"Lá no Água Grande", óleo de Armindo Lopes (1085)
As ilhas de São
Tomé e Príncipe voltam muitas vezes ao meu pensamento. Escrevi algumas pequenas crónicas de
recordações das maravilhas que vi, que senti, que vivi nessa terra
onde a afectividade era uma moeda de troca importante.
Vou
falar de Alda da Graça Espírito Santo, uma figura sagrada das Letras e da
Política da ilha. Nasceu em São Tomé, em 30 de Abril de 1926, e morreu em
Angola, em 9 de Março de 2010. Viveu grande parte da sua vida - e estudou- em
Portugal.
Passaram os 43 anos da independência de São Tomé e Príncipe. Quando, em 1975, o país
se torna independente, Alda Espírito Santo foi chamada a ocupar cargos muito importantes no
novo governo.
Alda Espírito Santo no CCP
Alda Espírito Santo e Manuel Poppe (Conselheiro Cultural da Embaixada de Portugal e Director do Centro Cultural Português)
Leio
os poemas “Lá no Água Grande”, ou “Descendo o meu Bairro” ou, ainda, “Em torno da
minha baía” e reencontro as minhas memórias misturadas com as gentes, com a
paisagem, com a realidade e com a vivência das mulheres que conheci, com quem privei e de quem fiquei amiga.
O
“Água Grande” era o rio que atravessava a cidade, dividindo-a ao meio. Água era o nome que se dava aos rios, em São Tomé.
Lembro outro rio: o “Água-Izé” (Rio dos camarões) que passava na roça do mesmo nome, onde havia
cultura de flores tropicais - que eram vendidas para todo o mundo: a ‘rosa de
porcelana’ - que tinha no meu quintal mas que nunca vira antes- é uma flor sem perfume com pétalas que parecem enceradas e com variados tons de rosa, e são invulgares.
o rio Água Grande (foto M.J.F, 1995)
Mas
o Água Grande era também o bairro
central da cidade capital, o local onde o comércio se desenvolvia, onde havia a
pequena livraria-papelaria e impressora, as lojas de panos, o barbeiro, a farmácia, os
alfaiates e as costureirinhas que estavam no largo do Mercado.
Foi na Rua Morta, ali muito perto, que
vivemos os primeiros meses de São Tomé. Na Rua Morta aprendi os
primeiros conhecimentos sobre as gentes, os lugares, o quotidiano da
gente da ilha. E foi na Rua Morta que comecei a ter amigos. A D. Alda -como era conhecida- vivia
não muito longe, no bairro da
Chácara.
ôssobô ou 'cuco esmeraldino'
O
rio fazia parte da vida, estava presente em cada canto, descendo lá do alto da
floresta, o ôbô misterioso, quase
sempre envolto nas brumas. Lá onde se escondia e onde cantava o pássaro mais
belo, o ôssobô.
No rio, as mulheres iam colher ervas, talvez mesmo as folhas de matabala que via rebentar, fortes, no leito do rio, entre as duas balaustradas que o protegiam das cheias.
Comi muita sopa de matabala porque não havia batata naqueles tempos. A matabala era um tubérculo essencial na alimentação básica de São Tomé e Príncipe, juntamente com a fruta-pão e os frutos das bananeiras de vários tipos que existiam ali. Como o nome diz, a banana-pão, fazia as vezes do alimento base que seria o pão.
No rio, as mulheres iam colher ervas, talvez mesmo as folhas de matabala que via rebentar, fortes, no leito do rio, entre as duas balaustradas que o protegiam das cheias.
Comi muita sopa de matabala porque não havia batata naqueles tempos. A matabala era um tubérculo essencial na alimentação básica de São Tomé e Príncipe, juntamente com a fruta-pão e os frutos das bananeiras de vários tipos que existiam ali. Como o nome diz, a banana-pão, fazia as vezes do alimento base que seria o pão.
o "Água Grande" ( no blog Viagens-outras terras)
O Água
Grande ficou na minha memória marcado pela beleza do desenho, da força e da
cor das águas na estação das chuvas, no Outono que é o da secura dos meses da Gravana (de Maio a Agosto), em que se viam seixos como na
praia.
A caminho do aeroporto e do Ilhéu das Cabras, perto das zonas pantanosas, havia porções vastas de “água”, ou braços do rio, onde as mulheres iam lavar a roupa, colorida ou muito branca, “bate que bate” como diz a poesia.
A caminho do aeroporto e do Ilhéu das Cabras, perto das zonas pantanosas, havia porções vastas de “água”, ou braços do rio, onde as mulheres iam lavar a roupa, colorida ou muito branca, “bate que bate” como diz a poesia.
Encantou-me
sempre a vida que corria ali em volta, a miudagem que ia e vinha da escola
ou ia para o Liceu.
Um dos primeiros poemas de Alda Espírito Santo, e que a tornou famosa, na ilha,
intitula-se “Lá no Água Grande”.
“Lá
no ‘Água Grande’ a caminho da roça
Negritas
batem que batem co’a roupa na pedra.
Batem
e cantam modinhas da terra.
Cantam
e riem em riso de mofa,
Histórias
contadas, arrastadas pelo vento.
Riem
alto de rijo, coma roupa na pedra
E
põem de branco a roupa lavada.
As
crianças brincam e a água canta.
Brincam,
na água felizes…
Velam
no capim um negrito pequenino.
E
os gemidos cantados das negritas lá do rio
Ficam
mudos na hora do regresso…
E
outros poemas se seguem, muito perto da realidade onde agora vive, poemas ‘essenciais’,
simples e de grande beleza e ritmo. E cada vez mais profundamente a poetisa se
entranha na sua terra. Como no poema “Angolares”.
“Canoa
frágil, à beira da praia,
Panos
presos na cintura,
Uma
vela a flutuar…
Calema,
mar em fora
Canoa
flutuando por sobre as procela das águas,
Lá
vai o barquinho da fome.
Rostos
duros de angolares
Na
luta com o gandú
por
sobre as procela das águas,
remando,
remando
no
mar dos tubarões
p’la
fome de cada dia
(…)
A
canoa é vida
A
praia é extensa
Areal,
areal sem fim.
Nas
canoas amarradas
Aos
coqueiros da praia.
O
mar é vida.
(...)
E
o angolar na faina do mar,
Tem
a orla da praia,
As
cubatas de quissandas,
As
gibas pestilentas,
Alda
Espírito Santo vivera muitos anos em Portugal, onde estudara até chegar à
Universidade, fora educada na cultura ocidental. Ao regressar a São Tomé,
talvez tivesse sentido –dolorosamente - que essa cultura onde vivera antes
podia tê-la afastado do seu povo.
Temia
que alguns dos que considerava como “seus” pretendessem afastá-la, considerando-a “do outro lado da canoa”; receava que a sua gente
a julgasse distante, pertencendo a outro mundo, a outro núcleo.
Um
dia escreve o poema “No mesmo lado da canoa” em que diz: “Queremos unir nossas mãos milenárias,/p’los sonhos dos nossos filhos,/
para nos situarmos todos do mesmo lado da canoa.” Ela quer pertencer à
mesma realidade, pertencer-lhes!
“(…)
Nós queremos ainda uma coisa mais bela
Queremos
unir nossas mãos milenárias,
Das
docas. Dos guindastes
Das
roças, das praias,
Numa
liga grande, comprida,
Dum
pólo a outro da terra,
P’los
sonhos dos nossos filhos,
Para
nos situarmos todos do mesmo lado da canoa.”
Imagino-a agora, como nesses tempos, sentada
no sofá da nossa casa nova, casa branca e pintada com uma risca azul junto ao
chão, rodeada do belo jardim que o Senhor Semedo, nosso jardineiro e guarda, criou para nós, com as flores mais
maravilhosas e mais desconhecidas. Flores do paraíso, pensei na altura.
Ela de olhos bem abertos, a ver tudo, e eu ao lado dela – e o meu cão Zac chegadinho a mim, do outro lado, encostado ao
espaldar do sofá. Eu ouvia-a com atenção, queria compreender tudo o que ela me contava
e eu ignorava. Queria fazer-lhe companhia, estar perto dela.
Vinha
almoçar a nossa casa, nesses tempos, algumas vezes, o Bispo de São Tomé, Dom Abílio
Ribas, personagem curiosa, natural do Minho e de quem o meu cão gostava. De
facto, durante os almoços, ia arranhar a batina branca do bispo para ele lhe
dar pedacinhos do almoço. O bispo dava-lhe, disfarçadamente, até que um dia eu
descobri. O que não serviu para nada pois tudo continuo na mesma.
A
D. Alda e Dom Abílio Ribas entendiam-se, eram os dois pessoas inteligentes que
bastante compreendiam da dureza da vida. A humanidade unia-os.
Com
o copo de gin na mão – bebia sempre dois gins
tónicos- ela observava tudo com os seus olhos vivos. Curiosidade atenta.
Mais tarde essa atenção curiosa transformou-se em confiança e depois em amizade.
Um dia, muito mais tarde, ofereceu-me um trabalho delicado feito sobre cartão negro, com um vaso, ramos e folhas pintados em branco e duas rosas de porcelana, feitas com escamas de peixe, envernizadas de cor de rosa, que guardo em penhor dessa amizade.
Confesso que só mais tarde conheci a sua poesia. E descobri versos com uma força anímica invulgar, cortados com uma grande nostalgia que me emocionaram e emocionam.
Um dia, muito mais tarde, ofereceu-me um trabalho delicado feito sobre cartão negro, com um vaso, ramos e folhas pintados em branco e duas rosas de porcelana, feitas com escamas de peixe, envernizadas de cor de rosa, que guardo em penhor dessa amizade.
Confesso que só mais tarde conheci a sua poesia. E descobri versos com uma força anímica invulgar, cortados com uma grande nostalgia que me emocionaram e emocionam.
O
olhar e o sorriso eram doces, o riso podia ser alegre, mas sabia que a realidade se revelava muitas vezes amarga e dura. Sentira-o na pele, quando estudante universitária em
Lisboa, fora presa pela PIDE. Queria agora identificar-se com a sua gente.
“Eu
vou descendo a Chácara
Subir
depois pelos coqueiros do pântano
Ao
coração do Riboque (…)
E
vou subindo dum lado e do outro da estrada barrenta
Com
gente sentada nos caminhos,
Vendendo
cana, azeite, micócó,
Com
uma candeia acesa em cada porta.”
Na
subida do Riboque, vivia o Osvaldo com a sua lojinha onde trabalhava a casca da
tartaruga, como se fosse um ourives. Das suas mãos saíam os trabalhos mais
delicados: brincos, colares, pulseiras, caixinhas de todos os formatos e
tamanhos.
Na
ilha, muita gente vivia desses trabalhos artísticos em tartaruga, casca de coco,
osso, madeira.
A vida era dura e tudo era um modo de sobreviver, comer e dar comida à família, quando se não é pescador. A carne da tartaruga comia-se sim, mas, sobretudo, vendia-se.
Nesses tempos não era proibido apanhar tartarugas.
Ainda comi “calulu” onde, com outros peixes fumados e muitas ervas, se misturavam bocadinhos de tartaruga. Como isso vai longe! Numa estrada, como a fotografia que pus, algures era a minha casa hoje desfigurada.
A vida era dura e tudo era um modo de sobreviver, comer e dar comida à família, quando se não é pescador. A carne da tartaruga comia-se sim, mas, sobretudo, vendia-se.
Nesses tempos não era proibido apanhar tartarugas.
fotografia de Ana Paula Menezes Cordeiro
Ainda comi “calulu” onde, com outros peixes fumados e muitas ervas, se misturavam bocadinhos de tartaruga. Como isso vai longe! Numa estrada, como a fotografia que pus, algures era a minha casa hoje desfigurada.
"À beira do cais da minha baía" fotografia de Ana Paula Menezes Cordeiro
Volto a pensar na baía de Ana Chaves que era o meu encanto, na sua eterna beleza e placidez. E peço emprestadas as fotografias de uma amiga, a Ana Paula, que mas enviou .
fotografia de Ana Paula Menezes Cordeiro
Um dia escrevi: "A baía de Ana Chaves, plácida, de águas
brancas, cinzentas ou azul-turquesa, eternamente bela, atraía-me o olhar e fazia-me esquecer a distância, o abandono.
Ia
admirá-la, ao entardecer, perto da Igrejinha que funcionava como o Arquivo
Histórico. Ao lado, uma acácia rubra, de flores quase mágicas, para mim, que as
via pela primeira vez. Em frente de nós, o sol descia, rápido, no horizonte,
rubro como as flores da acácia, e desaparecia a arder no mar."
Baía de Ana Chaves, fotografia de Ana Paula Menezes Cordeiro
E posso imaginar bem a figura da poetisa, à beira do cais da baía, a sonhar o seu "sonho"...
“Aqui
na areia,
sentada
à beira do cais da minha baía,
do
cais simbólico, dos fardos,
das
malas e da chuva
caindo
em torrente
sobre
o cais desmantelado,
Caindo
em ruínas,
eu
queria ver a volta de mim
nesta
hora morna do entardecer
no
mormaço tropical,
desta
terra de África
à
beira do cais a desfazer-se em ruínas,
abrigados
por um toldo movediço
uma
legião de cabecinhas pequenas,
à roda de mim,
num
voo magistral, em torno do mundo
desenhando
na areia
a
senda de todos os destinos
pintando
na grande tela da vida
uma
história bela
para
os homens de todas as terras
ciciando,
em coro, canções melodiosas
numa
toada universal
num
cortejo gigante de humana poesia
na
mais bela das lições:
HUMANIDADE.”
Nesse
desejo de união da especificidade humana de que falou Marcelo da Veiga, outro
grande poeta do Príncipe que viveu também muitos anos em Portugal, e que “aceitava
que a cor da pele pode dar outro tom `sua poesia, que compreenda a especificidade
humana: “a procura do homem total, que
conheça e domine a sua essência múltipla de africano negro.”
E com o sonho de ambos de Humanidade, de Paz, Igualdade e Liberdade me identifico.
o voo do ôssobô
E com o sonho de ambos de Humanidade, de Paz, Igualdade e Liberdade me identifico.
Neste apontamento, baseei-me
nas poesias e informações que recolhi no livro “Antologias de Poesia da Casa
dos Estudantes do Império 1951-1963”, organizada por um grupo de poetas e
estudiosos e que sai em 1994, na editora ACEI (****).
(*) Água Grande ou “Rio
grande” porque a palavra água significa também "rio", em São Tomé.
(**) Outros locais a
que dá vida nos poemas: “Descendo o meu Bairro” trata-se do bairro popular do Riboque) e “Em torno da minha baía” (a Baía de Ana Chaves).
(***) Marcelo da
Veiga nasceu no Príncipe (1892-1976) e morreu em Lisboa. É o autor do belo
livro “Canto do Ôssobô” (edições ALAC, 1989, Amadora)
(****) “Antologias de Poesia da Casa dos Estudantes do Império
1951-1963”, I Volume, “Angola e São Tomé e Príncipe”, Edição
ACEI, 1995. A finalidade era: “preservar
e difundir o legado cívico e cultural da CEI”, segundo refere a Associação da
Casa dos Estudantes do Império, fundada em 1992”.
Tenho postado sobre Alda Lara, também poetisa da Casa dos Estudantes do Império, mas desconhecia Alda do Espírito Santo.
ResponderEliminarGrata pela envolvente e interessante leitura.
Beijinhos.
~~~
Adorei ler estas memórias, que nos transportam até aos locais/às pessoas, onde nunca estivemos/nunca conhecemos, e que passamos a conhecer.
ResponderEliminarEstou sempre ansiosamente à espera que apareça mais um post no "Falcão de Jade"!
Um beijinho e um bom e tranquilo fim-de-semana:)
MJ,
ResponderEliminarA sua amiga tinha uns olhos tão bonitos e expressivos. Gostei muito de ler estas memórias. Apreciei bastante a pintura escultura de Nezó, é intensa.
Devem ter sido uns anos fantásticos tão diferentes de Itália...
Beijinhos.:))
Amei ler, amei saber sobre Alda do Espírito Santo, sobre o rio que atravessa a cidade, amei saber sobre as comidas típicas...
ResponderEliminarAmei ler isso,são nossas identidades nós como Áfricanos.
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