“Dádivas
do Mar”, de Anne Morrow Lindbergh, é como certos livros que ensinar escolhas, atitudes
e nos fazem companhia em momentos especiais.
Oferecera-mo,
anos antes, uma amiga, psicóloga, mas não me apeteceu ler nessa altura. Um dia,
num daqueles dias que o destino traz e para os quais nunca nos sentimos
preparados, adoeci. Foi
um momento de grande solidão comigo mesma - apesar de rodeada de amor e de
amigos.
Quando
abri o livro, deixei-me embalar pelo ritmo tranquilo das palavras que traziam
consolação mas sobretudo ajudava a um impulso, mudança de atitude,
interrogações e esperança. O encontro connosco, nos pequenos gestos, que nos
permitem continuar a querer ajudar outras pessoa.
O
livro tem uma capa de cores suaves, sobre o azul, em todas as traduções. Na edição portuguesa vemos um búzio em tons de azuis e prata e o brilho
das ondas. Foi publicado numa Editora só de mulheres, a Livros de Seda (*).
A
autora, Anne Morrow Lindbergh, foi mulher do conhecido aviador Charles
Lindbergh. Com ele participou em alguns voos - considerada ela própria uma pioneira
e uma heroína da aviação.
Anne e Charles Lindbergh
Quando
lembramos este casal, pensamos inevitavelmente no drama que os atingiu: o primeiro filho ainda bebé foi raptado e depois tragicamente
assassinado. (**)
Charles Lindbergh
Anne Morrow nasce em 1906, em Englewood, é uma criança normal, com pais que lhe dão uma boa educação. Era filha de um senador americano e da poeta feminista, Elisabeth Cutter Morrow, que participou nas primeiras lutas feministas nos USA. Anne estuda, aplicadamente, e conclui o bacharelato em Artes. Anos mais tarde, receberá três doutoramentos ‘honoris causa’ em diversas universidades conceituadas.
Anne Morrow em 1918
Anne era uma mulher forte com certeza, mas o desaparecimento e a morte violenta do filho, golpe inexorável e inesperado, traz-lhe muita amargura e desorientação. Talvez pela escrita tenha recuperado um pouco o equilíbrio perdido.
***
Não é da vida dela que vou falar, mas sim do livro "Dádivas do Mar". Durante
a leitura senti o som constante do mar distante, companhia - na
recordação e pelas imagens que descreve.
Não
só “ouvimos” o mar como “vemos” os búzios e as conchas nacaradas de que fala, enquanto vai pensando.
Englewood
Ali, sente a necessidade de simplificar a vida e deixar para trás tudo o que é inútil. Cansada
da 'pressão' que existe nas cidades, no trabalho, na pressa com que se vive, na ausência de
um repouso nosso e do silêncio em que possamos ouvir a nossa
voz, pensar connosco.
Apanhar
um búzio, num dia de sol, com um céu e um mar brilhantes de azul e cor de
prata, ver as estrias, a cor rosada pode encher o dia. O nácar da concha e, lá dentro, uma escada de caracol
por onde ela espreita como se fosse a linha do seu pensamento.
E
no perder-se dentro de um búzio, sente que dá oportunidade a si própria de respirar e
viver de outro modo, lentamente, com tempo. Isso permite-lhe sossegar e parar, no presente. Como o movimento do mar, igual, a ondular, a chegada e partida das
marés, as ondas de encontro às rochas, ou desfazendo-se devagarinho na areia. Sem tempo. Sem pressa. Deixar correr a areia do búzio... a ouvir o mar.
“Na procura da harmonia interior,
essencialmente espiritual que possa traduzir-se numa harmonia exterior”,
escreve a autora.
“Há muitos modos de conseguir essa harmonia
interior e exterior”, explica. Lembra Sócrates, no Diálogo “Fedro”: "Fazei com que o interior e o exterior se harmonizem.”
Há vários caminhos a seguir. A simplificação é um deles.
Há vários caminhos a seguir. A simplificação é um deles.
Mas
a simplificação no dia a dia não é simples, reconhece. E queixa-se:
“Há as exigências familiares, nacionais,
internacionais, a preocupação de se ser um bom cidadão, há as pressões
socioculturais, jornais, revistas, rádio (e televisão!, acrescento eu), as campanhas políticas (…)”
É
uma vida não de simplicidade mas, sim, de ‘multiplicidade’. “Sinto vertigens com tanta pressão”.
Na vida do ser humano, sobretudo na da mulher, uma série de ‘distracções’ (chamemos-lhe assim) que “destroem a alma”, diz. E que a impedem de se encontrar, de estar bem consigo.
A
insatisfação constante, a vontade de fazer mais; de querer isto e aquilo; o
orgulho de se ter uma casa assim, ou assado, limpa, com belos objectos; há,
ainda, a hipocrisia (involuntária ou voluntária) das relações humanas. No
fundo, as armadilhas da modernidade.
Nas breves férias na casa da praia, sem objectos que a distraiam de si - a não ser as suas conchas,
entende que é possível viver sem o supérfluo, sem um especial conforto, como na
concha vazia de um búzio - em silêncio e concentrada no que é essencial para
viver. Trata-se
de uma longa meditação, sem dúvida.
É
um livro talvez mais dedicado à mulher que, apesar de igual do homem em
direitos e deveres (quando isso existe), tem de ir buscar em si, na solidão de um momento, de um dia, de uma semana – ou
apenas de uma hora – aquilo de que necessita para poder continuar a dar. E o equilíbrio.
E pode ser, apenas, a realização de pequenas coisas que cria; no pensamento que
divaga; na página que escreve; no livro que lê; no jardim que cuida; no arranjo das flores de uma
jarra.
A leitura, Berthe Morisot
Naquilo, enfim, que é essencial: onde vai buscar
novas forças: naquilo que é o encontro consigo, e que é uma dádiva a si mesma para
continuar a “dar”.
Todos
os momentos são diferentes e incomparáveis.
Não existe o incomparável tout court:
existem momentos únicos e incomparáveis.
E
a escritora continua na insistência da auto-observação, do auto-conhecimento - e
no conhecimento dos outros - através das conchas, da simplicidade e beleza
delas.
Conchas cheias de areia que deixa escorrer pelas mãos nuas e que, vazias, são perfeitas. Cada uma dessas conchas é símbolo de uma coisa diversa.
A concha da ostra e a pérola simbolizará o absoluto, dentro de nós, ironizo eu.
Conchas cheias de areia que deixa escorrer pelas mãos nuas e que, vazias, são perfeitas. Cada uma dessas conchas é símbolo de uma coisa diversa.
A
mente liberta-se, concentrada, por momentos, no que lhe parece essencial: viver
numa concha da qual pode sair.
O
tempo passa, então, mais lentamente, e ela prepara o regresso à casa, à cidade
barulhenta, à vida quotidiana. Traz consigo, porém, um conhecimento novo pois,
tendo aprendido a simplificação, trouxe com ela a vontade de buscar nas coisas
simples e essenciais a vida.
A simplificação da existência pode ajudar a uma
verdadeira compreensão da vida: procurar um trabalho sem pressão, ter um espaço
para si, conquistar um tempo para a necessária solidão consigo, para a beleza e
para a dádiva.
O livro que Anne Lindbergh escreve é uma conversa lúcida,
poética, bem escrita.
“No fundo, basta uma meia dúzia de conchas”
diz ela, "para se ter tudo". Para se ter paz, sobretudo, e poder compreender e amar.
(*)
“Dádivas do Mar”, de Anne Morrow Lindbergh, editora Livros de Seda, tradução de Luís Coimbra, 2007.
(**) Anne Morrow Lindbergh nasceu em 22 de Junho de 1906, em Englewood, no New Jersey (USA) e morreu em 7 de Fevereiro de 2001, em Vermont (USA)
(**) Anne Morrow Lindbergh nasceu em 22 de Junho de 1906, em Englewood, no New Jersey (USA) e morreu em 7 de Fevereiro de 2001, em Vermont (USA)
um Vermont outonal
(***) Sobre o aviador Charles Lindberg, Billy Wilder, em 1957, realiza o filme "A águia solitária", com James Stewart. E, em 1976, Buzz Kulik realiza "O caso do rapto do bebé Lindbergh", com Anthony Hopkins e Joseph Cotten.
Hoje em dia é quase impossível conseguir essa tranquilidade dos dias. Às vezes tenho uma vontade de me desfazer do que tenho e comprar uma pequena casa perto do mar. Mas depois vem o racional: e o dinheiro para viver? E a família?...O trabalho...enfim! Por isso sonho tanto com a aposentação, para encontrar a tranquilidade que se calhar nunca vou achar. Depois vêm as doenças...ah! A vida é complicada...ou nós é que a complicamos!
ResponderEliminarFiquei muito interessada em ler esse livro. Vou ver se o encontro.
Um beijinho grande e obrigada por mais um belo post que nos põe a pensar.
Já o encomendei no site Wook! :)
ResponderEliminarFoi uma uto-iniciação, não tenho dúvidas! Nada pode ser melhor na vida do qualquer ser!
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