sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Primo Levi: 70 anos depois da publicação de "Se questo è un uomo"...

Li, no jornal italiano La Repubblica, em Novembro do ano passado, um artigo em que se falava do escritor  Primo Levi e de David Grossman, ensaísta e romancista israelita. Intitulava-se "Ler Primo Levi". De facto, a temática do escritor é, infelizmente, verdadeira e actualíssima! O homem continua a perseguir o homem. O homem continua a infernizar a vida do homem.
O jornal referia-se à cerimónia de entrega, em Génova, do ‘Prémio Internacional Primo Levi’, a David Grossman.(1)

Diz o articulista: "Grossman confessa que  aprecia Levi desde a leitura de 'Sistema periódico' . Considera que o livro 'Se questo è un uomo' é especial, com uma lição muito importante a tirar."

entrega do Prémio Primo Levi

Grossman que aprecia Levi desde a leitura de “Sistema periódico”, acha que Se questo è un uomo é um livro muito especial: “Enquanto o lia, página atrás de página, sentia que o livro deste autor, deste homem –como me aconteceu com mais três ou quatro- me indicava um modo único e particular não só de observar a vida mas também de a viver!

David Grossman, 1954

Em vez de falar do livro preferiu falar da relação de Levi com um homem chamado Lorenzo que lhe salvou a vida, no campo de Auschwitz. Lorenzo, o homem “que recusou ignorar a sua humanidade.”
E refere isto como coisa de grande actualidade,  num momento em que o problema dos migrantes continua a acender-se sobretudo na óptica do acolhimento destes refugiados do mundo. 


No discurso de agradecimento, diz : 
Se questo è un uomo’ é o livro em que pela primeira vez Levi fala dos quase doze meses no campo de extermínio de Auschwitz. Poderíamos falar horas e dias desta obra, da desorientação que causa no leitor o estilo sóbrio e límpido do escritor mesmo quando descreve os horrores mais terríveis, nunca antes sofridos por seres humanos, o processo de destruição e da perda de qualquer semelhança humana não apenas por parte dos nazis e dos seus auxiliares, como também das próprias vítimas.”

No livro "Il sistema periodico", Primo Levi referira já a passagem por  Auschwitz. Esta sua autobiografia é considerada uma das mais belas e originais. 
A particularidade é que cada capítulo do livro corresponde a um elemento químico da tabela periódica de Mendeliev que, confesso, não conheço.
Mendeliev  e a tabela periódica


na Universidade de Turim, que tem de abandonar pelas "leis rácicas" 


Leio na internet que "no capítulo dedicado ao Ouro, entramos  com Primo Levi no Campo de Aushwitz". 
Na minha cela também havia um rato. Fazia-me companhia mas, de noite, mordiscava-me o pão. (…) Sentia-me mais rato do que ele: pensava nos caminhos nos bosques, nas neves lá de fora, nas montanhas indiferentes, nas centenas de coisas maravilhosas que, se voltasse a ser livre, poderia fazer, e a garganta fechava-se como um nó.’

Sabendo que não haveria tempo para relembrar tudo isto, Grossman escolhe "falar do único, crucial, contacto humano que Levi teve em Auschwitz, com um homem que se chamava Lorenzo.”
E acrescenta:
Primo Levi escreve: “a história da minha relação com Lorenzo é ao mesmo tempo longa e breve, simples e enigmática: é a história de um tempo e de uma situação hoje apagados por qualquer realidade presente.
(...)
Reduz-se a pouca coisa: um operário civil italiano trouxe-me um bocado de pão e os restos da sua comida todos os dias durante seis meses; deu-me uma camisola remendada, escreveu – a meu pedido - um postal para Itália e, depois, a minha resposta a esse postal. Não pediu nada por tudo isto nem aceitou qualquer recompensa, porque era um homem bom e simples e não pensava que o bem se praticava para ter alguma paga.”

Tantas coisas pequenas, quase insignificantes, mas que se revelam essenciais para um ser humano que não esteja dolorosamente ferido e cheio de medo, ao ponto de viver mecanicamente, apenas para sobreviver de qualquer maneira.
"Num lugar onde os civis nos olhavam com todos os matizes que estão entre o desprezo e a comiseração. Éramos como “intocáveis”, marcados talvez por uma culpa gravíssima para termos sido condenados a tal vida, reduzidos àquela condição, quase como animais, batidos todos os dias, cada dia mais abjectos aceitando sem nos rebelarmos, sem um olhar de esperança, de paz, ou de rebelião.”

Lorenzo Perrone 

No livro, Primo Levi refere Lorenzo Perrone (3), o pedreiro piemontês, que trabalhou na expansão do campo de Auschwitz, em 1944, e que o ajudou a querer viver.
Primo Levi
“Lorenzo era um homem; a sua humanidade era pura e incontaminada, ele estava fora do mundo de negação em que vivia. Graças a Lorenzo consegui nunca esquecer que eu próprio era humano também.”
Castelo de Fossano

Lorenzo Perrone nasceu em Fossano, em 1904, e ali morre em 1952, alcoolizado, incapaz de "lidar" com o traumatismo do que viu em Auschwitz.
Primo Levi com amigos, antes

Diz Grossman: "um simples operário italiano olhou para ele como se olha para um homem. Recusou-se a ignorar a sua humanidade,   a colaborar com aqueles que queriam apagá-la e, fazendo-o, salvou-lhe a vida. Quão simples e grandioso foi este seu comportamento. Penso na força de um olhar benévolo na vida de uma pessoa. Não só nas circunstâncias da loucura extrema de Auschwitz mas na vida normal de todos os dias.”
Um olhar, um sorriso acolhedor, podem salvar quem se encontra numa situação difícil ou, mesmo, desesperada. Lembra a situação trágica dos migrantes no mundo de hoje. “Este livro ensina-nos a maneira não só de observar a vida como a vivê-la.”

Grossman acaba quase por nos convidar a seguirmos o exemplo de Lorenzo quando olhamos as tragédias dos deserdados de hoje. Olhar bem nos olhos pelo menos um desses refugiados é quase uma obrigação nossa.


Nesta Europa que se fecha, que põe muros e redes de arame farpado ou não, ou que ignora, desvia o olhar, na indiferença mais completa, criticando-os, cinicamente.
“Que voltem para a terra deles, eu não tenho nada com isso!”

Todos somos humanos e temos que ver com o que é humano. “Nada do que é humano me é indiferente” - ou "alheio" - já o dizia Terêncio, que pensava na humanidade "humana".
Não esqueçam: basta um olhar. Um gesto. Pouca coisa, afinal…


***

   NOTAS: 
  PRIMO LEVI: Nascido em Turim em 31 de Julho de 1919,  morrre, suicida, em 11 de Abril de 1987.
  Licenciado em Química, participou na Resistência. Em 13 de Dezembro de 1943, é preso e mandado para o campo de Fossoli. Em 22 de Fevereiro de 1944, com mais 650 judeus, é internado em Auschwitz. 

(1)David Grossman, escritor israelita que ganhou no ano passado, em Génova, o Prémio Internacional de Literatura Primo Levi, artigo em La Repubblica de 6 de Novembro 2017. O seu último livro “A Horse walks into a Bar: a novel" saiu em 2017. Muitos livros escreveu. Ensaios. estudos políticos e sociais. 
    Gostei muito dos livros "The Zigzag kid" e "Procurar na letra amor"...

  (3) Lorenzo Perrone nasceu em Fossano, em 1904, e morreu alcoolizado porque nunca conseguiu ultrapassar o traumatismo que foi assistir à brutalidade de Auschwitz. Ali se encontrara em 1944 com Primo Levi.
  Primo Levi sobrevive ao campo de Auschwitz e, depois  da libertação do campo, vai procurar Lorenzo. Encontra-o. Contactam. Tenta ajudá-lo sem conseguir evitar a sua morte. Lorenzo morre em 1952.
Primo Levi, com Roth, em 1986, um ano antes do suicídio

  Mais tarde,em 1987, o "sobrevivente" Primo Levi, 'vítima retardada da detenção num campo de extermínio', suicida-se na casa de Turim, a cidade onde nascera em 1919.


***
    O LIVRO:
   Depois de recusado por várias casas editoras entre as quais a Einaudi, "Se questo è un uomo" é publicado pela pequena casa editora De Silva, em 1947. Tem pouco sucesso. Só muito mais tarde, nos anos cinquenta, é "descoberto"...

4 comentários:

  1. Maria João,
    Sim, Primo Levi é um nome a fixar e um autor a ler.
    Dos vários livros que possuo dele, inclusive "O Sistema Periódico", apenas li "Se isto é um homem".
    Bom fim-de-semana.:)

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  2. Todos valem a pena! Era um homem sensível e inteligente... Também li outro " Se non ora quando?" (Se não for agora, quando)
    Beijinhos

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  3. Parece ser que o suicídio não esteve relacionado com a sua passagem por Monowitz, mas nunca se sabe. Medo ao sofrimento e a envelhecer? Detrás do medo há razões que a razão desconhece...

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    1. Há alguma controvérsia sobre o assunto claro. Ele teve várias depressões, tudo podia ser possível. Quando moorreu, Elie Wiesel disse: "The Nobel laureate and Holocaust survivor Elie Wiesel said, at the time, "Primo Levi died at Auschwitz forty years later".
      Suponho que um pouco disso aconteceu. Monowitz era um dos sub-campos de Auschwitz e, como sobrevivente, tinha um grande sentimento de culpa por ter ficado vivo. O pai da minha aminha Susie Heffez (que esteve em Auschwitz 2 anos) suicidou-se poucos anos depois de voltar à Polónia. Era médico e sentia-se culpado por ser um sobrevivente...

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