Acabei de ler um livro espantoso! De um grande escritor, Thomas Mann, onde fui encontrar a humanidade de outros livros dele - da Montanha Mágica aos Buddenbrook, passando pela Morte em Veneza, Tonio Kröger, O Sangue dos Walsung e tantos outros.
Há muito tempo que uma história não me emocionava tanto. A história de um cão e do seu dono. O Bauschan de Thomas Mann é uma figura inesquecível e a relação afectiva (afectivíssima!) dos dois é magnífica; faz bem à alma que nestes tempos de guerra, miséria e horrores vários tanto precisa de um bálsamo...
Fico a pensar: como é possível dar a um cão uma dimensão tão humana? Vejo o Bauschan, sinto-o ladrar, mudar de opinião quanto ao dono, aos pássaros, à caça. Ouço-o pensar alto, seguindo atrás do dono, ou saltando à sua frente, criticando o dono ou achando que ele é o maior!
Como não recordar o meu cão Zac? Também sentia tudo o que se passava dentro dele, cada emoção, cada expectativa, cada alegria! Como esquecê-lo se ele está presente em cada página deste livro, com a mesma humanidade e candura e malandrice de Baushan? Se ele está em tudo, na minha vida? Amei este livro porque me "aproximou" dele uma vez mais...
Não só por isso, é evidente, este livro tem momentos altos e o escritor é grande e consegue comunicar-nos o que vê e sente, ou, melhor: o que vêem e sentem os dois: ele, o dono, e o seu cão.
Esta passagem da caça à lebre deixou-me maravilhada: uma caçada em que o caçador Baushan sai "caçado"...
Esta passagem da caça à lebre deixou-me maravilhada: uma caçada em que o caçador Baushan sai "caçado"...
“Nunca
esquecerei o dia em que uma lebre me caíu nos braços. Seguíamos por
um estreito caminho por cima do rio. Bashan ladrava a bom ladrar. Saí da
floresta para a zona ribeirinha, pisando rápido os cardos do baldio de
cascalho, trepei a encosta coberta de relva e cheguei a tempo de ver a lebre,
que corria ao lado do ferry-boat, na
minha direcção perseguida pelo Bashan. O meu primeiro impulso foi o do caçador
em frente da presa: aproveitar a situação e cortar-lhe a retirada, obrigando-a
a voltar para trás, se fosse possível para as goelas do caçador que alegremente
pulava atrás dela. Fiquei imóvel no mesmo local, dominado pela fúria da caçada,
de bengala em punho. (…) O que ela fez foi tão inesperado que alterou de súbito
todos os meus planos, provocando uma completa a imediata revolução nos meus
sentimentos. Estaria assustada sem dar por isso? A verdade é que veio direita a
mim, e, como um cão, me trepou pelo sobretudo acima, fincando nele as patitas e
me enfiou a cabeça no ombro, em mim, aquele a quem ela mais devia temer, o
caçador dono! (…) Foi uma questão de segundos, talvez um fragmento de segundo o
tempo que durou. Vi-lhe distintamente as orelhas compridas, levantada uma, a
outra caída, os grande solhos brilhantes e míopes, a fenda da boca, as longas
cerdas do bigode, a brancura do peito e das patinhas. Senti ou julguei
sentir-lhe as pancadas do coração assustado. Era-me estranho ver tudo aquilo
tão perto de mim, esse geniozinho da floresta, o mais íntimo coração palpitante
de toda aquela nossa terra, esse pequenino ser eternamente fugitivo que jamais
vira senão por breves instantes, por campos e barrancos, frenética e
jocosamente galgando os caminhos! Num momento de aflição, sem saber onde
voltar-se, eis que esse animalzinho se me lança nos braços e cai de joelhos
diante de mim, um ser humano: não diante de joelhos do dono de Bashan, mas de
joelhos diante de um homem ao mesmo tempo dono das lebres que era também dono
do Bashan. Tudo isto, bem sei, se passou em curtos segundos. Acto contínuo, a
lebre deu um salto, voltou a fincar as patas desiguais no chão e galgou a encosta
à minha esquerda, enquanto o Bashan se dava a ladrar em todos os tons, desde o
latido ao grunhido. Indo sobre ela, breve lhe chegou ao alcance, mas foi
abruptamente apanhado por uma decidida bengalada do dono da lebre, que o fez
rolar pela encosta, ganindo com uma dor temporária nos flancos. Antes de poder
apanhar de novo o rasto da presa que se sumira, viu-se obrigado a subir de novo
a encosta abrupta.”
Voltarei a este livro! Que vos aconselho. Li-o, na edição francesa da Grasset, Maître et Chien (Les Cahiers Rouges), numa tradução muito boa de Jacques Brenner e uma bela introdução.
Só depois encontrei, aqui em casa, a edição portuguesa, O Cão e o Dono, que me foi oferecido em 1961 por alguém que, nessa altura, ainda dava muitos erros...
A tradução portuguesa é de João Gaspar Simões e o livro é ilustrado, com muita sensibilidade, por Figueiredo Sobral.
Difícil ( se não impossível) de encontrar, mas aconselho sempre que se dirijam à Cláudia da Livraria Lumière: ela faz milagres! Talvez haja outras edições...
O Cão e o Dono, tradução de João Gaspar Simões e ilustrações de Figueiredo Sobral, Editorial Inquérito, col. Antologia dos Amigos do Livro, s/d, p. 113
Maître et Chien, ed. Bernard Grasset, Collection Cahiers Rouges, 1971
A edição portuguesa é muito bonita.
ResponderEliminarTalvez consiga arranjar. Gostava muito, pela amostra que aqui coloca.
Beijinho grato pela partilha. :))
Vou já já ler, mas em alemão, " Der Herr und sein Hund", que significa no fundo "o Senhor e o seu cão"... Thomas Mann é impressionante ! Obrigada por me teres lembrado disso.
ResponderEliminarBeijinhos, Mamé
Deve ser uma história bonita!
ResponderEliminarGostei muito das novas fotos aqui ao lado: as meninas vestidinhas de igual com um arzinho tão giro e a senhora com um cãozinho que podia ser o da história!
Um beijinho grande :)
Ora aqui está um livro que lerei muito em breve!
ResponderEliminarNa impossibilidade de ler em alemão, terá que ser na edição da excelente editora Inquérito, tradução de Gaspar Simões, como bem refere.
Quanto aos milagres...:))
Um beijo terno, Maria João.:))
Tenho dois exemplares iguais, não são tão difíceis de encontrar
ResponderEliminartenho 2 exemplares
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