sexta-feira, 29 de março de 2019

Encontro com uma pessoa inesquecível: o meu amigo José Régio..

Um reencontro de saudade
A ‘voz’ de José Régio ficou-me para sempre na memória. Ouço-a, quando o leio. O ritmo dos seus versos faz-me vibrar, comove-me, e por vezes tenho vontade de chorar. Hoje quero lembrar um momento muito especial dessa “amizade”.
Convidaram-me – e ao Manuel – para fazer uma “evocação” daquele que tinha sido um amigo de ambos. O momento era a abertura das “Comemorações dos cinquenta anos da morte de José Régio.”  Na Casa-Museu José Régio. 
Estávamos numa sala enorme cujos enfeites eram apenas os Cristos variadíssimos de tamanhos e estilos, à nossa volta. 
Um dos que estavam à minha direita era um crucifixo não muito grande com um Cristo triste que tinha à sua volta, em desenho ingénuo, cabeças de anjinhos.
As Comemorações, organizadas pelo Município de Portalegre, na pessoa da Presidente da Câmara Drª Adelaide Teixeira, pela comissária Drª Maria José Ascenção e a directora da Casa-Museu, Drª Maria José Maçãs, iniciaram no dia 21 de Março, no Dia da Poesia.´

Para mim era uma espécie de "missão", quase uma peregrinação, dedicada à amizade. Antes de tudo, José Régio foi o meu amigo José Maria dos Reis Pereira, meu professor. 
Muito tempo passou desde a criação da nossa amizade: eu criança de oito ou nove anos, ele o meu professor de Francês e Português. E a confiança e a amizade perduraram toda a vida. 
José Régio e Feliciano Falcão, 1952
Conheci-o, criança, antes de entrar para o Liceu, porque era um amigo do meu pai e, por essa razão, tive a sorte de "conviver" com ele, de o ver lá por casa, onde vinha ouvir música, ou nos cafés e esplanadas a ouvi-los conversar.
Conto algumas pequenas histórias dessa amizade, era eu já crescida. Lembro-me que estava a acabar o Curso de Filologia Românica e, na época de Outubro, daria o último exame de Literatura para o qual não me sentia ainda verdadeiramente preparada. 
Pierre- Auguste Renoir, paisagem

Era Setembro, o tempo estava maravilhoso, as árvores começavam a ganhar os tons outonais, mas havia ainda muitas flores e giestas bem amarelas nos campos à volta da cidade.
vista da casa de José Régio. 

Fizera o meu Curso como aluna voluntária e não frequentara, pois, as aulas e sentia falhas no meu conhecimento. 
Agora, de férias em Portalegre, fui visitá-lo e pedir-lhe que me desse uma ajuda. 
Quão depressa passara o tempo! Estávamos em 1966. Eu estava grávida do Diogo que ia nascer no mês de Dezembro. 
Casara cedo, com 17 anos, e continuara a estudar na Universidade e este ia ser já o meu segundo filho.

 A Gui nascera 6 anos antes e Régio conhecia-a e, numa carta que me escreveu, dizia que era muito "gira" -e acrescentava "como se diz hoje".
Eu trazia um vestido de florinhas brancas e vermelhas sobre fundo azul vivo e com um pequeno folho, debaixo do peito, para disfarçar a barriga que era grande.
“Grávida, eu?” O meu velho professor que me conhecera menina talvez achasse estranho, pensei na altura. Mas o meu amigo olhou-me com a mesma ternura e condescendência – tal como se eu continuasse a ser a sua pequena aluna e protegida dos tempos do liceu.
Pierre- Auguste Renoir, Flores
A relação de amizade tinha continuado. Como prenda de casamento, Régio oferecera-nos, a mim e ao Manuel, uma ‘colcha de noivado’ de Castelo Branco, bordada a seda com suaves cores matizadas, sobre um desenho do século XVII que simbolizava a Árvore da Vida.

Guardo o cartão que acompanhava a prenda. Diz apenas:
Com os meus mais sinceros votos de felicidade, aí envio aos Noivos, de entre as minhas velharias, essa chamada “colcha de noivado” de Castelo Branco.”

Durante anos, a colcha esteve pendurada na parede da sala - bem forrada e protegida, atrás, com um tecido forte. Depois, as muitas viagens, a mudança de países, fez com que acabasse guardada na prateleira dum armário, onde a vou espreitar de vez em quando e pôr sobre a cama só para a ver.

Voltando às lições de Setembro... Sim, o Dr. Reis Pereira aceitou dar-me ‘explicações’. Ficávamos na sala onde habitualmente se sentava a escrever. Eu dizia-lhe das minhas dúvidas e ficava a ouvi-lo e a observá-lo. Sempre o seu olhar agudo e compreensivo, o sorriso levemente irónico, o jeito de pôr os óculos na cabeça quando não precisava deles.
Falava de Literatura com a simplicidade dos que sabem muito e não precisam de o mostrar. As coisas pareciam claras, explicadas por ele. O que me parecia complicado, antes, as diferenças entre os diversos períodos e movimentos: modernismo, simbolismo, decadentismo – tudo se tornava exacto, nítido.

Nessas tardes de fim de Verão, muito me ensinou. Ele falava e eu ouvia. E desta vez, bem atenta, não me distraía a olhar pela janela, para ver as nuvens – como quando era sua aluna.
Lembro, também, a ternura com que falava de Cesário Verde, António Nobre ou Júlio Dinis.
Que saudades das horas de calma a aprender, como num sonho, nesse momento belo desse final de Verão. Fora o calor do Alentejo tudo queimava, mas dentro das paredes brancas, com as portadas de madeira meias fechadas, havia frescura. Era um maravilhoso fim de Verão.
Lembro a nostálgica canção de Barbara: “Septembre/Quel joli temps

“Jamais la fin d’été, n’avait parue si belle...
Les vignes de l’année auront de beaux raisins
On voit se rassembler, déà les hirondelles
Mais il faut se quitter, pourtant, l’on s’aimai bien.” (1)

As férias estavam a acabar e o mundo imobilizara-se, durante uns tempos, para mim.
Amigo do meu coração, pouco te falei, pouco falo de ti, por timidez, mas hoje quero dizer-te que nunca te esqueço e que conhecer-te foi uma das coisas mais importantes da minha vida!

Desde os meus 9, senti a tua amizade e quis mantê-la. Soube desde o primeiro olhar que, em qualquer aflição na minha vida, eu podia correr para ti e tu dar-me-ias abrigo e consolo. 
Tinha a sensação de que, pela vida fora, me bastaria chamar-te para que viesses ter comigo e tu ajudar-me-ias fosse no que fosse.

Como é possível sentir-se, deste modo tão seguro, tão intenso, a amizade de alguém - se a pessoa de quem falo me não tivesse mostrado que podia ter confiança total nela?
Se a pessoa de quem falo não fosse uma pessoa especial? Era especial, sim. 
O meu professor Dr. Reis Pereira que era também o poeta José Régio era uma pessoa invulgar. Inesquecível. Quando morreu, senti-me desamparada. Era tão bom saber que havia uma pessoa assim na minha vida. E era tão triste perdê-la! Assim escreve poeta japonês, Soseki, sobre a breve passagem:
A vida dura
o tempo
de uma chuvada”...

É curto o tempo de se viver, mas enquanto as mãos de alguém, como um ninho, pousam e nos protegeram algum tempo - quando as mãos se abrem e as avezinhas voam... o que será delas? Saberão o caminho?
“Por um momento, as suas mãos ali pousaram,
Como aves no ninho.
Depois abriram-se, e voaram.
Saberão o caminho?” (2)

O Poeta sabia isso, melhor do que ninguém... E sabia que eu encontraria o caminho.

Agora, tantos e tantos anos passados, tantos amigos perdidos, naquela sala branca e fria, cheia de Cristos tão humanos, queria falar dele mas tudo o que "escrevera" se esvaíra da memória. 

Falei do que aqui contei acima... Histórias simples, mas tão vivas, tão importantes que em nenhum tempo foram – ou serão esquecidas!

Havia na assistência uma compreensão, quase uma conivência – sabiam que eu não ia falar do poeta que todos conheciam e de que tantos falaram já.
 José Régio, uma bela fotografia de Pedro Sevylla

Eu ia apenas ter um encontro de saudades com o meu amigo Dr. Reis Pereira, uma vez mais na sua casa, à espera que ele me inspirasse...

***
(1)  https://youtu.be/u2qkzDb4UZU

(2) Poema intitulado “Voo”, Cântico Suspenso, Portugália Editora, Lisboa, Novembro 1968

5 comentários:

  1. Que bonita homenagem!
    A Maria João é uma pessoa especial. Conviveu com pessoas especiais.

    Beijinhos e bom fim-de-semana:))

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  2. Que bonito, ir a Portalegre para homenagear a tão ilustre professor e amigo, uma dessas experiências que ficam gravadas para sempre. Não me disseste nada!
    Bom finde, bsss

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  3. Querida Maria João,
    Recentemente partilhei com o Manuel o que lhe vou escrever agora.
    Ando a ler um volume da correspondência de José Régio e numa das cartas a Luísa Dacosta ele escreve que vai dar um abraço ao Dr. Falcão em nome da escritora, pois sabe que ele ficará contente!
    Claro que identifiquei de imediato quem era o Dr. Falcão!
    Não tive a sorte de conhecer pessoalmente José Régio. Mas é um autor que aprecio e emocionei-me quando visitei a Casa-Museu em Portalegre.
    Que bela amizade e que boas recordações!
    Existem pessoas que não se esquecem; que marcam a diferença!
    Beijinhos.:))

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    1. E bem verdade! Ele era uma pessoa especial e passar perto dele foi um privilégio muito grande!Sensibilidade, humanidade, e tanta simplicidade numa pessoa genial! Um beijinho e espero que esteja melhor!

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