O Ratinho arranjou uma namorada! O que veio criar uma série de problemas aqui em casa. Desde
o Natal que as relações andam tensas. Os amigos andam desavindos! Perdeu-se um pouco da intimidade antiga, sobretudo entre o Ouricinho e o Ratinho, até agora, inseparáveis.
A
verdade é que tudo começou quando o Ratinho se enamorou da bela “menina das
renas” que chegou com o Pai Natal que vem sempre enfeitar a árvore com a sua presença e com uns balões especiais- mas que, desta
vez, veio acompanhado por uma bela nórdica, de tranças, e com botas e vestidinho branco.
Suponho que quis visitar um país de sol, com céu azul mesmo de Inverno, de que se fala tanto hoje pela Europa. Curiosidade claro e vontade de viajar.
- Apanhou a boleia do Pai Natal, no carro das renas, dizia o Ouricinho quando ela chegou.
- Apanhou a boleia do Pai Natal, no carro das renas, dizia o Ouricinho quando ela chegou.
De início andava
espantada. Gostava muito de ir à varanda ver as flores e espreitar o céu azul.
Primeiro todos se interessaram pela novidade da brincadeira: uma menina estrangeira que falava uma língua musical e ao mesmo tempo 'bárbara', estranha.
Acabaram por encontrar outra língua meio inventada em que todos se
entendiam – confesso que não sei qual foi – e houve grandes festas à volta da
árvore toda bem arranjada e dos bolos bons.
O
Ratinho, geralmente tímido e pouco dado a manifestações amorosas, agarrado aos livros e a investigar coisas na internet, desta vez
surpreendeu-nos com esta sua paixão.
Parecia fascinado com a diáfana criaturinha! Talvez pela brancura da
sua pele, as tranças loiras e a delicadeza do seu falar “cantado”, na tal
língua que não percebíamos.
Às vezes o Cão Brown ia com eles porque não sabia o que fazer e andavam todos zangados e ninguém lhe ligava.
Às vezes o Cão Brown ia com eles porque não sabia o que fazer e andavam todos zangados e ninguém lhe ligava.
Sentavam-se
aqui, passeavam ali, e sempre numa conversa pegada. Quanto a mim, era o Ratinho
que falava e ela ouvia. Ouviria? Se nem falavam a mesma língua...
Quem
não gostou da história foi o Ouricinho! Sentiu-se colocado de lado e ficou magoado
por ver o amigo afastar-se, isolar-se com a menina, sem o chamar e sem lhe dizer nada.
E,
sobretudo, sem se preocupar com os sinais que ele lhe fazia, a chamá-lo.
O
Ratinho parecia envolvido numa atmosfera de algodão fofo – devia pensar que andava
nas neves da Estónia. Com passarinhos e coisas assim, muito romantismo.
Pelo menos foi o que o Ouricinho, depois de os ter observado um momento, lhe perguntou, num tom sarcástico:
Pelo menos foi o que o Ouricinho, depois de os ter observado um momento, lhe perguntou, num tom sarcástico:
-
Ó Ratinho, estás nas nuvens ou estás nas neves? E a menina Alcina está a gostar?
E
foi rir às gargalhadas para a cozinha, com a Gatinha Japonesa e com o esquilinho - o novo amigo que veio de São Francisco e por aqui ficou. Chama-se Avelãzinha. Dão-se muito bem os dois. Possivelmente o Ouricinho até se queixou do Ratinho.
Fingia-se contente mas sentia-se que era falsa a alegria do Ouricinho e as suas gargalhadas pareciam sons de violino fininhos - tal era a tristeza que ele não a conseguia esconder. Inventava coisas para fazer com os outros dois, mas sem vontade nem entusiasmo.
Fingia-se contente mas sentia-se que era falsa a alegria do Ouricinho e as suas gargalhadas pareciam sons de violino fininhos - tal era a tristeza que ele não a conseguia esconder. Inventava coisas para fazer com os outros dois, mas sem vontade nem entusiasmo.
Brincou, por aqui e por ali, a fingir que não reparava nos namorados, mas
estava sempre a espreitar pelo canto do olho e ficava de olhos esbugalhados de
espanto. Não compreendia o interesse daquela conversa de namoro.
-
Que graça tem aquilo, Jana? Parecem dois parvos. Não falam connosco, não se
divertem. Onde está a alegria do Natal?
Tentei acalmá-lo:
-
Deixa lá Ouricinho, ele precisava de se apaixonar!
Eu continuei, sem saber por que o dizia:
-
O amor é assim...
-
Ridículo, assim? É isso que queres dizer?
- Não...
- Só de os ver fico mal disposto! às vezes vou espreitar.
- Só de os ver fico mal disposto! às vezes vou espreitar.
Virou-me
as costas e foi dar uma volta. Não voltei a falar com ele. Tinha muito que
fazer, a Gui e o Diogo estavam cá e não me apetecia perder tempo a preocupar-me com os ciúmes do
Ouricinho ou com o namoro do Ratinho. Não sabia por onde eles andavam, nem queria saber.
O
Natal passou, tudo voltou ao normal. Havia menos brincadeiras e tudo parecia
sossegado.
E
o Ratinho?, perguntarão os que estão a ler esta história. Pois a verdade é que, um dia, perto já do Dia dos Reis, apareceu ao meu lado e puxou-me pela manga do casaco:
-
Jana, ouves?
-
O quê, Ratinho? Não disseste nada...
-
Estou aborrecido.Tenho saudades das brincadeiras e das aventuras com o Ouricinho! O que a gente inventava!
Sim, eu lembrava-me bem das malandrices deles. Tudo lhes servia par brincar: as caixinhas, os colares, as espreitadelas para a rua a ver quem passava ou se ia chover...
Encolheu os ombros, desinteressado.
-
Não sei. E sabes?, não me interessa. Ela não tem graça nenhuma. Está sempre para ali
parada, de mãos no colo, sem dizer nada e a olhar para mim.
-
E isso não é bom? É o que fazem as namoradas, acho eu.
Ia
pensando: “Farão isso? Como serão as
namoradas hoje?” Concluí que as coisas nunca mudam, digam o que disserem os
que acham que foi sempre melhor antes. A natureza humana não muda, mudam sim os
“costumes” mas vai tudo dar ao mesmo...
-
Não sei, nunca tive uma namorada antes. Ela não parece contente, tem sempre a mesma
cara. Não se ri das minhas graças.
-
Ó Ratinho, nem todas as pessoas são iguais e se calhar ela não te entende bem,
não percebe as tuas graças.
A
verdade é que, por vezes, o Ratinho não tem graça nenhuma, porque ele gosta é de falar
a sério. E nisso é que ele é bom e sedutor...
-
E agora o que fazem os dois?
Olhou
para mim e disse, com o seu ar sério:
-
Nada. Não fazemos nada. Eu vou brincar com o Ouricinho e ela se quiser também
pode vir. Vamos fazer viagens!
-
Pode ir? Quer dizer que tu deixas que ela brinque?
-
Claro.
-
É livre de escolher o que quiser?
-
Claro! Deixei-a sempre escolher, mas ela não escolhia nada. Vou ter com os outros. Ela se quiser vir, vem.
E
afastou-se.
O
Ratinho estava a ser sincero. Queria voltar para os amigos e ela podia
acompanhá-los. E ela quereria? Não sei por que me pus a pensar nestas coisas
todas, a tentar racionalizar o que não tem razão de o ser. Eles é que sabem o que sentem, como sentem e os sentimentos não são nunca iguais nuns e noutros.
Comecei a arrumar uns papéis, na sala desarrumada e no sofá - como é meu costume quando tenho tanto para fazer que nem
sei por onde hei-de começar. De passagem, entrei no quarto. Qual não foi o meu espanto
quando os vi todos a brincarem e a rirem-se. Mas... divertidíssimos!
Todos! O Ouricinho, claro, era o centro da festa mais o Ratinho, e até andavam com a menina Alcina a viajarem dentro de um saco de viagem!
Agora
que são amigos, os três mais a Gatinha e o Brown, decidiram fazer viagens imaginárias metidos no saco vermelho a fingir de barco. Ora vai a conduzir o Cão, ora vai o Ratinho. O Ouricinho debruça-se e quase cai. As meninas vão caladas a ver tudo.
Ou, então, descansam e vão pôr-se à janela a ver quem passa e a falar do tempo que muda todo os dias...
Ou, então, descansam e vão pôr-se à janela a ver quem passa e a falar do tempo que muda todo os dias...
-
Parece Londres que, segundo contam, tem no mesmo dia as quatro estações!, disse o Ratinho.
Ninguém discordou, o Ratinho sabe o que diz. Parecia-me impossível ouvir outra vez aquelas belas conversas.
-
Belas viagens estas, disse o Ouricinho! Parecem de verdade. Haja chuva ou haja sol, aqui vamos nós! Como o Corto Maltese!
-
Sim – acrescentou o Ratinho, cheio de espírito e mostrando os conhecimentos. Até
parecem as “Viagens à volta do meu quarto”, do Xavier de Maistre (1)!
Hesitou, e perguntou-me:
- Jana, ou são do Lawrence Sterne?
- As viagens do Lawrence Sterne eram aquelas que estiveste a viver antes, chama-se "Viagem Sentimental" (2)....
O Ratinho sorriu.
- Jana, ou são do Lawrence Sterne?
- As viagens do Lawrence Sterne eram aquelas que estiveste a viver antes, chama-se "Viagem Sentimental" (2)....
O Ratinho sorriu.
Mas, desta vez, o Ouricinho respondeu-lhe a rigor:
-
Já agora, por que não falas antes das “Viagens na minha terra”, do Garrett (3)? Pelo menos
passam-se em Portugal...
Afinal
o Ouricinho vai fazendo a sua cultura! Chegou-se ao pé de mim e sussurrou, a explicar o que se passara com o namoro do Ratinho e da Alcina.
- Sabes, já estavam os dois fartos de namorar. Dá muito trabalho, disse-me o Ratinho. Tem
que se estar sempre a falar, a falar e cansa. E perde-se a inspiração de repente. Não tem graça.
- A falar ou, então, a ouvir o outro...
***
Pensei na menina das tranças, de mãos no colo, a olhar sem perceber nada do namoro que o Ratinho lhe fazia, e cheia de vontade de ir brincar com os mais novos e mais divertidos do grupo.
E lembrei-me dos primeiros dias quando ela chegou e encantou toda a gente. É tão bom encontrar gente nova! Gente diferente! De outros mundos! Com outros costumes!
Notas:
(1) Xavier de Maistre escreveu "Viagem à roda do meu quarto", em 1794
(2) Lawrence Sterne escreveu "Sentimental Journey", em 1768
(3) “Viagens na minha terra” foi escrito por Almeida do Garrett, em 1846.
O nosso escritor Romântico, homem culto e conhecedor da Literatura Inglesa leu os três.
E lembrei-me dos primeiros dias quando ela chegou e encantou toda a gente. É tão bom encontrar gente nova! Gente diferente! De outros mundos! Com outros costumes!
Notas:
(1) Xavier de Maistre escreveu "Viagem à roda do meu quarto", em 1794
(2) Lawrence Sterne escreveu "Sentimental Journey", em 1768
(3) “Viagens na minha terra” foi escrito por Almeida do Garrett, em 1846.
O nosso escritor Romântico, homem culto e conhecedor da Literatura Inglesa leu os três.
Estes diálogos são extraordinários!
ResponderEliminarAdoro!
O Ratinho é um encanto e o Ouricinho idem! Ainda bem que a amizade deles não foi beliscada com este namoro, porque era uma pena. Uma dupla como a deles é única!
E os amigos por aí vão aumentando...sentem-se bem e ficam, porque essa casa tem magia:)))
Beijinhos, bom fim-de-semana e obrigada por mais uma história fantástica:))s
Mais uma bela viagem
ResponderEliminarPor vezes sós mas nunca isolados
Como se vê viajar no tempo e no espaço é uma oportunidade, mesmo que numa história aparentemente infantil, mesmo nas páginas de obras clássicas da literatura de percorrer várias obras que a menina nem suspeitava existirem. O nome da menina poderia ser Clara, pela sua descrição fisionómica, claro, mas Alcina estará mais adequado por ser originária da terra dos alces. Como na vida (real) a namorada nem chegou a saber que o era, por timidez e inexperiencia do Ratinho em enredos namoradeiros.
ResponderEliminarGostei de voltar, aqui, e, quando cheguei impressionei-me, mais uma vez, pela beleza: o Falcão sendo um Ser que voa com uma destreza inigualável, que gosta das alturas e, por isso, passa grande parte do seu tempo a olhar para baixo, para a Terra, soube ter um magnífico olhar para cima, para o Céu, por entre braços adornados de filigranas.
Dias felizes. MJ
Gostei muito, muito deste texto!
ResponderEliminarCada "amigo" é como uma parte da tua vida interior, que é muito rica. Começo a entrar neste jogo, ainda que me custou bastante, confesso, talvez porque fisicamente os teus amigos são muito fechados, de rostos impenetráveis...
ResponderEliminarTudo bem? Por aqui muito vento. Bjinhos