sábado, 3 de setembro de 2016

História de mulheres e da África!



Poucos títulos são tão simples e verdadeiros como o livro de José Régio, “Histórias de Mulheres”.
Pouco mais é necessário dizer e há tantas histórias extraordinárias -ou banais- de mulheres, a contar!
Passeando por Cascais, sentei-me num banco numa esplanada sobre a Praia da Rainha, ou da Princesa, a ver o mar.
Estava lindo como sempre. Variam apenas os azuis do céu e a cor azul acinzentada do mar, nos dias sem sol, ou o azul turquesa límpido e brilhante de certos dias de calmaria e de sol. 

E a praia, lá em baixo, tranquila, quase sem gente. Diferente do outro mar mais oceano, como no Guincho, onde as areias e o vento transformam a praia em dunas móveis.
a beleza da mulher do Senegal (internet)
Veio sentar-se ao meu lado uma mulher africana, linda, vestida de azul turquesa da cor do mar nessa manhã. Tinha também uma espécie de turbante feito com um lenço da mesma cor. 
São Tomé
Lembro-me que a Milita, minha cozinheira em São Tomé, costumava usar um lenço daquela maneira que, segundo ela, era à moda do Gabão
No fundo, à moda africana do continente: Gabão, Senegal, Costa do Marfim, aí lembro-me de ver mulheres com lenços enrolados à cabeça, com uma ponta caída.
Trazia no pulso uma série de pulseiras e ouvia o tilintar dos pequenos guizos que tinham. Olhei para ela, sorri e disse-lhe: “é muito bonita”. Era verdade. “Donde vem?” Ela sorriu e disse que era do Senegal. Falei-lhe em francês e ela perguntou logo:
“Chérie maman, tu ne veux pas ce joli joyau?”
Não queria. Abanei a cabeça. Ou talvez quisesse? Aquela maneira de dizer “chérie maman” era tão bonita!
Ela insistiu:
“C’est jolie et toi tu es jolie aussi, grande soeur.”
 Eu já tinha decidido comprar.
“Compra esta com a mão azul que dá sorte.”
Eu ri-me porque gostava daquela pulseira em pasta de turquesa com muitas conchinhas dum material prateado. Que importa se não era prata? Era tão bonita!
Falámos um pouco. Tinha marido, tinha filhos. Viviam em Portugal há uns anos. Gostavam. Era um sítio sossegado e a gente era boa, explicou. 
Au revoir, chérie maman!” E acrescentou, em português: “tu és simpática!”
Praia da Rainha
Afastou-se em direcção ao café que fica à esquina da praça.
Continuei a ver o mar que estava cheio de barcos ao longe. Ainda não tinha reparado neles. Limitara-me a olhar o céu e o mar… Passara a manhã a ver o mar e o céu, desde a baía ao pontão.

Chegou outra mulher bonita e sentou-se ao meu lado. Sabia o que se ia passar. Ri-me. Esta era mais nova e vinha vestida de vermelho e cor de laranja. Como diria a Milita, um “bubu”. E eu acrescentaria um bubu flamejante! O lenço a condizer com o vestido: vermelho também. Trazia no braço muitas pulseiras e a mão direita apoiada no ventre. 

Antes que me dissesse alguma coisa, poisei-lhe a mão no braço e disse: “Non, merci… Já comprei hoje uma”. 
E mostrei-lha, já no pulso.
J’ai bebé de trois mois ici.” E mostrava a barriga.
C’est pas grave. Elle est une amie  à moi!” -apontava para a mulher de azul, encostada na balaustrada, a ver a praia lá em baixo.
Praia da Rainha

Achei divertido o argumento dela: não fazia mal - como se ela não se importasse que eu já tivesse comprado a outra pessoa, já que era amiga. 
A verdade é que eu estava em maré de comprar pulseiras. Porque me lembrei de São Tomé. Porque gostei daquelas mulheres. Porque eram bonitas e delicadas e eram um toque de cores vivas naquela esplanada cinzenta, cheia de turistas desinteressantes. Pensei que não estavam ali a divertir-se, que era um trabalho, que precisavam desse dinheiro. 
mulheres do Senegal

Vinham sabe-se lá de onde e a vida é sempre dura para as mulheres. Conheci a África e sei como era difícil viver. Como as mulheres levavam a vida às costas, juntamente com os filhotes, pendurados dum pano...
Sei que a vida das mulheres no Senegal, entre grupos armados e a fome, não é excepção à regra. A África explorada e abandonada!
mulher do Senegal (no mercado)
São elas que pagam o preço mais pesado, na terra natal, a trabalhar, a tomar conta dos filhos, a lutar pela sobrevivência e pela saúde, e quantas vezes pela vida, no dia a dia. 
E, depois, nestas situações de mudança, de insegurança e de angústia constantes. Ela continuou, talvez por me sentir convencida.
Tu vois, je suis ton amie. Je te donne deux et tu payes seulement une!”
Ça va…”
mulher senegalesa
Escolhi outra azul turquesa com muitos bichinhos prateados e conchinhas. E mais uma, com uma pérola encastoada na prata. Pérola falsa, tudo falso, mas queria lá saber. Eram tão bonitas!
À bientôt chérie maman!”
"safus"
um maquequê 
"Boa sorte"!, pensei. Tinha gostado daquelas duas mulheres. Tinham-me trazido um pouco do ar da minha África. Das frutas, das flores, dos cheiros. Da minha horta, onde crescia o maquequê e o jindungo.
"fruta pão"
E imaginei a Milita, a Adelina e a Diamantina, com o sorriso doce, o orgulho de serem elas a ganhar o dinheiro para a casa. Vejo a Dáy pequenina  a limpar a carambola dourada, antes de ma dar. "Coma, dôtôrra, é doce!"
A Dáy que foi para Angola e teve uma vida bem difícil! Teve três meninas e vendia limonada numa espécie de quiosque porque o marido nem sempre trabalhava.
à direita, a Dáy e, à esquerda, o Sr. Semedo

carambolas
Sinto na boca o gosto acidulado dos "safus" cozidos, cheiro a "fruta pão" nas brasas a acompanhar o peixe grelhado. A fruteira do nosso jardim tinha muitos metros de altura e os frutos enormes pendiam. De vez em quando, vinham uns rapazes conhecidos do nosso guarda - o saudoso senhor Semedo!- trepar pelo tronco acima e colher os frutos! 
No meu jardim de São Tomé havia todos os frutos! Caramboleiras, mangueiras, goiabeiras, coqueiros!
"sape-sape"
Lembrei o gosto especial e doce do "sape-sape", da "jaca" e do "mangustão" que parecia uma pequena escultura avermelhada.
o mangustão

Por um momento, vivi o passado africano e como foi bom recordar!
E, depois, pensei, havia sempre alguém na minha vida a quem oferecer as pulseiras! 

NOTA: Encontrei imagens destas mulheres lindas, na internet. Eu, que sou maníaca da fotografia com o meu telemóvel, esqueci-me de lhes pedir licença para as fotografar! 

9 comentários:

  1. Que texto tão bonito!
    A Maria João põe poesia em tudo o que escreve!

    E as imagens escolhidas são lindas!

    Um beijinho grande e um bom domingo:)

    ResponderEliminar
  2. Os sabores africanos soam como um poema, o sape-sape, a jaca, o mangustão...Eu de ti escrevia uma novela passada em África, ao estilo
    de Karen von Blixen, impregnada de goiabeiras e coqueiros...
    Sempre que escreves sobre as tuas recordações de São Tomé gosto muito, penso que eu também gostava de lá ter estado ( mas também em Roma, Marrocos ou Jerusalém, claro. O que mais enriquece é a variedade!)
    Hoje está um calor espantoso, "a noite mais quente deste verão", não esperava isto de setembro, feliz domingo.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Marcou-me muito esta passagem por África. Sei que gostarias porque sabes tirar partido das coisas. Karen Blixen é que me 'levou' a escrever sobre tantas destas recordações. Adorei os seus contos "Sombras no Capim"!
      Boa semana!

      Eliminar
  3. Também gosto muito de África e da sua gente alegre e sofredora,
    pelo que, apreciei especialmente este 'post'.
    Teria procedido de modo semelhante...
    Uma semana agradabilíssima, na despedida deste Verão.
    ~~~ Beijinhos, MJ ~~~

    ResponderEliminar
  4. Instantes belos e poéticos com a mulheres, com o mar, com os barcos.
    Belíssimo Maria.

    ResponderEliminar