quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Livros! Quem foi Jan Karski? Ler "Jan Karski, de Yannick Haenel

Confesso que até há uns meses, não sabia quem era esta pessoa, apesar de ter ouvido falar dela. Depois ofereceram-me o livro de Yannick Haenel  intitulado "Jan Karski" -e publicado pela Teorema, em 2010.



Jan Karski


Yannick Haenel


O assunto choca, como outras leituras que falaram dos campos de extermínio. 

Leio ao mesmo tempo o livro de Robert Anthelme - anti-fascista francês que foi preso e deportado pelos nazis. Esteve num campo de trabalho, e em Buchenwald. 



O seu livro, escrito em 1947, “l’Espèce humaine”, conta o absurdo de uma realidade em que o humano desapareceu. 
Buchenwald, 1945


Manter a humanidade, era para os homens e mulheres fechados nos campos de trabalho nazis, ou, à espera da morte, nos campos de concentração. A luta diária era “manter o humano” dentro de si. Agir como se isso fosse possível. Nas pequenas teimosias, desobediências, na coragem perante a dor, o frio, a exposição horas sem fim ao sol e ao gelo.
Dachau, os fornos

No entanto, o livro de Yannick é um livro especial pois fala do homem que tentou parar o Holocausto. Que acreditou que isso era possível: o homem é Jan Karski, nascido em 24 Junho de 1914, em Lodz, e que morreu em 13 de Julho de 2000.


Jan Karski foi a testemunha e o mensageiro. Escolhido pelos judeus do Gueto de Varsóvia, para ir falar do indizível aos Aliados; ao governo polaco no exílio (primeiro em França, depois em Inglaterra), aos judeus espalhados pelo mundo", escreve o autor do livro, Yannick Haenel.

O livro de Haenel  começa com a sua interpretação das imagens do filme, de Claude Lanzmann, Shoah, onde Jan Karski fora uma testemunha, de novo.



“Perto do final do filme, o realizador filma uma “testemunha” ainda viva. Um homem de certa idade, fino, inteligente, culto que começa a falar : “Agora... agora vou voltar atrás no tempo, 35 anos atrás.”

E, de repente, cala-se e não consegue articular uma palavra. Claude Lanzaman espera o tempo necessário, sem o interromper.



Agitando as mãos, toda a  calma inicial com que dissera “Estou pronto” se desvanece.  “Não, não vou voltar atrás, não ...não”. Soluça, esconde a cara, levanta-se e sai do enquadramento da câmara”.

Acaba por recordar, e diz: 

Em meados de 1942, decidi retomar a minha missão de agente entre a Resistência polaca e o Governo exilado em Londres.” (p.10)

A Polónia fora invadida, Karski era um oficial polaco e quando foi obrigado a retirar, decidiu trabalhar para a Resistência polaca, era  encarregado das missões difíceis. Varsóvia tinha o seu ghetto onde milhares de judeus viviam cercados, sem contacto com a vida da cidade, morrendo e definhando à fome.

Um dia, dois polacos judeus do gueto (ghetto) vieram procurá-lo. Conheciam a sua actividade e pensaram que ele podia revelar a situação do “Ghetto de Varsóvia” : coisa surrealista. Inimaginável.
A construção do Muro, no Ghetto, 1940

Cercados, no centro da cidade, porém, havia uma casa em ruínas  que, simultaneamente, dava para o gueto e para o exterior. Por aí, os judeus entravam e saíam, esperando nunca ser apanhados, pois sabiam a sorte que os esperava. Alguma comida entrava no gueto e assim ainda comunicavam com a parte livre de Varsóvia.


Os dois judeus polacos levam-no duas vezes a ver o gueto. 


Stroop Report


Ghetto de Varsóvia, 1943 (*)


O que lhe pedem que veja? Uma coisa em que ninguém pensara: os judeus eram um caso especial na invasão e domínio alemão. 

Os judeus eram um problema à parte porque os alemães tinham decidido para eles a “solução final”. Os judeus iam ser exterminados.

O que queriam que ele contasse? O indizível!

E refiro o que diz Robert Antelme sobre a sua experiência, num campo e a vontade de contar, no regresso,  aos outros como fora: 

"Como resignarmo-nos a não tentar explicar como tínhamos chegado ali ?(...) No entanto era impossível. Mal começávamos a contar  logo sufocávamos. Até a nós mesmos aquilo que tínhamos vivido começava por nos parecer inimaginável.(...) tratava-s de uma daquelas realidades que ultrapassam a imaginação." (p.9)

A mesma sensação de inominável, o mesmo sufocar na impossibilidade de encontrar as palavras. Emudeciam... 

E Yannick escreve:

O que sabia sem saber, o que nunca tinha visto até um dia  ser convidado a ver: que os judeus estão a ser exterminados pela Europa”, escreve Yannick.

Que mundo era aquele?

O gueto não era um mundo”, responde ele.

O gueto não era uma realidade humana. Viu cadáveres nus, nas ruas onde se arrastavam pessoas meio-mortas, mulheres com os filhos pendurados dos peitos sem leite; mulheres de uma magreza tal que nem seios tinham; viu crianças de olhar tresloucado, penduradas do pescoço das mães; viu crianças brincarem com trapos e com lixo.

Explica melhor: “Não brincavam, fingiam brincar.”

Aqui (Capítulo II), Haenel resume passagens do livro que Karski publicara em 1944, Story of a Secret State.

Noutras passagens, (Capítulo III) usa excertos de outro livro de 1998 Karski, How One man Tried to Stop the Holocaust - de E. Thomas Wood e Stanislas M. Jandowski.

Falam-lhe dos campos de extermínio. Perguntam-lhe se quer ver. E ele vai, entra disfarçado de guarda ucraniano. Erra, julgando que era o campo de Belzen. Era outro qualquer. O que viu, vê-lo-ia em todos eles: gente esfomeada, sem forças, mortos-vivos.

Recorda as ruas cheias de gente que tem fome, que troca ou vende duas cebolas por um bocadinho de açúcar, gente que mendiga junto de outros mendigos. Têm fome, todos têm fome.

Jan Karski inquieta-se  “O que tem esta gente?”

E os que o acompanham respondem: “Estão a morrer. Agonizam... Lembre-se, lembre-se. O senho viu. Vá e conte-lhes o que viu.”

Comenta Yannick, o autor: sim, contar "destes seres humanos que já não parecem vivos, mas que ainda não estão mortos.”


Gueto de Varsávia

Jan Karski recorda o que lhe pediram: “Somos seres humanos também, contribuímos para a humanidade. O que acontece ao nosso povo não tem equivalente na história.” (p.14)

Falam-lhe dos campos de extermínio. Perguntam-lhe se quer ver. E ele vai, entra disfarçado de guarda ucraniano. Erra, julgando que era o campo de Belzen. Era outro quaqluer. O que viu, vê-lo-ia em todos eles: gente esfomeada, sem forças, mortos-vivos.
Pedem-lhe que lhes diga que precisam de armas, que querem revoltar-se no ghetto e querem morrer de armas na mão...


jovens mulheres que participaram na Revolta do Ghetto, presas

A esperança deles é que a “testemunha” possa “abalar as consciências”, no mundo civilizado. Karski aceita a missão: vai a Londres contar. Vai encontrar os grandes homens políticos, o governo polaco no exílio de Londres. Vai a toda a parte testemunhar.

O Ghetto em 1941

                                                                o mapa do Ghetto

E desanima porque sente a inutilidade dos seu gestos. Os Aliados sabiam o que se passava, mas não convinha que interviessem...


Depois da guerra, Karski abandona a Europa e parte para os Estados Unidos. Traumatizado? Claro, pelo que tivera a possibilidade de "conhecer" e por ter percebido que todo o esforço de dar conhecimento da tragédia fora inútil.

Karski e o mapa do Ghetto

Um dia, descobre, numa pequena galeria, a Frick Gallery, um quadro que o vai impressionar e marcar: "O Cavaleiro Polaco", de Rembrandt, que lhe enche o peito de alegria.
O Cavaleiro Polaco, de Rembrandt

Naquele cavaleiro estava tudo aquilo por que tinha lutado. Do modo com que ele próprio sentia que  tinha lutado - com bravura e, com um certo sorriso, “entre desafio e sonho.” 

Toda a amargura está ali, mas também a confiança. É uma companhia. Sempre que tem de decidir algo importante, vai ali. Ali leva a sua noiva, Pola, judia polaca.

Algo da minha juventude reavivava-se e, concomitantemente, a minha fé no que é inflexível.” (p.131). 

É o "Cavaleiro" que o faz decidir ficar na América. Pela identidade que sente com a figura, ele sempre “o sem pátria” porque a Polónia deixara de ser uma pátria. 

Já não tenho país. O meu verdadeiro país é o Cavaleiro Polaco."

Nesses tempos,  ser polaco era uma vergonha, pela intervenção negativa que tinham tido no que se referia aos "campos".  

O que era injusto pois houve muitíssimos polacos que ajudaram os judeus e foram até executados por isso, como  Michal Kruck, em 1943. Ou Schindler...



Ou Irene Sendler que morreu há pouco tempo e salvou milhares de crianças judias dos ghetto. 
No Yad Vashem, em Jerusalém, os "justos"  polacos são os mais numerosos. "Justos" porque salvaram uma vida, a vida de um judeu...


Fixa-se em Nova Iorque. E inicia, para Jan, um período de grande desespero. Recusa-se a falar, mura-se no seu silêncio, vive em isolamento total e não dorme: vive na insónia e no silêncio. Salvam-no as bibliotecas onde se encerra de manhã à noite e onde lê tudo.

Entra para Universidade de Georgetown onde, em 1952, consegue um doutoramento. Dois anos mais  tarde, tem a nacionalidade americana. Nesse ano, Começa a leccionar na mesma Universidade -  ensina ali 40 anos. Tem alunos, ensina-lhes a verdadeira história. São eles que o empurram para continuar a contar!

Mas no momento em que é entrevistado para “Shoah” volta a sentir a incapacidade (inutilidade?) de articular as palavras, quando vai recordar em frente da câmara, tudo o que viu e que ninguém ouviu. Ou, talvez melhor,  ouviram... e olharam para o lado!

"Deus terá morrido em Auschwitz?", interroga-se. "Deus onde estava?" (p.136)Sabe que esta pergunta não tem resposta.


Fica sempre tanto para dizer e, sempre, a dúvida se terá valido a pena falar. Como tenho sempre a esperança de que nada é inútil, deixo uma série de links, alguns bem interessantes! 


(*) esta fotografia é considerada uma das mais famosas da guerra. Pertence ao Report Stroop (que contem 75 páginas), com fotografias e informações que o oficial alemão Jünder enviava, regularmente, a Himmler.


(1) “Jan Karski” ( Gallimard, Paris, 2009) saiu na Teorema em 2010, com tradução de Carlos Correia Monteiro de Oliveira


(2) Robert Antelme (1917-1990) poeta francês e anti-fascista esteve nos campos de Dachau e Buckenwald.  Escreveu um livro “L’Espèce Humaine", falando dessa experiência impossível de contar. Foi casado com Marguerite Duras.



LER e VER:

Entrevista de Karski:

Sobre Jan Karski:
               Sobre a revolta no Ghetto de Varsóvia:
             O Cavaleiro Polaco, de Rembrandt, e o blog onde o encontrei:

3 comentários:

  1. É sempre importante falar!
    As pessoas mudam devagar.
    Algum dia o mundo será um lugar tranquilo e pacífico?...Não sei... O Homem é demasiado imperfeito.

    Um beijinho grande :)

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  2. Pois é, minha querida Isabel. Quem sabe se um dia?.... beijos

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  3. E quem foram as víctimas, os que não puderam contar nada?
    Que descansem em paz, e que nunca possa repetir-se uma coisa assim, embora agora mesmo, neste momento, haja milhões de pessoas a sofrer o seu próprio calvário, e nós fazemos bem pouco por elas. Algum dia talvez aiguém conte, por exemplo, como viu morrer de fome a muita gente, de todas as idades, enquanto nós continuávamos a esbanjar a comida.
    Enfim, vou procurar silenciar a consciência também hoje e ter um dia tranquilo se puder... Confesso que evito já recordar o tema do nazismo, para proteger-me. Sou asim de cobarde....
    Um grande beijo

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