ozaki Hôsai)

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

A tia Leopoldina e o apaixonado...



A tia Leopoldina era uma mulher independente. E solitária também, apesar da família. Tinha o seu atelier de costura na rua que descia do Largo da Sé para a Rua de Elvas, em Portalegre.
Portalegre (foto de A. Mão de Ferro)
Tirara um curso em Lisboa e era considerada a melhor modista da cidade. A tia Leopoldina era tia da minha mãe.
Recordo-a, empertigada e séria, cuidadosamente arranjada e sempre maquilhada. 
As sobrancelhas, bem desenhadas, num arco fino sobre os olhos pequeninos, quase duas frestas que ela aumentava com um traço de crayon negro, o nariz adunco, a pele muito branca cheia de pó de arroz, que eu imagino fosse Tokalon, como a minha avó usava. 
bâton, com que desenhava os lábios, arredondava-os no meio da boca.
Usava vestidos discretos de bom corte, brincos com uma grande pérola, sempre um colar ou rendas junto ao pescoço para esconder as rugas, anéis com pedras pequeninas nos dedos.
O penteado lembrava o da avó, com os cabelos puxados para cima num rolo sobre a testa, mas o cabelo dela tinha ainda uma cor acastanhada enquanto o da minha avó era todo branco.

O ar severo não impedia, no entanto, uma grande ironia e boa disposição. Quando se ria, os olhos fechavam-se ainda mais e viam-se os dentes pequenos. Às vezes, idealizava-a jovem e cheia  de vida, em festas onde não sei se foi. E via-a brilhar nesses espaços.

(1)
Morava no primeiro andar de uma grande casa, de esquina. Subiam-se as escadas, que formavam um ângulo ligeiramente encurvado e estávamos em casa. 
Ao lado do hall, havia a sala de visitas, ou sala das provas, mobilada com móveis de desenho ousado, anos vinte, pesados cortinados nas janelas, e bibelots variados. 

(2)

Para mim, a personagem da Tia Leopoldina estará sempre ligada à Arte Nova!


Na sala de entrada, sobre uma mesa baixa, recordo uma corça branca, de mármore fino onde eu passava os dedos devagar, a sentir a suavidade da pedra. Ao lado, uma figura de mulher estilizada, em alabastro amarelo, que era, afinal, um candeeiro. 
Ao fundo do corredor, ficava a sala onde trabalhava, rodeada das suas “ajudantas”, como lhes chamava. As aprendizas, sentadas em cadeiras de palha baixas, faziam bainhas, alinhavavam mousselines, cosiam botões e, levantando os olhos risonhos, espreitavam-nos por debaixo dos cabelos. Cochichavam e riam-se, talvez de nós. A tia de vez em quando repreendia-as e mandava-as estar caladas.

Havia um manequim perto da janela de vidraças altas, e uma mesinha com um candeeiro de vidro, que tinha um abat-jour azul de seda. Era um manequim imponente, sem cabeça, cujas formas sólidas e o busto direito me lembravam a figura da própria tia Leopoldina.

Ao centro da sala, estava uma grande mesa oval, com tesouras, metálicas e ponteagudas, fitas métricas amarelas, amostras de veludos, popelines, sedas, botões coloridos, almofadinhas espetadas de alfinetes, riquezas que eu adorava ver de perto e tocar.


Imaginava outros manequins modernos e ligeiros onde poria os meus vestidos!
Nesse lado da sala, havia uma porta envidraçada com vidros pintados em arabescos art nouveau que ligava, através de uma pequena divisão, a sala de trabalho ao quarto de dormir onde não me lembro de termos  entrado.
Nessa pequena divisão, espécie de antecâmara do quarto, havia um nicho com um santo António enfeitado de flores de papel encerado e bonitas velas que acendia à noite. A porta do quarto tinha os mesmos desenhos no vidro. 
Do outro lado do corredor, estava a sala de jantar mobilada com móveis antigos escuros e pesados. Do resto da casa, não me recordo. Talvez fosse apenas isto que eu via.
A tia Leopoldina era uma personagem misteriosa, de poucas falas, e muitas facetas que desconhecíamos e inventávamos. Tinha um apurado sentido do humor e saíam-lhe frases divertidas que revelavam grande sentido de observação e de curiosidade pela vida e pelos outros.
Uma vez, no Carnaval, para se vingar das muitas partidas que lhe fazia a irmã, a tia Zezinha, convidou as três irmãs para irem visitá-la, depois de jantar. Entretanto, preparou uma abóbora grande, furou-lhe uns buracos para os olhos e deu um corte a fazer de boca. Pôs dentro uma vela, equilibrou tudo em cima do tal manequim e foi colocá-lo na curva das escadas. 
A noite estava escura e fria, e a tia Zezinha e a tia Mariquinhas subiram a correr. Quando se lhes deparou o mostrengo - aquela figura monstruosa iluminada- puseram-se aos gritos e a fugir escadas abaixo, para grande regozijo da tia Leopoldina. 
A terceira irmã, a minha avó Branca, contava a história, perdida de riso, porque ela, como ia mais devagar, ficara ao fundo das escadas. E livrara-se do susto que elas tiveram.
O trabalho saía perfeito das mãos da tia, os acabamentos eram minuciosos, a atenção aos mais pequenos pormenores era constante. As rendas, as cores, os leques...
Quando eu ia provar alguma roupa, gostava de a olhar, a espreitar a pele lisa do rosto, os brincos, as rendas que trazia ao pescoço e os seus olhinhos atentos, controlando cada prega da fazenda. 

As mãos finas e rápidas ajustavam a gola, as mangas, descosiam os alinhavos, riscavam com um giz branco e voltavam a pregá-las com alfinetes que ia tirando dos lábios.
Se me mexia, dava-me uma pancada no braço e dizia, severa:
- “Takitao"! Quieta!
A mim parecia-me aquilo japonês, um som esquisito, ficava imóvel. Ela explicava, divertida, e os dentes bicudos e pequeninos mordiam o lábio:
- Foi uma senhora espanhola que me ensinou. Os filhos não estavam quietos e ela dava-lhes uma palmada e ralhava: “Takitao...”
Encolhia os ombros e acrescentava:
- Está quedao, devia ser...
Eu não percebia mas punha-me imóvel. Ela ria-se e cantarolava baixinho. Sorria-me, com os alfinetes a desenhar a boca. Gostava de ir a casa dela. Um dia, a tia Zezinha contou à minha mãe:
- Sabes? Parece que a Leopoldina tem um apaixonado...
Nós deixámos os brinquedos e ficámos logo de cabeça no ar, a ouvir, curiosas. No fim e ao cabo, a solidão da tia Leopoldina, o facto de não ter marido nem filhos, talvez nos impressionasse.
- Ela põe-se detrás dos cortinados, ao cair da noite, quando os candeeiros começam a acender-se, na rua e fica, às escuras, para ele não a ver...
Candeeiros de Portalegre (A. Mão de Ferro)

- Quem é ele, tia Zezinha?, perguntou a minha irmã.
- Não são histórias para meninas!, respondeu logo a tia.
E calou-se, enquanto nos afastávamos, a brincar, fingindo-nos distraídas. Ela continuou, divertida:
- Ele fica encostado à parede do outro lado da rua, a olhar para cima e a fumar, vê tu! Disse-me que tem um chapéu de feltro e uma bonita gabardine. E um bigodinho...

- Como é que ela viu isso tudo?, perguntava a minha mãe.
- Sabes como é a Leopoldina, está sempre a espreitar. Parece, então, que ele fica por ali um bocado e, quando a noite chega, vai-se embora. 
"E depois?'", pensava eu.
Já não ouvia a conversa. Imaginava o apaixonado da tia Leopoldina, com um cão lindo sentado num jardim, à espera dela. Via-os passear num jardim, ele todo bem vestido e de luvas e com um cão aos pés.

A noite desce e lá está ela a afastar um pouco o cortinado branco com os dedos finos. Na escuridão, vejo o pó de arroz a brilhar, na noite, e a mão livre a segurar as pérolas ou os bordados, que formavam uma gargantilha, junto ao pescoço. Sinto-a respirar, ofegante. 

Parecia-me ver a névoa descer sobre a cidade, envolver as lâmpadas amareladas dos candeeiros e sentir as pessoas que regressavam, apressadas, a casa. 
Portalegre na névoa da noite (foto de José Fernando SP)
O apaixonado fumava, levantava os olhos para a janela, e tossia. Não sei por quê mas a ideia que ele fumava fazia-me imaginá-lo a tossir, talvez por saber que o meu pai tossia por causa de fumar. Depois afasta-se, andando devagar, e a olhar para trás. 
Ela suspira quando ele desaparece da vista. Acende a luz do candeeiro de abat-jour azul e vai sentar-se no sofá, com o lencinho na mão a limpar uma gotinha de suor no lábio superior. 
A solidão e o frio voltavam com a noite. Ela fechava as luzes e ia deitar-se. Soltava um suspiro, enquanto tirava as pérolas do pescoço e arrumava o vestido na cadeira ao lado da cama.
E eu, em casa, antes de adormecer, ficava a pensar na tia Leopoldina e no seu apaixonado.

Ilustrações:
(1) Poster Art Nouveau, de Alfred Choubrac
(2) James Tissot, Woman
(3)Retrato de Henri Toulouse-Lautrec, pintado por Giovanni Boldini

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Dexter Gordon Quartet - Biting the Apple (1976) [FULL ALBUM]


Duke Ellington: The Single Petal Of A Rose

Duke Ellington –Edward Kennedy “Duke” Ellington nasceu em Washington, em 29 de Abril  de 1899, e morreu em Nova Iorque, em 24 de Maio 1974. 
“Duke” Ellington, Hurricane Club, 1943


Compositor de jazz e grande pianista ficou eternizado com a alcunha de The Duke, o Duque. Grande importância na música de jazz de 1920 a 1960. Recebe a Medalha Presidencial da Liberdade, em 1969, e com a Légion d’Honneur Francesa, em 1973. 
Por outro lado, foi o primeiro músico de jazz a entrar para a Academia Real de Música de Estocolmo. Foi Doutor ‘honoris causa’ nas mais importantes universidades do mundo!
Ouçam-no!

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Dia de São Valentino e chuva...Os amigos e Chet Baker


Amanheceu chuvoso o Dia dos Namorados... 
San Valentino, dia 14 de Fevereiro é o dia dos corações, dos apaixonados e das prendas. Das promessas, também.
O que terá que ver o santo com isso já me esqueci, mas ouvi falar de San Valentino pela primeira vez em Itália. 



Era a primeira vez que víamos festejar esse dia que, até àqueles anos, para nós não significara nada... E, de repente, eram chocolates, flores e perfumes: tudo se oferecia nesse dia!
 Adaptei-me logo, claro!
Que importa se nem sempre era verdadeiro o pensamento por detrás. Havia sorrisos nas meninas que eu conhecia, havia festas, e era um dia bem bonito. 
Em Roma quase sempre era um dia de sol!

Hoje de manhã, ainda estremunhada, ouvi este diálogo à janela do meu quarto:

- Já viste, Ouricinho? Que dia de San Valentino tão feio!
- Chove tanto... Que tristeza, Ratinho…
- Julguei que ia estar sol… Que aborrecimento.
- É verdade, também pensei que havia sol num dia como este. Dia do coração e dos apaixonados.
E suspirou o Ouricinho. E continuou:
- Sim. Como é que vamos namorar as meninas?
Continuaram a conversar, enquanto viam a chuva escorregar pelos vidros. Não sei se chegaram a alguma solução, mas fiquei a pensar neles. Fingi que não os ouvia e virei-me para o outro lado, a rir.



- San Valentino? Namorar as meninas? Mas que meninas?! Como serão as namoradas deles? Não consegui imaginá-los com as ratinhas ou ouricinhas do Disney! Para mim eles eram tão humanos como eu...


Imaginei as meninas do Renoir. Essas, sim! E acabei por me deixar dormir outra vez, cheia de meninas na cabeça, de passarinhos e do Snoopy! E decidi que ia ouvir Chet Baker assim que me levantasse!