O Ratinho e o Ouricinho descobriram um novo amigo. Amigo propriamente não sei, mas que é um grande
conversador, isso sim. Está sempre a falar. Mete conversa com toda a
gente. Até com o Ganesh que veio há
uns tempos da Índia, na bagagem da Gui – esse, pelo contrário, silencioso, perfeito
contemplador, em meditação constante– pobre deus Ganesh nunca mais teve sossego.
O
sapinho Jaba não se cala nunca e tem uma opinião definitiva sobre todas as
coisas. Nunca duvida de si próprio. Costuma dizer aos novos amigos:
E troca a perna para o outro lado, a fingir que está a pensar.
-
Mas só falas de ti! O resto não te interessa!
O
Ouricinho Dan perde a paciência com
ele a toda a hora.
O
Ratinho, diplomático, verdadeiro filósofo, cala-se, observa-o e
ainda não o “catalogou”.
Costuma
dizer que ele não cataloga ninguém e
que “cada pessoa é várias coisas ao mesmo
tempo e que temos de entrar na pele dos outros para verdadeiramente os entender”.
Bem,
isto é o que costumava dizer, agora está hesitante. E reflecte sobre o que há-de dizer.
Para
o Ouricinho, o sapo doutor está definido:
-
É um convencido e um prepotente. E um narcisista para além disso. Se reparares,
Jana, ele só fala dele e das qualidades dele! Ali está, sem fazer nenhum, a dar graxa ao Ganesh.
Eu
levantei os olhos do livro, mas não respondi, preferia ouvi-los.
O
Ouricinho continuou:
-
E é um aldrabão. Há dias, trouxe um peixe da rua e disse que o tinha pescado na
praia da Azarujinha. Ora ali nunca vi
ninguém pescar nada.
O
Ratinho coçou o nariz e disse:
-
Ainda não formei uma opinião sobre o Jaba. Mas sobre o peixe tens razão, era mentira. Não pescou nada. Até porque o
peixe era de chocolate!
Eu
ri-me a bom rir porque aquele peixe fazia parte duma caixinha de “sardinhas de chocolate”
que comprei na Ericeira.
-
Grande mentiroso! Quer ser sempre melhor do que os outros.
O Ouricinho protestava mas o Ratinho, pensativo, só disse:
-
Quanto a mim, ele é um hedonista.
-
Um quê? O que é isso de hedonista?
O
Ouricinho é uma alma simples e sensível mas gosta das coisas claras. É um
espírito pragmático mas com muito de poeta, ele também. Só que não escreve
versos como o Ratinho.
O
Ratinho encostou-se à parece e começou a explicar. Quando explica, o Ratinho
faz-se entender, isso é verdade. Porque lê muito e concentrado na leitura.
-
Vou ser o mais claro possível. Refiro-me à palavra hedonista, ou hedonismo –
que foi uma filosofia, na Grécia antiga que segue a procura do próprio “prazer”.
Porque “hedonikus” quer dizer “prazer” em grego. Também lhe chamam “epicurismo”
porque….
-
E o epicurismo o que é? Fico na mesma. Ó Ratinho, és demasiado intelectual. Despacha-te...
-
Vem do nome de Epicuro - um filósofo grego que defendia essa filosofia. E
gostava de viver e de ter amigos.
-
Ah! E como sabes tu essas coisas e eu não sei?, interrompe o Ouricinho.
A
Gatinha não respondeu. Era amiga do Ouricinho e não queria que julgassem que era “inculto”, mas o Ratinho apressou-se:
E
riu-se com as gargalhadinhas irónicas dele. Era uma ironia boa que não
magoava ninguém. O Ouricinho encolheu os ombros:
-
Pois é, tu és um preguiçoso! O "epicurismo" é um pouco diferente, continuou o
Ratinho, pretende ser um aperfeiçoamento do hedonismo. Não se deve pensar
apenas no prazer mas sim na “ausência de dor”. Defender a tranquilidade, a serenidade
de espírito.
-Ah,
então eu sou um epicurista, um optimista. Gosto tanto de viver.
O
Ratinho olhou em redor e viu o Jaba, que se tinha aproximado devagar e
estava caladinho, lá ao fundo, deitado na toalha de praia. Costumava dizer: “Eu
sou um solar!”
-
O epicurismo também se aproxima da escola Cirenaica de Aristipo e de Demócrito.
Aristipo de Cirene
-
Eu sei!, disse a Gatinha japonesa. Esse filósofo Demócrito era muito feio e gordo! Vi uma
fotografia no livro de História. Dizia uma coisa divertida sobre a felicidade!
-
Ataraxia?! Nunca ouvi.
O
Ouricinho estava interessado, tinham despertado a sua inesgotável curiosidade
sobre as coisas da vida.
-
Ouviste, sim. Lembras-te de termos lido aquele poeta que tinha muitos nomes?
Desta
vez a Gatinha metia-se a sério na conversa e perdera a timidez.
-
Eu sei! Era o Pessoa! Gostava era de não fazer nada, estar a olhar para a água, e com
flores nas mãos, a namorar…
O
Ouricinho desta vez sabia a resposta. Insistiu ainda:
- Como o Jaba, com rosas!
Ficou feliz quando o Ratinho disse:
- Como o Jaba, com rosas!
Ficou feliz quando o Ratinho disse:
-
Bravo! É isso: a ausência de inquietação e de preocupações. É ter tranquilidade
de espírito.
De
repente, o Ratinho voltou-se par a o sapinho Jaba e perguntou:
Ele
atrapalhou-se porque julgava que não tinham reparado que estava a ouvi-los.
-
Bem, estou a ouvir-vos indagar sobre essas palavras estranhas que não pertencem
à minha filosofia, nem aos verdadeiros problemas da vida.
Abanou
a cabeça, com um ar sabido e exclamou:
Pegou
na toalha, virou-lhes as costas e foi falar com o Ganesh que ouvia as suas tagarelices sem responder. Muito
provavelmente sem o ouvia.
Os
outros amigos ficaram a vê-lo ir embora. O Ouricinho estava espantado:
-
Os problemas da vida?
-
Sim. É a verdade, foi o que todos eles procuravam: o sentido para a curta vida
que vivemos. Como escreveu Bécquer:
“Ao
brilhar o relâmpago nascemos,
e
ainda o fulgor dura
quando
morremos!
Tão
curto é o tempo de viver.”
O
Ouricinho bateu palmas:
-
Muito bem, lindo poema. Não sei quem é o Bécquer, mas gostei.
-
Gustavo Bécquer…Hum…
O
Ratinho continuou sem se deixar interromper com a ‘saída’ do Jaba, mas hesitava
como se tivesse perdido o fio ao discurso.
O
Ouricinho disse-lhe:
-
Era sobre o hedonismo e o tal Epicuro!
-
Esse Epicuro não era aquele que dizia que um grupo de amigos fiéis podia mudar
o mundo e serem felizes?
Surpreendidos,
olharam os dois para a Gatinha japonesa. Eu intrometi-me, a corrigir a frase.
-
A frase não é bem assim mas o sentido pode ser.
E
citei a frase completa de Epicuro que é bem bonita.
“A amizade dança em volta do mundo, dizendo a
todos que acordemos para a felicidade.”
-
Mas o que tem o Jaba a ver com isto? Não quis falar com vocês sobre o
epicurismo?
-
Não!, disseram em coro os três. Ele não quer nada a sério!
- Ele quer é viver a boa vida! E anda a ver se te afastas de nós, julgas que eu não percebi?
Era o Ouricinho indignado. O Jaba fingia não ouvir.
Era o Ouricinho indignado. O Jaba fingia não ouvir.
- Eu posso ser apenas um aprendiz de feiticeiro, mas sei quando me querem roubar o lugar. Está sempre atrás da Jana.
Hedonista o Jaba? Talvez. Interesseiro, também. Creio que anda a querer ocupar o lugar deles junto de mim. De facto, todas as manhãs, vai ao pé de mim e encosta-se à chávena, ver-me tomar café. E gosta muito porque eu tenho uma chávena de cores diferentes todos os dias.
- Que lindas cores têm as tuas chaveninhas.
O Jaba é um divertido e leva a vida a brincar. Deitado, seja onde for, de perna cruzada e braços detrás da cabeça, é o símbolo vivo da "quieta vita" e da inconsciência do futuro. Disse ao Ouricinho:
- Não tenhas medo, ninguém roubará nunca o teu lugar!
E acrescentei para o Ratinho também:
- E só vocês é que irão ao Caffè Degli Specchi de Trieste comigo!
Riram-se, talvez mais aliviados.
O Jaba é um divertido e leva a vida a brincar. Deitado, seja onde for, de perna cruzada e braços detrás da cabeça, é o símbolo vivo da "quieta vita" e da inconsciência do futuro. Disse ao Ouricinho:
- Não tenhas medo, ninguém roubará nunca o teu lugar!
E acrescentei para o Ratinho também:
- E só vocês é que irão ao Caffè Degli Specchi de Trieste comigo!
Riram-se, talvez mais aliviados.
Agora lá está ele a olhar para o Ganesh - enfeitado com colares ao pescoço – e o Jaba parece dizer “Meditemos, gente, meditemos.”
Com
o ar de que será essa a última coisa que ele fará.
Bem disposto, alegre, tem na mão a
felicidade de viver facilmente a vida – o que é um segredo difícil de aprender.
Deixo-os
a falar sobre o Epicuro e vou até à varanda! Dá-me muito que pensar esta
varanda.
Há
uns ‘migrantes’ que se querem instalar a pôr ovos e criar filhos: os pombos de
todas as primaveras. E eu, que me preocupo com os ‘migrantes’ escorraçados do
mundo, contradigo-me, a pôr obstáculos a que os pombos venham fazer o ninho nos
vasos!
Que
paradoxo que nós somos: os seres humanos!
Adoro estas conversas!!
ResponderEliminarEste Jaba é um cómico! A pescar peixes...de chocolate!! Isto promete!
Já me ri com estes diálogos. Eles são tão giros, e a Maria João tem o dom de lhes "dar vida"!
A imagem nova do blogue é lindíssima!
Beijinhos e um bom fim-de-semana:)
Querida Isabel, tu és uma das pessoas que me empurram para escrever! Estas histórias dos "amigos" são sempre a pensar em ti, fica sabendo. Ando pouco motivada para escrever, no entanto é aquilo que mais gosto de fazer. paradoxos...
EliminarUm grade beijo, amiga do coração, fiel como uma rocha!
Muito obrigada:)))))
EliminarE a Maria João pode crer que eu ADORO mesmo estes bonequinhos e estes diálogos, que contêm muita sabedoria.
Um beijinho grande cheio de saudades:) e escreva mais vezes. Já tinha saudades de um novo post:)
Bom fim-de-semana:)
Uma boa radiografia de alguns rasgos das pessoas, tão diferentes umas das outras como o Ratinho do Jaba ( para mim o mais expressivo ...).
ResponderEliminarOutro conceito de felicidade de que gosto é de Camus: "simplesmente a harmonia entre o homem e a vida que leva".
Beijotes
...as flores da varanda estão muito bonitas!
ResponderEliminarBeijinhos:)
Um encanto, uma ternura e um deleite...
ResponderEliminarAgradeço estes momentos de leitura extraordinários!
Beijinhos, MJ.
~~~~
Boa tarde Maria João
ResponderEliminarEssas aventuras dão um maravilhoso livro. E se não der, sortudos nós que nos deliciamos com elas ;)
Beijinhos desde o Alentejo de uma Carlota e um SolPerdido
Muito obrigada aos dois alentejanos amigos!
EliminarSe a Maria João não anda motivada e mesmo assim escreve estas histórias maravilhosas que nos encantam; imagino o que escreveria se estivesse motivada...
ResponderEliminarQuanta imaginação, humor, beleza...
Um beijinho especial.:))
Querida Cláudia, vocês é que me animam!Bem, e estes "amiguinhos", como lhes chama a Isabel, também. Beijinhos
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