Acabei, há pouco, o I volume das Memórias do Cárcere, de Camilo Castelo Branco. Segunda
leitura? Talvez, porque me lembrava ainda de muitas coisas.
Estas suas Memórias são uma pequena maravilha! Se bem que 'maravilha' não pareça a palavra adequada, a verdade é a que me apareceu logo: certas páginas são maravilhosas. Geniais!
Uma
maravilha de ironia, sim, de melancolia também, de tristeza e de desalento, nas
confissões, nas lembranças.
E tanta, tanta desilusão.
“Era o primeiro dia de Outubro de 1860", quando Camilo Castelo Branco entra na 'Cadeia da Relação do Porto' (hoje Centro Português de Fotografia).
Como ele próprio conta, entre poesia e um certo distanciamento, no Discurso Preliminar:
E tanta, tanta desilusão.
“Era o primeiro dia de Outubro de 1860", quando Camilo Castelo Branco entra na 'Cadeia da Relação do Porto' (hoje Centro Português de Fotografia).
Como ele próprio conta, entre poesia e um certo distanciamento, no Discurso Preliminar:
"O céu estava azul como nos meses estivos. O sol parecia vestido das suas galas de Abril, a bafagem do sul vinha ainda aquecida das últimas lufadas do Outono. Que formoso céu e sol, que suave respirar eu sentia, quando apeei da carruagem à porta da cadeia!” (pág 76)
Quase no início das 'memórias', fala da atracção do suicídio. Anda fugido, tem conhecimento de que vai ser preso em breve e, parado na ponte de Amarante, vai pensando na sua vida. Sentimos que essa ideia de acabar com a vida é para ele quase banal, tantas vezes
lhe veio já à cabeça. "Uma coisa corriqueira".
De facto, escreve:
De facto, escreve:
“O suicídio é-me tão habitual, que já nem
poesia nem grandeza tem para mim. Logo que este modo de morrer, à força de ser
meditado e premeditado, se desprestigiou, penso no suicídio como uma anasarca,
se os intestinos me doem, ou uma congestão
cerebral, se me latejam as fontes. A este desprezo da morte vem de seu o desprezo da vida.”
Conta o que lhe viera à cabeça, em Amarante, na Ponte de São Gonçalo:
Conta o que lhe viera à cabeça, em Amarante, na Ponte de São Gonçalo:
ponte sobre o Tâmega, em Amarante
“À meia noite estava eu debruçado no
parapeito da ponte, e não pensava nos feitos heróicos (…) contra os franceses
naquela localidade. Pensava em medir o salto da ponte ao Tâmega, que derivava
murmurando e desenrolando as fitas de prata, que lhe emprestava a lua.”
(página 64)
Tem muito que recordar! Páginas
atrás, falara de Fanny Owen e de José Augusto, seu amigo.
José Augusto que lia, à mulher, textos de Byron “para entreter os últimos meses da vida de Fanny Owen, sua esposa”.
José Augusto que lia, à mulher, textos de Byron “para entreter os últimos meses da vida de Fanny Owen, sua esposa”.
os dois volumes de Memórias do Cárcere
Esposa em quem nunca tocara, mesmo depois de ter casado com
ela, devido a uma intriga que Camilo tecera –ele também interessado em Fanny como
diabinho que era. O ciúme nunca morreu, em José Augusto, e a vida dos dois foi um inferno.
"Francisca", (Teresa Meneses e Diogo Dória)
Recorda-os agora, no alto da ponte, e imagina um diálogo com Fanny e José Augusto:
“Vi agora o retrato de ambos. Sempre que os contemplo, creio que me falam, e dizem: 'E tu vives ainda! Nós, tão agourados da boa fortuna, caímos como duas flores da fronte duma formosa, ao luzir a manhã, e acabado o baile.'
Camilo e Fanny-Francisca: "acabado o baile"
Camilo continua o seu diálogo-monólogo, doloroso e lúcido, sobre o irreparável: a infelicidade de que foi ele o causador. Acusam-no:
"cingido de serpentes", como a Medusa de Caravaggio
'"E tu, cingido pelas roscas de tantas serpentes, estás aí, como ileso, perguntando às nossas imagens por que fraqueza morremos!" (página 63)"
“Não saberá ela que eu, tantas vezes, encostado às grades do seu sepulcro, na Lapa, lhe tenho contado o segredo desta minha pertinácia em viver?"
"Não me ouviria José Augusto, no Cemitério do Alto de São João, perguntar às auras coadas por ciprestes em qual daquelas rasas sepulturas estavam as cinzas do obscuro mártir da alma incompreensível que Deus lhe dera?...”
o olhar da Medusa, de Caravaggio
E, com o seu olhar de Medusa, continua o monólogo, agora lamentando a triste sorte do amigo, José Augusto Pinto de Magalhães, "obscuro mártir da alma incompreensível" -para cuja desgraça tanto contribuíra."Não me ouviria José Augusto, no Cemitério do Alto de São João, perguntar às auras coadas por ciprestes em qual daquelas rasas sepulturas estavam as cinzas do obscuro mártir da alma incompreensível que Deus lhe dera?...”
Camilo e José Augusto, em "Francisca"
Desta história trágica de Camilo, tirou Agustina Bessa Luís um belo e terrível romance, Fanny Owen (1979), e nele se inspirou Manoel de Oliveira para o seu filme "Francisca" (1981), do qual aproveito algumas imagens.
Agustina Bessa Luís
Agustina tão esquecida! E, no entanto, ainda viva - mas quem fala dela? Escritora que é, também, em certas páginas, genial...
A verdade é que ela 'cria' uma Fanny viva, alegre, desejosa de viver mas sobre a qual cai o manto da desgraça.
John Waterhouse, 1891
Como seria Fanny? Deixo algumas imagens de mulheres que poderiam ter sido como ela.
John Waterhouse teria visto assim Fanny?
Henry-Peach Robinson viu a morte dela assim?
reedição, em 2013, com Prefácio de M.Alzira Seixo
Que
acrescentar mais? Entrar as Memórias do Cárcere é ‘mergulhar’ na análise cruel, na descrição, perfeita e crua, do que
foi a vida de Camilo, sem esconder nada, sem embelezar o que não era belo, sem
perdoar, nem querer ser perdoado.
Um livro extraordinário! Com histórias
extraordinárias!
A
ler e reler este escritor genial…
(in “Memórias
do Cárcere”, Parceria A.M. Pereira Lda, 8ª edição, 1966)
sobre Fanny Owen:
sobre Fanny Owen:
http://pertempusap.blogspot.pt/2010/10/historia-de-fanny-owen-o-tragico.html
Camilo na Cadeia da Relação do Porto, 'video'
Camilo na Cadeia da Relação do Porto, 'video'
Olá, Maria João!
ResponderEliminarTambém já li há uns anos estas memórias...
Impressionantes, sem dúvida!
E também já visitei a Cadeia da Relação; em concreto a cela onde Camilo esteve.
Quanto à obra Fanny de Agustina, essa ainda não li. Talvez um dia.
Dois excelentes escritores.
Um beijinho amigo.:))
Tantos temas apaixonantes, o livro de Camilo, o de Agustina Bessa Luís, o filme de Manuel de Oliveira, a própria vida novelesca do nosso grande autor, o seu sentido da vida e da morte, os quadros tão belos...Fico sem fôlego, bloqueada. Tudo belíssimo.
ResponderEliminarBeijinho
Beijinho
Concordo com a Maria!
ResponderEliminarTenho as Memórias, foram compradas na Lumière da nossa amiga Cláudia. Os seus volumes são lindos, assim encadernados - uma maravilha!
Um beijinho grande):):):)
Obrigado pelo seu artigo. Emocionante para mim que por coincidência fala de livros que foram companhia durante este ano. E uma confidência, quando quase todos os dias quando passo na Cadeia da relação a imagem que surge é de Camilo e sua vida. Parabéns uma vez mais pela sua escrita.
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