Escrever sobre São Tomé e recordar tudo não é simples. Tanta coisa me marcou nessa passagem! E falar da ilha também não o é. Uma amiga avisou-me: "tem cuidado, podes parecer protectora, neo-colonizadora, se falares deles de modo superior..."
Eu creio que seria incapaz de falar 'de modo superior' porque não achei nunca 'inferiores' a mim os são-tomenses. Ou qualquer povo em geral! E muito me ensinou a gente de São Tomé sobre a vida, sobre mim e sobre a amizade!
a Daisy -anos mais tarde...
Quero falar, pois, sem problemas, nem rodeios, nem medos de críticas - naturalmente, tal como falo de tudo o resto. De tudo o que fez a minha vida diferente e me fez como sou hoje, passados tantos anos.
As
primeiras saídas em São Tomé eram uma surpresa constante. Hoje, passados tantos anos, penso: que
ideia teria eu de África? Alguma vez pensei ter uma casa em África e viver lá tantos anos?
Ouvira falar de São Tomé como de um sítio
paradisíaco, com uma baía linda onde os barcos, que vinham da outra África continental, ancoravam ao longe.
Era,
contavam, uma ilha muito bela, perdida no oceano. E, mais abaixo, ficava a
minúscula Ilha do Príncipe.
Um
dia, em conversa, ouvi um são-tomense queixar-se: “Fomos esquecidos... Abandonados...”
Passeando
pelas ruelas, pelos bairros pobres, de casinhas de madeira, foi o que pensei: continuava
uma ilha perdida do resto do mundo, com tanta riqueza afectiva!
E era a baía de Ana Chaves, plácida, de águas brancas, cinzentas ou
azul-turquesa, eternamente bela, que me atraía o olhar e me fazia esquecer esse
abandono.
Íamos admirá-la, ao entardecer, perto da Igrejinha que funcionava como Arquivo
Histórico. Ao lado, uma acácia rubra, de flores quase mágicas, para mim, que as
via pela primeira vez. Em frente de nós, o sol descia, rápido, no horizonte,
rubro como as flores da acácia.
Depressa,
procurei conhecer a terra onde ia viver: a cidade-capital,
como chamavam os são-tomenses a São Tomé. Via-me rodeada de miúdos que me olhavam,
surpreendidos. Depois de me olharem, curiosos, gritavam, saltando à minha volta: “Branca, ó branca!”
E
fugiam. Mais adiante, quando me virava por cima do ombro, reparava que vinham
atrás de mim. E riam-se. E eu ria-me
para eles.
Entrava
pelas ruazinhas estreitas, pelos largos de terra batida, bem negra. E via, em redor,
as casas, de madeira deslavada, gasta e cinzenta, elevadas sobre estacas, por
causa das enchentes do rio. E passava entre árvores de frutos exóticos que eram a grande riqueza da alimentação em São Tomé.
As
crianças brincavam no chão e as mulheres, sentadas em banquinhos,
falavam numa língua diferente, penteando as filhas pequenas com pentes
de madeira. Outras esfregavam as panelas com areia num grande alguidar de
plástico.
Os
homens poliam a casca dos cocos esculpindo pérolas e argolinhas para colares.
Ou escavavam pequenos barcos de grande elegância, na madeira mole. Lindos barquinhos com o seu
remo e a sua pá.
Fascinada,
parava a olhar. Tudo era tão diferente do que conhecia. Espreitavam-me, sempre acolhedores. Limpos até ao exagero,
apesar das roupas gastas de tantas lavagens, e cosidas, sem mais remendo
possível.
No
entanto, quando as meninas iam para a escola, a roupa que era a de sair parecia nova, nas cores vivas, por vezes um pouco desbotadas.
No
largo do Mercado Central, havia uma loja num rés-do-chão e várias costureiras trabalhavam,
detrás das largas janelas envidraçadas, abertas todo o dia. Ali se faziam os
bibes da escola, as calças dos homens, os vestidos de festa, com enfeites, das meninas e as blusas coloridas das mães.
Muitas
vezes, lá fui com a Daisy. A Daisy tinha então nove anos. A mãe, a Milly, fazia-a trabalhar. Logo de
manhã, ia buscar água à fonte, na Chácara onde viviam. Voltava carregada com um
balde à cabeça e outro na mão, contava-me ela, quando se sentava na minha cama,
com o meu pequeno almoço num tabuleiro.
Na
nossa casa, ajudava a mãe, lavando o chão de cimento vermelho polido da sala, e
o sobrado dos quartos, limpando o pó, parando apenas para se sentar ao meu lado,
a conversar.
o Senhor Semedo e a Daisy, anos mais tarde, e a filhita dela
Eu e a Daisy conversámos
muito durante esses anos todos. Ela tornou-se numa rapariguinha à minha frente. A Daisy gostava de falar e tinha sempre um
assunto novo, uma novidade da ilha, uma coisa para protestar, ou discutir; ou um motivo para rir com grandes
gargalhadas.
Passei
a dar-lhe um ordenado. Porque o merecia. E, para a Milly não lho gastar,
escondíamos o dinheiro numa caixa de sapatos, fechada com fita-cola, debaixo da
cama do quarto de visitas - que era muito baixa.
o meu quarto (MJF)
A
Daisy punha-se de gatas para a esconder lá bem no fundo para ninguém a ver. Quando queria comprar alguma
coisa, ia buscar umas dobras - a dobra era a moeda local.
A
ideia era juntar dinheiro para fazer uns vestidinhos à sua vontade. Íamos então
as duas, de manhã, escolher o tecido e passávamos nas senhoras costureiras onde
ela explicava com muitos pormenores como desejava o vestido.
Numa
velha revista de modas, escolhia vestidos com folhos nos ombros ou na saia,
como ela gostava. Sentia-me feliz quando ela me agarrava na mão, de regresso a
casa. Ela saltitava ao meu lado batendo com as sandálias no chão.
A
pobreza era muita, como ia dizendo. Vivia-se da pesca, das flores de Água-Izé que davam dinheiro a alguns apenas, e de algumas culturas poucas. Havia barcos e redes em todas as praias perto da cidade, mas os barcos mais bonitos vi-os na praia Melão - que soava Milão. As redes ficavam a secar em cima dos barcos virados e era uma imagem linda para quem ali passava, como eu, de passeio no jeep.
O velho Mercado não tinha bancadas. Expostas, sobre tabuleiros ou bancos, estavam as frutas da ilha, as metades das cebolas, abertas com a navalha, dois ou três dentes de alho muito juntinhos, o gindungo em pequenos montes verdes, três cenouras raquíticas, uns paus de ossame e pouco mais. Atrás das vendedoras, sacos de fruta-pão, de maquêquê e de matabala.
a praia Melão (MJF)
O velho Mercado não tinha bancadas. Expostas, sobre tabuleiros ou bancos, estavam as frutas da ilha, as metades das cebolas, abertas com a navalha, dois ou três dentes de alho muito juntinhos, o gindungo em pequenos montes verdes, três cenouras raquíticas, uns paus de ossame e pouco mais. Atrás das vendedoras, sacos de fruta-pão, de maquêquê e de matabala.
À
porta, no passeio, juntavam-se miúdos com alguidares de plástico cheios de
bananas demasiado maduras, mais baratas, ou mangas e 'mamões' - ou papaias? E as maravilhosas bananas com todos os gostos e cores que havia em São Tomé? Que se encontravam dentro da cidade, nos pátios interiores, nos jardins e à beira das estradas.
Cedo, quando mudámos para a casa nova, tive o prazer de ter duas belas bananeiras de banana-maçã, no nosso jardim. E ensinou-me o Senhor Semedo o que era a "lula", na bananeira. E como tinha de se cortar o que, creio, se chama "pseudo-caule" -que tinha a forma de uma lula roxa- para as bananas amadurecerem e, depois, voltarem a dar outros cachos. E como se cortavam os cachos de bananas ainda verdes, como se embrulhava em jornais e se guardavam num sítio escuro. Muitas coisas aprendi com o Senhor Semedo, nosso jardineiro e guarda!
Havia outras qualidades de banana: a banana-prata, que se comia bem madura, ou então frita ou cozida, como acompanhamento do peixe, tal como a banana-pão; e a banana-ouro, doirada por dentro, por vezes mesmo cor de salmão, e dum belo vermelho-rubro por fora.
Havia outras qualidades de banana: a banana-prata, que se comia bem madura, ou então frita ou cozida, como acompanhamento do peixe, tal como a banana-pão; e a banana-ouro, doirada por dentro, por vezes mesmo cor de salmão, e dum belo vermelho-rubro por fora.
Os
mesmos meninos que andavam descalços, ou arrastando velhos chinelos, de pés molhados,
no chão sujo das ruas. Com feridas causadas pela infecção da “pulga-do-pé”, a “matacanha” como lhe chamavam na ilha.
Era a pulga-fêmea que se escondia debaixo das unhas dos pés, ou entre os dedos,
onde depositava os ovos, e cuja picada dava comichão insuportável.
Difíceis
de arrancar, apesar da perícia com que as mulheres enfiavam os alfinetes para
as tirar, deixando por isso, feridas que se infectavam facilmente.
Pelos
caminhos, pelo dédalo de ruelas feitas de cabanas sobre estacas, ia-me aventurando
cada vez mais longe. Às janelas, apareciam cabeças com trancinhas espetadas a
espreitar.
-
Bondjao, dona, precisa alguma coisa?
Mulher para trabalhar?
-
Bondjao, respondia eu. Não, obrigada,
não preciso.
Muitas
vezes acompanhavam-me a Daisy ou a Milly.
-
Bondjao, diziam elas. Como vida sa é?, perguntavam.
E
a Milly respondia, num sorriso aberto:
- Vou levi-levi, vizinha.
A Daisy gostava de dizer:
- Tchau, vizinha.
Uma vez fomos à procura do único artesão da ilha que ainda fazia chaves! Atravessámos terrenos pantanosos, no meio da bruma chuvosa, de onde se levantavam nuvens de mosquitos, muito
perto já da subida para o Cemitério de São Jacinto.
Das terras pantanosas vinha o mosquito anofeles, com ele, o paludismo de vários tipos. Mas eu não sabia nada, tinha acabado de chegar!
E subíamos, e eu tropeçava, e tudo me divertia!
E subíamos, e eu tropeçava, e tudo me divertia!
E a Milly que conhecia aquele sítio muito bem, avisava-me:
-
Cuidado, dona! Tem buraco grande!
Debaixo
das águas estagnadas, havia pedras soltas e buracos e tínhamos que saltar por cima deles.
A
pobreza era angustiante, as condições de salubridade péssimas, sobretudo quando
chegavam as chuvas, na infindável "estação da chuva" - que durava oito meses.
quadro do grande pintor de São Tomé, Canarim, 'Tchiloli'
Mas
o sol quando abria tudo “tratava” e curava como o sol costuma fazer sempre. As
casas voltavam a brilhar, as folhas das árvores luziam e até a lama ganhava uma
bela cor de barro vermelho. As flores eram magníficas nas cores fortíssimas. Havia festas e alegria.
E, em Maio, enfim, chegava a "estação da Gravana", que era uma espécie de Primavera! Fresquinha, seca, sem uma gota de água.
Tchiloli, no Riboque (MJF)
Tempos
estranhos de grande ensinamento para mim sobre a miséria e sobre as gentes que sofrem. E que não se queixam. E sobre a alegria e a capacidade de tudo ultrapassar com um sorriso. Essa foi uma das lições da ilha.
Não
esqueço a queixa: “Fomos
abandonados”... E penso: toda a África foi abandonada!
Conheço São Tomé
ResponderEliminarno tempo dos barcos artesanais escavados em troncos de árvore
quando as poucas viaturas que circulavam apitavam sem ninguém à vista com receio que das margens surgissem crianças.
Um paraíso onde as gentes estão sequestradas e aparente mente felizes
Como sempre belo o seu texto
Bj
Ainda no final dos anos noventa eram escavados nos troncos dos ocás. E era neles que pescavam...
EliminarTambém conheço África...
ResponderEliminarApreciei sobremaneira a leitura das suas memórias...
Concordo com a sua conclusão, cometeram-se erros da parte
de quem não conhecia minimamente os problemas sociais...
A vida destes povos não dependia apenas deles...
Deveria ter havido um processo de transição, de formação de
professores e outros quadros públicos. O mínimo que devia
ter sido feito para em parte desculpabilizar a colonização.
Lamento consigo...
Beijinhos, MJ.
~~~~~
Beleza selvagem em estado puro! Com a perspectiva do tempo, a gente sabe melhor o valor de cada coisa, a riqueza e força interior que dá enfrentar-se a situações muito diferentes. Bjss
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