quarta-feira, 16 de março de 2022

“A Lenda de Madala Grey” de Clemence Dane

Clemence Dane - pseudónimo  de Winifred Ashton (o seu verdadeiro nome) - nasceu em Inglaterra, em Kent, no dia 21 de Fevereiro de 1888 e foi uma romancista, ensaísta e dramaturga inglesa.

Clemence Dane (1)começou por escrever guiões para filmes entre os primeiros foi o de “Ana Karenina” (1935) do conhecido realizador britânico Clarence Brown, com Greta Garbo.

Foi uma aluna prendada, interessada por todas as coisas, observadora. Estudou em várias escolas particulares e teve uma educação cuidada. Aos 16 anos foi contratada para ensinar Francês num colégio de Genève.

No regresso a casa foi estudar arte, três anos em Londres e um ano em Dresden, na Alemanha.

Consideravam-na muito boa como pintora de retratos – mas Clemence abandonou a carreira artística e decidiu aceitar um lugar de professora na Irlanda. A seguir interessou-se pelo teatro e foi actriz vários anos até a I Guerra rebentar.

Dresden
 

Dedicou-se, então, aplicadamente ao trabalho como enfermeira ao ponto de ter um esgotamento. 

Durante a convalescença escreveu o primeiro romance “Regiment of Women”. O livro teve um sucesso imediato. É então que escolhe o pseudónimo de Clemence Dane – em honra da igreja londrina St. Clemence Dane - que em 1940 foi destruída num bombardeamento alemão.


A novela seguinte, “Legend” (2) foi igualmente muito apreciada e alguns críticos sugeriram que daria uma óptima peça de teatro.

Clemence decide seguir essa sugestão. A peça vai intitular-se “Bill of Divorcement” (1921) e foi muito apreciada quer na Broadway quer em Londres. Mais tarde George Cukor realizou um filme com dois dos mais Famosos actores do tempo, Katherine Hepburn e John Barrymore. 
Gostaria de lembrar hoje esse romance "Legend" que em português se chama “A Lenda de Madala Grey”, numa bela tradução do escritor brasileiro Erico Veríssimo (3).

O tema do livro gira sobre a personagem de Madala Grey, uma mulher misteriosa, jovem e bela, inteligente e sensível. Novíssima, escreve um livro considerado genial. 

Madala Grey, desenho de Bernardo Marques

Espanto do público, dos críticos: Como era possível, com a sua juventude e pureza, escrever um romance como “As paredes do Eden”, sobre uma realidade tão sórdida, interrogavam-se. O livro esteve proibido um tempo e à volta de Madala cria-se uma espécie de lenda e mistério. Quem era afinal Madala Grey? De onde viera?

Madala Grey publica mais dois ou três livros, completamente diferentes, campestres, ambiente bucólico, solares mesmo: “Campos Arados” e “Lugar de Repouso”.

O romance começa com uma referência à publicação de “Vida de Madala Grey”, por Anita Serle, crítica literária famosa. A narradora é Jenny - que ainda era prima de Anita Serle  e em cuja casa está a viver de momento.

Ao ler os elogios empolgados dos jornais à biografia de Madala Grey, Jenny sente-se chocada porque repara que é sobretudo a figura da biógrafa Anita Serle que ressalta e que, nos recortes, aparecem  várias fotografias de Anita e nenhuma da escritora. 

Um dos recortes de um jornal dizia mesmo: “Miss Serle conta-nos que a brilhante novelista tinha tão grande aversão a deixar-se fotografar que não existe alguma reprodução das suas feições”.

No entanto existia um belo retrato a óleo, pintado por um amigo de Madala, "A canção da Primavera", um rosto sorridente de uma jovem mulher com um ramo de margaridas nos braços. 

E Jenny aponta: “Da sua moldura pesada e solitária (pois não temos mais quadros no nosso retiro) aquela “mulher notavelmente bela” com um lenço estampado e uma braçada de primaveras, olha neste momento para mim, para os recortes dos jornais, para o ´'Times' e para o detestável livro de Anita. E na verdade parecia dizer-me: ’Isso tem alguma importância? Que importa tudo isso’? – e ao dizê-lo como que sorri.” (pg.9)

Continua a narradora: “E rio, também, porque Anita sabe muito bem que o retrato existe. (...) não duvido que o livro esteja bem escrito; não que o venha a ler, não há necessidade; sei exactamente o que ela deve ter escrito. Sei quão convincente esse livro deve ser; mas não é verdadeiro; não é Madala Grey.”

Anita iria protestar se ela lho dissesse e Jenny parecia ouvi-la: “Minha querida Jenny, que sabes a esse respeito? Nem a conheceste. Apenas ouviste quando nós, seus amigos íntimos conversámos a respeito dela. Durante quanto tempo? Uma hora? Duas?”

E Jenny acrescenta: “Mas eu poderia responder. Lembro-me tão bem daquela noite. Creio que não esqueci uma só palavra ou movimento, e, se pudesse escrever, aquelas duas horas contariam a história de Madala Grey como o livro de Anita jamais contará.” (op.cit. pg.10) 

A “história” vive-se toda numa noite - durante a reunião habitual de escritores e intelectuais em casa de Anita Serle. Num ambiente fechado, numa sala com duas janelas, de facto um cenário teatral.

De tudo falaram: do passado e do presente, das relações de uns e de outros. Cada um recorda a escritora e o que se dissera dela, as qualidades do seu romance "As paredes do Eden", da sua proibição.

A Menina Baxter dissera: “Um grande livro, não obstante, foi interditado.” E logo Anita insistira: “Sim, mas toda a gente o leu. É fácil obtê-lo em qualquer parte.”

Toda essa noite até de madrugada tinham falado de Madala Grey e Jenny absorvera tudo, "vira" a figura, "sentira-a" dentro de si mesma, identificara-se com ela e sabia que a sua “visão” de Madala estava mais correcta do que a de Anita.

 E toda a noite aquelas pessoas tinham falado do génio, mostrando admiração sincera uns, inveja outros, e havia quem planeava já (Anita, a crítica) a "Biografia" que iria escrever e que “revelaria a verdadeira Madala Grey.”

Oh, sim, aquele enredo!...Pense! a donzela da província, o namorado infiel...as luzes de Londres...a mulher infeliz...que mais deseja?”, dizia a Menina Howes.

Muita conversa sim, Madala, porém, continuava um mistério para todos. Desaparecera do grupo muito tempo antes. Casara, estava grávida e esperava-se que o parto fosse naquela noite. Sabiam todos também que ela estava em risco de vida. E aguardavam.

Sobre a escritora, continuou a escrever sempre, alternando peças e romances, ensaios. Escreveu também um estudo "pessoal e profissional" sobre o “métier” actor/escritor. A sua obra consta de dezenas de livro de vários géneros. Clemence Dane morreu em Londres em 28 de Março de 1965.

*** 

(1(1)  Legend”, 1919: a tradução em português tem o título de “A lenda de Madala Grey”. Publicado na Colecção Miniatura, Livros do Brasil, Lisboa, s/d.

(2) Bill of Divorcement será mais tarde adaptado para o cinema por George Cukor e o filme sai em 1932. Em português, o título é “Vítimas do Divórcio”.
(3) Erico Veríssimo, o grande escritor brasileiro autor de “Olhai os lírios do campo”, “Clarissa” e tantas outras maravilhas. Nasceu em 17 de Dezembro de 1905 no Rio Grande do Sul e morreu em 28 de Novembro de 1975 em Porto Alegre.

https://en.wikipedia.org/wiki/Clemence_Dane

sábado, 19 de fevereiro de 2022

O escritor Fred Uhlman e "L'amico ritrovato"

“L’amico ritrovato” de Fred Uhlman (1) foi-me oferecido em Roma por uma grande amiga, Anna Marra que conheço desde os anos em que a Gui esteve em Moscovo e ela também estava.

Reencontrámo-nos muitas vezes já em Portugal e em Roma. Lembro que muitas vezes em Roma ficávamos a ouvir música à noite. E foi assim que ouvi uma canção de Iva Zanicchi, “Zingara”. E conheci também as canções  de Ivano Fossati.

Desta vez falámos da história do "amigo reencontrado" de Fred Uhlman. Lera-o muitos anos antes numa edição francesa mas perdera-lhe o rasto. Na amanhã seguinte, a Anna foi comprar-mo à Feltrinelli que não é muito longe da casa dela. Trouxe-o comigo e fiquei à espera do momento para o ler calmamente.

 

Passa-se em 1932 em Estugarda. Dois adolescentes - Hans Schwartz, judeu, e Konradin von Hohenfels descendente da nobreza alemã - encontram-se no liceu e entre os dois surge uma empatia súbita, cria-se uma amizade profunda, especial e intensa.

Fred Uhlman (2) escreve o livro em 1971 com 70 anos de idade. O título original é "Reunion".

Nunca antes tivera coragem para voltar ao passado. Depois da subida de Hitler ao poder, o escritor fora para França; dali para Londres onde se fixa e casa. Mais tarde pede a nacionalidade britânica.Além de escritor foi também considerado um grande pintor.


Nunca mais quisera ouvir falar nem saber da Alemanha. Para ele lembrar o passado era “como pôr sal nas feridas que tinha.

A edição italiana tem uma bela capa de Egon Schiele  “L’amico ritrovato” (1) é impressionante. Doloroso. Obsessivo. Chocante. Belo, como uma sinfonia trágica.

Escreve Arthur Koestler, que o considera uma obra-prima menor, no Prefácio (1976), explica: “(...) porque é uma obra pequenina que apesar de tratar da mais atroz tragédia da história humana é escrita numa forma menor, cheia de nostalgia” (op.cit.pg.9) o que confere à narração “uma qualidade musical ao mesmo tempo lírica e obsessiva.”

Até à chegada de Konradin ao liceu, Hans não tivera um amigo - era um adolescente reservado que apreciava a solidão.

O livro começa com uma frase de Hans: “Entrou na minha vida em Fevereiro de 1932 e nunca mais saiu dela.” Depois de se conhecerem melhor Hans escreve: “tudo o que sabia nessa altura era que ele ia ser meu amigo”.

Uma história de amizade pura, uma devoção inocente entre dois jovens a crescerem com passeios pela montanha, “nas suaves, serenas e azuladas colinas da Swabia”.

Percebe que Konradin é alguém que sente e pensa como ele, também um solitário, têm as mesmas preferências - mas gostam de discutir sobre poesia e sobre o passado e o futuro do país.

Muitos judeus alemães (e mesmo alemães) nessa data tinham a ingenuidade de pensar que nada ia acontecer de mal na Alemanha. O pai de Hans, médico judeu, pertencia a uma classe culta e não se preocupava com o nazismo. Quando um dia um amigo lhe perguntou se não receava Hitler respondeu: “É como uma doença passageira, parecida com o sarampo, que passará logo que a situação económica comece a melhorar”. (o.cit.pg.46)

O sinistro crescimento de forças nazis acaba porém, com a amizade dos dois rapazes e com sua a adolescência. Um dia, muitos anos mais tarde, Hans acaba por saber notícias do "amigo perdido".E o que sabe reconcilia-o com Konradin.

A desintegração desta amizade anuncia o que se vai passar na Europa, anos mais tarde.

 

Em 1960, saem as suas memórias, intituladas The Making of an Englisman." Em1971, sai "Reunion" -L'amico ritrovato. 

O escritor vai escrever ainda a "continuação" da história com o livro, publicado já póstumo em 1985, "A Carta de Conrad".

 (1) “L’amico ritrovato”, Ed. Universale Economica, Feltrinelli, Cover Design Ufficio Grafico Feltrinelli, capa de Egon Schiele, “Deux garçons”, 1910

(2) Fred Uhlman nasceu a 19 de Janeiro de 1901 em Estugarda e morreu a 11 de Abril de 1985 em Londres.

Depois da chegada de Hitler ao poder foge para França, vive com o dinheiro que ganha com as suas pinturas vendidas a particulares. Ali frequenta os meios artísticos e pratica a pintura. Em 1936 está em Espanha mas chega a Guerra Civil Espanhola e volta a Paris. Dali segue para Inglaterra.  

No entanto fica ligado aos refugiados espanhóis fugidos da Guerra Civil. E cria uma associação de protecção em Londres

Em Londres as suas exposições de pintura têm sucesso, em galerias famosas e também no Leighton House Museum de Londres, em Cambridge e por fim no Victoria & Albert Museum, em Londres.

(3) Arthur Koestler escritor nascido em Budapeste, em Setembro de 1905, de origem judaica, criado na Áustria. Em 1931 adere ao Partido Comunista Alemão, saindo em 1938. Em 1940 vai viver para Inglaterra cuja nacionalidade tem. Morre em 1983, suicida.

Escreve um livro terrível “Darkness at Noon” sobre a sua desilusão do Comunismo, depois da chegada de Staline.

https://en.wikipedia.org/wiki/Fred_Uhlman

    https://fr.wikipedia.org/wiki/La_Lettre_de_Conrad