Escreve José Régio em “Páginas do Diário Íntimo” (*):
“Cada vez me convenço mais de que toda a
verdadeira arte é humana, e afunda raízes nas entranhas do criador. Só assim
provoca profundas ressonâncias no leitor. Quanto mais germinalmente subjectiva
(subjectiva na sua génese), mais probabilidades tem a obra de arte de
conquistar uma ‘existência independente’, quer dizer: a objectividade que lhe
compete. A ingenuidade a despeito de toda a sabedoria do artista (ou do
artífice) é outro elemento que me parece característico de toda a obra de
criação.”
E
acrescenta:
“A maior parte dos pretensos poetas de hoje
carecem quase totalmente de íntima transcendente ingenuidade. Por isso não são
poetas.”
Tem
razão o Poeta. No 'Diário' referia-se à poesia dos “experimentalistas
e formalistas da moda novíssima”, como lhes chama. Continua actual - quer no
que diz respeito a poetas quer a escritores. Para ser autêntico, é essencial “afundar raízes nas entranhas”, pois, só
assim, “provoca profundas ressonâncias no
leitor”.
Leio
hoje escritores –ou apenas folheio os livros- que sinto vazios dentro, falsos e sem ‘alma’. Enquanto outros, em breves e simplicíssimos versos, nos trazem um perfume, um
momento, uma saudade, um desgosto que nos atingem fundo! Porque neles existe o afundamento na vida, sentido e contado de modo único, por uma voz única e original.
E vou buscar o livro de Poesias, de Manuel Bandeira (**). Na sua aparente simplicidade quanta emoção, cor, grito de vida,
calmo desespero, sentido do efémero, presença da morte e, no entanto, a esperança!
Manuel Bandeira
“Cada pássaro,
com sua plumagem,
É um milagre.
O espaço, infinito,
O espaço é um milagre.
O tempo, infinito,
O tempo é um milagre.
A memória é um milagre.
A consciência é um milagre.
Tudo é milagre.
Tudo, menos a morte,
- Bendita a morte, que é o fim de
todos os milagres."
(pg. 142)
“Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-Índia.
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho só queria estar
debaixo do fogão!
Levava ele prà sala
Pra os lugares mais bonitos mais
limpinhos
Ele não gostava:
Queria estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas
ternurinhas…
- O meu porquinho-da-Índia foi a
minha primeira namorada.”
(pg.169)
E a hesitação no poema ‘Tema e voltas’, entre sofrimento real e ironia ?
“Mas para quê
Tanto sofrimento,
Se nos céus há o lento
Deslizar da noite?
Mas para quê
Tanto sofrimento,
Se lá fora o vento
É um canto na noite?
Mas para quê
Tanto sofrimento,
Se agora, ao relento,
Cheira a flor da noite?
Mas para quê
Tanto sofrimento,
Se o meu pensamento
É livre na noite?”
(pg.112)
E
que dizer de “Momento num café”? O
efémero, a consciência do absurdo e da ‘sem finalidade da vida’.
"A vida é uma agitação feroz e sem finalidade". E o corpo que passa é afinal e apenas..."matéria liberta da alma"!
"A
“Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a
vida
Absortos na vida
Confiantes da vida.
Um no entanto se descobriu num gesto
largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma
agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma
extinta.”
(pg.128)
E o poema “Bicho”? Com data de 27 de Setembro de 1947, no Rio, é um poema, infelizmente actual e doloroso...
“Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.”
Fecho
com o maravilhoso e dolente ‘Trem de
ferro’. Quem não 'ouve' e não sente ainda o cheiro e não recorda o velho comboio a carvão da nossa infância a apitar e a deitar fagulhas?
Café
com pão
Café
com pão
Virge
Maria que foi isto maquinista?
Agora
sim
Café
com pão
Agora
sim
Voa,
fumaça,
Corre,
cerca
Ai
seu foguista
Bota
fogo
Na
fornalha
Que
eu preciso
Muita
força
Muita
força
Muita
força
Oô…
Foge,
bicho
Foge,
povo
Passa
ponte
Passa
poste
Passa
pasto
Passa
boi
Passa
boiada
Passa
galho
De
ingàzeira
Debruçada
No
riacho
Que
vontade
De
cantar!
….
Vou
depressa
Vou
correndo
Vou
na toda
Que
só levo
Pouca
gente
Pouca
gente
Pouca
gente…”
(pg.192)
Poesia. Sentida, vinda dos fundos do tempo, vivida por dentro, a "afundar raízes nas entranhas”, pois, só assim, “provoca profundas ressonâncias no leitor”.
Tinha
razão José Régio que também amava Manuel Bandeira!
na Academia Brasileira de Letras
O poeta Manuel Bandeira nasce em Pernambuco em 19 de Abril de 1886 e morre no Rio de Janeiro em 13 de Outubro de 1968. É professor de Literatura Hispano-Americana, a partir de 1943, na Faculdade de Filosofia. Em 1940, é eleito para a Academia Brasileira de Letras.
Pernambuco
(*)José Régio,
Páginas do Diário Íntimo, dia 3 de Dezembro de 1964, Obra Completa,
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2ª edição, pg.361
(**)
Poesias de Manuel Bandeira,
Portugália, colecção Poetas de Hoje, 1968
Mais sobre Manuel Bandeira:
Gostei muito desta aliança entre os poetas lusos e a sua infância.
ResponderEliminarBeijinho grato pela partilha. Entendo o que diz. Achei o livro de Ana Zanatti vazio mas porque a sociedade que retrata é vazia.
Beijinho.:))
Sempre gostei muito de Manuel Bandeira. Em Portugal temos poetas maravilhosos, de que José Régio é um exemplo. Não estou de acordo com algumas reflexões, mas que mais dá? Se sempre estivesse de acordo contigo é porque algo falhava em mim, é impossível, aborrecido e sospeitoso, dizer sempre "amen" a tudo. Penso...
ResponderEliminarFeliz 14 de Fevereiro, este dia já não é para mim, mas tenho outros. Beijinhos
Os meus amigos cibernautas brasileiros consideram Manuel Bandeira um dos dois melhores exponentes da literatura do seu país, sendo o outro, Drummond de Andrade, seu sucessor.
ResponderEliminarConcordo com Régio e consigo... Há poetas que são mais jardineiros da palavra, preocupando-se demasiado com o aspecto formal do que com as mensagens que surgem destituídas de sentires genuínos ou raízes humanistas.
Achei muito interessante esta dissertação sobre a qualidade da obra destes exímios conhecedores da arte da escrita.
~~~ Beijinhos, MJ ~~~
E têm razão os seus amigos brasileiros, Majo. É um poeta maravilhoso, de grande pureza e simplicidade aparente. Fala de tudo com um tom quase coloquial, mas com uma escrita puríssima! Um beijo
EliminarQuerida Maria João,
ResponderEliminarO grande José Régio! Acabei de ler "Viajar com... José Régio", de Laura Castro!
Manuel Bandeira tem poemas lindíssimos e outros tão fortes,como "Bicho".
Volto constantemente a estes escritores... são incontornáveis e gosto de os ter por perto, para ler, reler ou simplesmente folhear!
Beijinhos.:))