terça-feira, 8 de julho de 2014

Um poema de Francisco Bugalho



Francisco Bugalho


Obsessão

"Dentro de mim canta intenso
Um cantar que não é meu.
Cantar que fica suspenso
Cantar que já se perdeu.

Onde teria eu ouvido
Essa voz cantar assi?
- Já lhe perdi o sentido,
Cantar que passa, perdido,
Que não é meu, estando em mim.

Depois, sonâmbulo, sonho
Um sonho lento, tristonho,
De nuvens a esfiapar.
E novamente, no sonho,
Volta de novo a cantar.

Sobre um lago onde, em sossego,
As águas olham o céu,
Roça a asa de um morcego…
E ao longe o cantar morreu…

Onde teria eu ouvido
Essa voz cantar assim?
- Já lhe perdi o sentido,
E esse cenário partido
Volta a voltar repetido,
E o cantar recanta em mim…"


in A poesia da “presença”, escolha de Adolfo Casais Monteiro, Moraes Editores, Círculo de poesia, p. 288

Casais Monteiro





Dele, escrevia José Régio, em 1960: 



Pela simples vivacidade dos sentidos, ainda Francisco Bugalho não seria o poeta que é; sendo já, sem nenhum desperdício de palavras, um belo pintor da Natureza …
Os conhecidos sentidos … multiplica-os, transcende-os o poeta pela sua faculdade de sonhar, contemplar, cismar, abandonar-se. Eis que a sua comunicação com a Natureza vai muito além, assim, do primeiro contacto e penetra-a até aos seios do mistério.” 





Segundo alguns, é "herdeiro de Fernando Pessoa, ortónimo, pelo desdobramento do eu ("...os fados em mim mesmo depuseram / Razões de ser e de não ser, contrárias / Nas emoções que, dentro de mim, cresceram / Tumultuosas, carinhosas, várias")".


Talvez, por isso, e pela obsessão do "cantar", pela duplicidade do canto e de quem canta, me lembre o poema "Ceifeira", de Fernando Pessoa: 


"(...) Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões pra cantar que a vida.

Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente ‘stá pensando.
Derrama no meu coração
a tua incerta voz ondeando!

Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!

Ó campo! Ó canção! A ciência

 Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro!
Tornai Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!" 


Segundo outros,  seria descendente de Cesário Verde.



 "Por uma visão que subjetivamente transfigura a paisagem concreta, (…) em comunhão íntima com a natureza, (…) e nela encontra a calma e a eternidade (intuindo o que nela existe de inefável e sobrenatural) ou adquire pelo confronto com a paisagem a consciência do seu sofrimento dando voz à dor de pensar, à desistência e ao cansaço.” (infopedia)


(*) Nota biográfica: 

"Francisco Bugalho nasce a 26 de Julho de 1905, no Porto, e morre a 29 de Janeiro de 1949, em Castelo de Vide. Estudou Direito em Coimbra, aí convivendo com o grupo de escritores presencistas.
Fixou residência no Alentejo, como funcionário no registo predial de Castelo de Vide. Colaborou em publicações que marcaram a poesia dos anos 30 e 40, como Presença ou Cadernos de Poesia. Foi pai do poeta Cristóvão Pavia.” (infopedia)

blog Montalvo e as ciências

Mais informações e outros poemas de Francisco Bugalho no blog Montalvo:

4 comentários:

  1. Nem sempre a visito mas quando venho, gosto sempre.
    Abraço, M.João.

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  2. Gostei muito do poema de Francisco Bugalho!
    Gostei de todo o post. Tenho muita vontade de visitar a casa-museu de José Régio:)

    Um beijinho grande :)

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  3. Mais uma maravilha em torno da poesia.
    Gostei muito e achei graça ao retrato de José Régio.

    Beijinho grato pela partilha. :))

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  4. Não conhecia este poeta, confesso. Portugal é a terra da boa poesia. O que sim conhecia são os estupendos versos de Pessoa, ""Ah! poder ser tu, sendo eu/ Ter a tua alegre inconsciencia/ E a consciência disso!..."
    A foto de Régio é muito "cercana", não encontro a tradução.
    Beijinho grande

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