quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Miguel Hernández e "El niño yuntero" - cantado por Joan Serrat






El niño yuntero 
"Carne de yugo, ha nacido 
Más humillado que bello, 
Con el cuello perseguido 
Por el yugo para el cuello.
Nace, como la herramienta 
A los golpes destinado, 
De una tierra descontenta 
Y un insatisfecho arado.
Entre estiércol puro y vivo 
De vacas, trae a la vida 
Un alma color de olivo 
Vieja y ya encallecida.
Empieza a vivir, y empieza 
A morir de punta a punta, 
Levantando la corteza 
De su madre con la yunta.
Empieza a sentir, y siente 
La vida como una guerra, 
Y a dar fatigosamente 
En los huesos de la tierra.
Contar sus años no sabe 
Y ya sabe que el sudor 
Es una corona grave 
De sal para el labrador.
Trabaja y mientras trabaja 
Masculinamente serio, 
Se unge de lluvias y se alhaja 
De carne de cementerio.
A fuerza de golpes, fuerte, 
Y a fuerza de sol, bruñido, 
Con una ambición de muerte 
Despedaza un pan reñido.
Cada nuevo día es 
Más raíz, menos criatura, 
Que escucha bajo sus pies 
La voz de la sepultura.
Y como raíz se hunde 
En la tierra lentamente, 
Para que la tierra inunde 
De paz y panes su frente.
Me duele este niño hambriento 
Como una grandiosa espina, 
Y su vivir ceniciento 
Revuelve mi alma de encina.
Lo veo arar los rastrojos, 
Y devorar un mendrugo, 
Y declarar con los ojos 
Que por qué es carne de yugo.
Me da su arado en el pecho, 
Y su vida en la garganta 
Y sufro viendo el barbecho 
Tan grande bajo su planta.
Quién salvará a ese chiquillo 
Menor que un grano de avena? 
De dónde saldrá el martillo 
Verdugo de esta cadena?
Que salga del corazón 
De los hombres jornaleros, 
Que antes de ser hombres son 
Y han sido niños yunteros."

Compositores: Juan Manuel Serrat Teresa / Miguel Hernandez Gilabert


quarta-feira, 5 de setembro de 2018

A minha colega de carteira no meu primeiro ano do Liceu


Recordar é ter tanta coisa que temos dentro de nós e decidir trazê-las aos outros. Sentimentos novos, aprendizagens, amigos, espantos, medos e felicidades.
As amigas mais antigas que recordo são a Gioconda e a Letícia – que tinha esse nome porque era o da heroína de O príncipe com orelhas de burro, de José Régio, porque Régio – amigo do pai delas, o Dr. João Tavares, foi o seu padrinho. Para nós, ela era a Tiça e mais nada.
Com elas brincámos eu e a minha irmã mais velha, a Tiça era mais nova do que eu e acabou por vir a ser amiga da minha irmã mais nova. 
Eu era a do meio e esse lugar tem muitos problemas! Sentimo-nos mal-amadas, nem grandes nem pequenas com a sensação de que o amor dos pais e dos outros amigos e família se “fixam” nos outros e não em nós. Um dia conto a minha parte…
a rua dos Canastreiros

Morávamos na mesma rua, a casa delas era um pouco mais para cima e era do outro lado da rua. Podíamos até ver-nos da janela e acenar. Com elas brincámos tardes e tardes durante anos. Ora no jardim delas quando estava sol, ou vinham elas para nossa casa que lhes parecia mais “divertida” e aberta. Ao chegarem, ouvia-se lá em baixo o toque do martelo, e uma  de nós descia os dois andares a correr para lhes ir abrir a porta.
Podíamos ficar na garagem que servia de tudo menos de garagem. Onde se descansava nas tórridas tardes de Verão, com cadeiras de praia e uma mesa, o chão de ladrilho sempre salpicado com água. E foi, ali, por exemplo, que me tornei artista de circo. 
Ora pendurada da trave de uma porta sem porta, de cabeça para baixo, ou em cima duma prancha de lavar roupa rolando, equilibrada numa panela sem asas. 
a Casa Amarela

Nesses tempos da Casa Amarela, passeávamos na Corredoura e o grupo alargou-se com os irmão mais novo delas e a nossa irmã.  Aparecia sempre, o Luís Bacharel, bom amigo.
Mais tarde, andávamos já nós todas no liceu, apareceram umas amigas de passagem, que vinham de Lisboa passar o Verão com parentes. 
Carlos Botelho, Lisboa

Lembro a Liginha que chegava bronzeada, cada ano mais alta, com toilettes novas, cabelo curto ou uma fita larga, tipo bandelette, a segurar o cabelo para trás. Um ano até apareceu de luvas brancas de renda.
A outra era a Rosarinho que estudava num Colégio fora de Lisboa com um nome pomposo que associo sei lá porquê ao Eça!

Eu era tímida e talvez me deixasse impressionar  por elas, que pareciam trazer um perfume de fora, de longe. A Lígia tinha um modo afectado de falar com um grande sorriso de dentes brancos e perfeitos. Viam-se bem porque ela usava um bâton um pouco mais vivo – nós andávamos ainda pelos tons rosa, meio disfarçados.
o Plátano, plantado em 1848, pelo Dr. José Maria Grande, cientista

Uma noite vi chegar a Rosarinho ao jardim do Rossio - não muito longe do venerável e lindo Plátano, com uma saia plissada, branca, sapatos de salto alto e uma faixa de seda verde como cinto da saia. 
Moviam-se as duas, com grande à vontade, nos seus vestidos novos, frescos, decotados, de cores vivas. 

Eu era um pouco Maria-rapaz, que adorava andar de sapatilhas e com os vestidos simples de popeline que a minha mãe ajudava a Hermínia a "compor",  confesso que as invejei um pouco, certas noites.
 fotografias desse Cedro (*)

À noite, costumávamos sair, depois do jantar, ao Rossio, passear ou sentarmo-nos debaixo do Cedro da esplanada de Verão, onde serviam boas limonadas com muito limão e uma casca, bem geladas ou os copos lindos de groselha, cor do rubi.

A Gioconda e a Tiça apareciam também e também elas viviam o “fascínio” daquelas duas personagens.

À tarde, preferíamos ir ao Café Central, do meu avô Casaca, onde havia óptimas “mazagrans” (*) que o Carlos – o mais antigo empregado do avô – trazia em grandes bandejas até à esplanada do Café. Durante o Verão, o Café "estendia-se" até ao outro lado da rua Direita no meio da Praça dos Correios, debaixo de outro cedro, seguramente... 
Havia mesinhas redondas e cadeiras de ferro forjado pintadas de branco.
Praça dos Correios

Mas essas eram, como disse acima, as amigas de passagem. Acabado o Verão, tudo voltava à calma da nossa cidade. E nunca mais sabia delas até ao próximo Verão. Até que deixámos de nos ver.
foto na caderneta do Liceu

Mas, antes, eu descobrira as meninas do meu Liceu! Devo dizer que o meu Liceu era um palácio maravilhoso, da família Achaioli (em italiano seria Acciaioli...),com escadarias, mosaicos nas paredes, tectos esculpidos. 
(Por curiosidade conto aos que ainda não sabem - o Manuel conta a história a toda a gente! Nessas escadas, pois, tinha catorze anos e vinha a descer, tranquila, de olhos baixos e diz ele que logo se apaixonou por mim)
Subindo estas escadas e virando à direita, havia uma biblioteca,  forrada de estantes e livros, muito confortável.  

Foi no mesmo ano em que fiz o exame da 4ª classe e dispensei do exame ao liceu. Vejo-me, no final do exame, com a roupa que a mãe nos fizera, iguais, que eu achava super-chique:  saia rodada e um bolero de abas redondas, sem botões, e de mangas curtas. Debaixo, uma blusa de seda cor de marfim, com um bordado na gola. 
desenho a lápis feito numa vigilância de exames

Também não esqueci que, ao molhar a caneta no tinteiro, pus logo um borrão de tinta azul num dos lados do bolero. Só recordo a tristeza que tive e a Florinda a dizer, para me animar, que saía tudo com leite quente.
 Berthe Morisot, Menina do campo com tulipas

As meninas do meu liceu não eram como essas meninas de Lisboa. Eram meninas simples e vinham dos arredores da cidade. Do alto da Serra de São Mamede, do Reguengo, do Gavião, das carreiras ou dos Fortios, das Carreiras ou mesmo de Gáfete.
Carreiras, por João Salvador

Eram meninas do campo, com as carinhas vermelhas do sol ou do frio e muitas vezes no Inverno com as mãos gretadas ou com “frieiras”. As roupinhas delas cheiravam bem, a ervas do campo, a lavado, tinham o perfume da roupa corada ao sol. Elas mesmas me pareciam meninas coradinhas ao sol.
Tive boas amigas no liceu e recordo tudo com saudade. Algumas sei que desapareceram.
Berthe Morisot, Meninas à janela

A Helena foi a minha primeira colega de carteira. Recordo a simplicidade dela, o olhar bom como de certas figuras dos filmes do Walt DisneyA carteira ficava perto da janela e via-se o terraço interior. Às vezes perdia-me a olhar para fora.
Recordo a Helena com um vestido preto, creio que o pai tinha morrido há pouco. Tinha os cabelos castanhos lisos, muito bem penteados, uma pele clara e uns olhos que me pareciam tristes e se animavam quando me contava histórias. 
Ela adorava contar-me histórias enquanto esperávamos que os professores entrassem na aula. E eu adorava ouvi-las...
Eram histórias de fantasmas e de mortos, coisas que eu ouvia com um ar incrédulo mas encantado, tal como as ouvira, noutros tempos,  contadas pela Hermínia, a nossa costureira, que tinha um dom de contar extraordinário. À braseira, na cozinha, com a Florinda e a Rosalina, essas histórias de lobisomens e de cães solitários uivando à lua, metiam medo. 
"cães solitários uivando à lua"

Tal como a Hermínia, a Helena abria muito os olhos para me assustar e criar o suspense. 

Essa companheira de carteira chamava-se Maria Helena de Deus Almeida. Nunca me esqueci do nome completo dela porque foi uma boa amiga e senti saudades dela.

Ensinava-me a esfregar o dedos na costa da mão, com força, e dizia com um ar misterioso:
- Cheira a minha mão! Sabes a que cheira?
Eu cheirava, curiosa como sempre. Era um cheiro estranho e desconhecido.
- O que é? perguntava interessada.
- É o cheiro dos mortos, explicava com voz soturna.
Eu ficava na dúvida. Seria verdade que os mortos cheiravam assim? Nunca tinha visto um morto.
- É como a carne morta, explicava, com o ar mais tranquilo do mundo.
- è este cheiro mesmo…
- De verdade?

Hoje, ao lembrar-me dela, tento repetir os mesmos gestos que fazíamos, reencontrar o cheiro dos mortos. Esfrego os dedos na costa da mão. Não me cheirou a morto nem a nada. Talvez me tenha cheirado a creme ou a água de rosas – coisas que não usávamos nessa altura. Sorri. E foi o cheiro do creme que me fez pensar nela.
Como saber o que lhe aconteceu? Saberei alguma vez o que foi a vida da minha companheira de carteira nesse primeiro ano de Liceu? Nunca mais nos vimos. Pensava muitas vezes por onde andaria? o que teria estudado?
Via-a com os traços desta figura do pintor holandês Jacob Maris, “Menina a coser”.
O mesmo sorriso suave, o jeito da cabeça inclinada, neste perfil tão bonito e puro. E as casas brancas ao longe…
E, depois, pensava: e as outras? Onde andam as outras “meninas” que perdi de vista? O que fizeram? Foram felizes? Onde vai isso tudo, meu Deus…
Dito isto, confesso que tenho uma surpresa para lhes contar!
Um final feliz, diriam nos romances românticos. E ponho-me a pensar: o mundo que tanto corre e gira e roda; o mundo que é tão vasto quanto efémero, a vida que julgamos eterna, ara sempre e dura um suspiro ou o tempo de uma folha de Outono cair - como lembram os Salmos.

Afinal, não foi esse mundo que gira e corre que nos fez reencontrar. Foi sim, o mundo substituto do real, o mundo virtual – esse mesmo que nos vai prendendo com os seus tentáculos enganadores e nos “encanta” enquanto nos pode”esmagar”, pois foi nesse mundo do Facebook que há dias recebi um pedido de amizade que me fez pensar na minha cidade. 
foto do amigo desaparecido, José Fernando

O nome era igual ao dela. Aceitei. Na mensagem que me enviou, escreveu mais ou menos isto : ”Dra. Maria João Falcão, eu fui a sua colega de carteira no Liceu de Portalegre. Queria dizer que gosto do que escreve”, etc etc”.

Eu desatei a rir sozinha! Depis contei ao Manuel. Ele sabia quantas vezes lhe falara dela. Coisa extraordinária na verdade, pois, meses antes, ao escrever uns Apontamentos: “O meu Pai e os figos de Setembro”.
Demorei-me, longamente, nesse tempo de Liceu: as idas a comprar bichinhos da seda à rua do Sapateiro, as aulas de Francês com a D. Lucinda e o nosso 'esforço' em pronunciar o ‘ü’ francês sem dizer ‘iú’…
Comovi-me quando lhe respondi em duas ou três linhas, apressadas, a dizer que pensara tanto nela sempre - que era impossível que não nos encontrássemos. Lá fora, a nossa árvore, frente à casa no nosso 4º andar alto, um belo salgueiro, pareceu-me estar de acordo. Lembra-me os salgueiros da quinta dos meus pais, hoje deitados abaixo.
Stefan Zweig, o conto Xadrez

Claro que a proibi de me tratar por 'doutora' nem nada dessas coisas cerimoniosas. Que me tratasse por tu como nos velhos tempos, em que estávamos as duas sentadas na mesma carteira a conversar da vida e da morte. E do xadrez que é o destino que jogamos sem saber jogar...
 a Maria Helena

Para mim ela é a minha primeira colega de carteira, a minha companheira de entrada no mundo do Liceu!
 Van Gogh, Outono

Vamos encontrar-nos, lá para o final do mês de Setembro Ainda não combinámos onde nem quando, mas será já no Outono!
Tenho já uma ideia do lugar! 
Depois, depois…digo! E prometo pôr as fotografias no Facebook!

(*) fotos antigas do Cedro da esplanada de Verão, que pedi emprestadas ao blog Largo dos Correios.
(**) Palácio Achaioli, no blogue Diário de bordo

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Falar de livros e de escritores... E da beleza da vida!

"Daffodils", em Guildford
Falar de livros é uma das minhas obsessões. Gosto da personagem de "Alice no país das maravilhas" pela sua curiosidade e observação e adorei a estátua dela que vi num parque junto ao rio Cam, em Guildford. 
Personagens, livros, escritores: talvez porque li desde muito cedo. Criança, instalava-me, num cantinho ou deitada no tapete, a ler; e, mais tarde, fui uma adolescente, que lia em qualquer lugar, mesmo à mesa da sala, ao serão, no meio das conversas, ou debaixo de um pinheiro, isolando-me com grande facilidade no meio da gente. 

E - como vejo na fotografia - já devia ter a mania de escrever...
O meu pai era um pouco assim como eu. Introvertido, calado, lia em qualquer sítio, com barulho e gente a conversar à sua roda, nos cafés, no meio das festas de família -  ele, sentado na cadeira de espaldar alto - porque nunca sonhou sentar-se num sofá - concentrava-se na leitura.
Por vezes, ajudado por um lápis ou uma caneta, ia sublinhando, tirando notas que escrevia nuns papelinhos que trazia guardados no bolso, sempre a sonhar em escrever um dia o "seu" livro.

Não escreveu o livro "completo" que desejaria mas publicou muitas das suas  histórias, cheias de recordações, de humanidade e de vida, no semanário da cidade, "A Rabeca". (1)
Há dias, referi uma frase de Amos Oz (3): 
"O mundo escrito anda sempre à volta da mão que o escreve, onde quer que aconteça o que ele escrever: onde tu estiveres, é o centro do mundo.”

“O está à nossa volta” era disso que o meu pai gostaria de falar. Histórias dos dias banais das pessoas vulgares - que, no entanto, ‘preenchem’ a vida com tantas coisas importantes para elas. As memórias guardadas das vidas simples, a 'feridas' guardadas na lembrança, as coisas ligadas às nossas raízes profundas e íntimas.
Interrogava-se sobre muitas a maneira de escrever um romance? Como se faz?, perguntava.
Perguntava-o com a humildade das pessoas honestas. Com certeza sabia que nada do que é humano é banal, nem as pessoas são vulgares porque são humanas, logo diferentes mas semelhantes - e originais, quando se entregam à obra de arte seriamente. 

Tinha como sua própria, sempre presente, a máxima de Terêncio: “Sou homem e nada do que é humano me é alheio” (“Homo sum; humani nihil a me alienum puto.”)

Fazia parte daquela parte da humanidade que sente o desejo - ou o dever - de expor os "seu caso", ou o "caso" dos outros, por mais insignificante que esse “caso” pareça.
O escritor (ou o artista plástico) não tem obrigação de encontrar assuntos sublimes, o escritor tem de ter coisas para dizer e saber contá-las de modo pessoal, original, seu. Tudo é matéria de um livro!

Ele poderia perguntar – com Virginia Woolf: "Qual a substância do romance"? Ouviria, atento, a opinião dela e pensaria : o romance não tem substância...
Virginia Woolf e a pintora Vanessa Bell, sua irmã
"A 'substância própria do romance' não existe. Tudo é a substância própria do romance, todo o sentimento, todo o pensamento; toda a qualidade do intelecto ou da alma nos serve; nenhuma percepção se deve afastar." (2)

Aharon Appelfeld num livro muito belo- "L'Amour Soudain" (3) escreve sobre sentimentos profundos, ou pessoas, aparentemente, 'banais' e fala da necessidade de escrever em termos simples, essenciais, sem enfeites inúteis, sem explicações demasiadas para se chegar aos “outros”. Escrever é “fazer sair as coisas do esquecimento” e isso bastava. (p.173)
O ideal seria escrever com a simplicidade da linguagem da Bíblia: "factos e não descrições que escondam o essencial" (p.108) – sem enfeites, factuais, sem adjectivos em demasia, frases curtas e compreensíveis. 

A escrita tem de ser clara, ordenada sem nada que seja supérfluo. Deve ir directa ao facto, sem contorções nem metáforas.” (p.204)

Aharon Appelfeld era, na realidade, uma pessoa de fácil contacto. Tivemos ocasião de o saber nas várias vezes (demasiado poucas, afinal) em que o encontrámos em Jerusalém.
Reuven Rubin, Jerusalem

Encontrávamo-lo na sua Cafetaria preferida "Tmol ve Shilshom" (Ontem e anteontem)  que é, no fim e ao cabo, o título do grande romance de Y.S. Agnon. 
Era um prazer ouvi-lo, ver o interesse sincero e a curiosidade com que nos olhava e ouvia. Porque ouvia - talvez mais do que falava. E falava a sério sem nunca se pôr ele próprio em evidência...
Appelfeld e Manuel Poppe, Jerusalém, 2001

O protagonista do romance, Ernest Blumefeld é um escritor que, sabendo-se gravemente doente, quer atingir depressa o “nó” do que quer escrever, rasgando, cortando linhas e inteiras páginas inúteis, para chegar “à raiz da palavra e do acontecimento que recorda”. Para voltar atrás e perdoar e ser perdoado. 
"Encontrar a linguagem simples e essencial da Bíblia" eis o que procurava Ernest.
Na sua ingenuidade e credulidade de pessoa pouco instruída, Irena, a empregada, vai ajudá-lo a reencontrar um mundo apagado na memória, o mundo perdido dos avós, as suas tradições judaicas, das montanhas mágicas dos Cárpatos.
Para ela o compreender, Ernest vai encontrar um 'modo' e escrever da maneira simples e directa que procurava há tantos anos. Por sua vez, Irena abre-se ao entendimento e é ela quem lembra recordações do seu passado, escondidas, porque as julgava sem interesse para Ernest, mas que lhe vão servir para ele ir ao fundo, ao íntimo, da ferida que era o passado, o seu íntimo.
 No romance as duas personagens aproximam-se, gradualmente, abrindo a alma, na vontade de se ajudarem e até ao fim vão-se aproximando mais e mais. Enquanto a morte ronda a casa e Irena todas as noites fecha as janelas para a Morte não entrar.
Talvez por isso o amor aconteça, repentino, tardio e forte. Para sempre, até a morte vir e levar um dos dois.
“Escrever é escavar numa ferida e mostrar uma parte secreta da alma” escreve Aharon Appelfeld, anos mais tarde (2008), noutro livro: “E a fúria não se calou”.
Tudo varia neste mundo, em todos os seus aspectos, inclusive na Arte. Nada pára, tudo se movimenta, progride - ou regride – e a riqueza do mundo que nos envolve é enorme, é infinita, quer no bem como no mal. E tudo é tão rápido e efémero! 
A romancista Virginia Woolf escreveu: "A 'substância própria do romance' não existe. É tudo: todo o sentimento, todo o pensamento, toda a qualidade do intelecto ou da alma nos serve, nenhuma percepção se deve afastar." (L’ Art du Roman', Introdução, p. 20)
"(…) a capacidade do espírito humano é ilimitada, a vida é infinitamente bela e repugnante, os nossos semelhantes são adoráveis e nojentos, a ciência e a religião têm destruído a fé (…) É com tudo isso, é nessa atmosfera de dúvida e de conflito que os romancistas hoje devem criar.” 
O que significa que quem escreve, deve tirar de dentro de si, da sua experiência o que o “tocou”, o que viveu intensamente, o que “viu” e isso deve comunicar ao outro ser humano, para evitar a solidão e a angústia do ser humano…
“Escrever é escavar numa ferida e mostrar a parte secreta da alma…” – dizia Appelfeld…
Aharon Appelfeld, na Cafetaria Tmol Shilshom (com a Gui)

Evocar o que foi a vida passada, ser a testemunha de um mundo “calado”, fechado dentro de nós, de sonhos, de sofrimento, de alegria, de desespero e de esperança.

Foi o que meu pai quis fazer: tirar coisas e pessoas do esquecimento, ser a testemunha das vidas delas, da pobreza, das desilusões. 
Os episódios de vida, as recordações autobiográficas, de uma infância dura, e da luta para avançar em direcção ao saber e à plenitude - ia buscá-los ao fundo da memória. Sem esquecer as "raízes" quando, já médico, ia de burro pelas serras ver os doentes, tantas vezes sem receber paga a não ser o  olhar com que lhe agradeciam. 
Anos depois da sua morte, um grupo de amigos teve a ideia de publicar em livro esses escritos - edição apoiada pela Câmara Municipal de Portalegre. 
Assim, quinze anos depois da sua morte, saiu um volume com textos de amigos ou pessoas que o conheceram, juntamente com as histórias publicadas n' "A Rabeca", que se intitulou: "Feliciano Falcão Memória Viva". (5)

A janela aberta era a do laboratório do meu pai

Todos os escritos do meu pai (artigos sobre literatura, pintura e música que usara em conferências e palestras, muitas delas no grupo "Graal" de Portalegre e também os seus escritos de ficção foram publicados, depois da sua morte, no livro "Feliciano Falcão Memória Viva". 

Evocar a vida passada, ser testemunha de um mundo sem voz, “calado”, dentro de nós, e "abri-lo" aos outros.
Foi isso que o meu pai quis fazer: tirar do esquecimento, testemunhar. Deitar para fora de nós tudo o que calámos –ou escondemos, ou esquecemos- até ao momento em que sentimos a necessidade de escrever.

Penso que quer Appelfeld quer o meu pai queriam falar das mesmas preocupações, revelar o que fora a vida – para que o passado não se perdesse. Para o "tirar do esquecimento".
***
Abro o livro do meu pai e leio:

"Pus este monólogo a falar de mim. E dos outros. Das minhas vivências, Monólogo sobre a existência. Sobre vida escura. Sem brancura. vejo aquela tardinha de Outono, tão longe, quando fizemos a abalada para a cidade. Os ouriços arregoados dos castanheiros a mostrarem as castanhas luzidias. 
Com o burro morto na véspera. Enterrado no baldio. Com os corvos no alto. (...) Eu no fim da primeira infância, alvoroçado com esta viagem mágica. Descido da Serra a enfrentar o destino incerto. Alvoroçado todo nos olhos e no corpo."

Esta é também uma pequena homenagem ao meu pai –o inesquecível amigo de toda a vida.
***
(1) Virginia Woolf, L’ Art du Roman, Aux Editions du Seuil, França, 1963 (in A porta estreita da Arte, artigo de 1922, op. cit., p. 67)
(2)  "L'Amour Soudain", Éditions de l’ Olivier, Points, Paris 2004 
(3) “The Common Reader” (o título indica a intenção da escritora de escrever para o “leitor comum”, "aquele que lê para seu prazer pessoal”) é uma colecção de Ensaios, publicados em 2 séries: a primeira, em 1925, e a segunda, em 1932. 
4) “Et la fureur ne s’est pas encore tue”, Éditions de l’ Olivier, Points, Paris 2009 
(5) "Memória Viva de Feliciano Falcão", edições Colibri, 2003

NOTA: Num comentário a um post no meu blogue, O Falcão de Jade,  (em 25 de Outubro de 2009) em que falei desses textos do meu pai, Manuel Poppe lamenta que  ele não tenha podido continuar a publicar: 
"Nesse livro póstumo -diz ele- escrevi um texto - que se intitulava "Lancelote e o Nevoeiro"- e dizia quanto lamentava que "os camaradas" tenham subestimado o que escrevia e o tenham levado a abandonar essas memórias vivas. Calaram-no' e impediram a publicação, na saudosa Rabeca dos magníficos textos autobiográficos a que chamou "Evocação das Raízes" - acusados de textos "egotistas" e demasiado "pequeno-burgueses"!" (F.Falcão estava filiado no PCP, desde Abril de 1975).