Falo de um livro de que gostei há muitos anos! Resolvi reler Clarice Lispector e o seu estranho livro "Perto do Coração Selvagem"; queria saber o que
sentiria hoje...
Li-o, pela primeira vez, na velha colecção dos Livros do Brasil que tinha uma selecção de autores muito boa.
Colecção onde havia tudo o que de maravilhoso tinha a Literatura Brasileira: Graciliano Ramos, Lins do Rego, Érico Veríssimo e tantos mais!
Li-o, pela primeira vez, na velha colecção dos Livros do Brasil que tinha uma selecção de autores muito boa.
Colecção onde havia tudo o que de maravilhoso tinha a Literatura Brasileira: Graciliano Ramos, Lins do Rego, Érico Veríssimo e tantos mais!
Reli, pois, o livro que me ficara na memória como algo de mágico.
“Perto do coração selvagem”, o título feliz da obra, foi-lhe inspirado por uma frase de Joyce, a epígrafe do livro “A Portrait of the Artist” (1916) : “Near to the wild heart of life.” (2)
“Perto do coração selvagem”, o título feliz da obra, foi-lhe inspirado por uma frase de Joyce, a epígrafe do livro “A Portrait of the Artist” (1916) : “Near to the wild heart of life.” (2)
Uma criança solitária. Que perde muito cedo a mãe, que tem um pai que brinca e a considera uma "guria", uma menina, um "ser" livre e especial.
O pai morre. A vida dá uma volta tremenda...Tudo se vai: o pai, a ternura, a casa, o lugar que era dela. Ninguém a compreende. A tia que fica a tomar conta dela chama-a de "víbora"...
Então a "guria" vai à procura de si mesma. Do que é, do que foi. Do seu lugar na vida. A análise da vida interior de uma criança, num tempo antigo, anterior - e a mesma análise feita pela (criança) mulher adulta.
“Quem era ela?” “O que deve fazer alguém que não sabe o que fazer de si?”
Conta de si, dos desejos, do que vai descobrindo sobretudo desde a morte do pai, pequenina, e a descoberta e a sensação de ser diferente de todos.
O pai morre. A vida dá uma volta tremenda...Tudo se vai: o pai, a ternura, a casa, o lugar que era dela. Ninguém a compreende. A tia que fica a tomar conta dela chama-a de "víbora"...
Então a "guria" vai à procura de si mesma. Do que é, do que foi. Do seu lugar na vida. A análise da vida interior de uma criança, num tempo antigo, anterior - e a mesma análise feita pela (criança) mulher adulta.
Berthe Morisot
Conta de si, dos desejos, do que vai descobrindo sobretudo desde a morte do pai, pequenina, e a descoberta e a sensação de ser diferente de todos.
Berthe Morisot
A
independência feroz, a teimosia, a vontade de não se deixar prender, a defesa quase
animal da liberdade intrínseca que pode ser normal em certos adolescentes, sim.
Nesta
auto-análise, impiedosa e profunda, continua a “escavar” - e o momento interior
vivido, depois passado, é "revivido", adulta, e quase “dissecado”- até tudo se perder e confundir no labirinto da
memória, sem encontrar saída.
Análise
psicológica?
“Além do
mais, a Psicologia nunca me interessou...O olhar psicológico me impacientava.”
"Analisar instante por instante, perceber o núcleo de cada coisa (...) possuir cada momento, ligar a consciência a eles (...) - é a vida?”
"Analisar instante por instante, perceber o núcleo de cada coisa (...) possuir cada momento, ligar a consciência a eles (...) - é a vida?”
Virginia Woolf e o pai
James Joyce, em Trieste, Ponte Rosso
Não
sei quem se referiu a uma espécie de análise metafísica
ao falar dessa análise cerrada, impiedosa, desse ‘olhar psicológico interior’, mais perto
do “fluxo de consciência”, à maneira
de Woolf e Joyce – dois escritores que que admirava.
O
estilo elíptico e fragmentado e introspectivo destes escritores interessava-lhe
sem dúvida.
Clarice Lispector transcreve o complexo processo de pensamento de uma personagem, à procura de si, menininha. Do que foi passado, do presente, com um raciocínio lógico entremeado de opiniões pessoais, dúvidas, quando menina e quando mulher.
Clarice Lispector transcreve o complexo processo de pensamento de uma personagem, à procura de si, menininha. Do que foi passado, do presente, com um raciocínio lógico entremeado de opiniões pessoais, dúvidas, quando menina e quando mulher.
“Dentro de si sentia de novo acumular-se o
tempo vivido. A sensação era flutuante como a lembrança de uma casa em que se
morou (...) como vago longínquo mundo. Um instante e acabou-se.”
Mais
adiante: “Não podia saber se depois deste
tempo vivido viria uma continuação ou uma renovação ou nada., como uma
barreira... Ninguém podia impedir que ela fizesse exactamente o contrário das coisas
que fosse fazer: ninguém, nada. (...) Não era obrigada a seguir o próprio
começo.”
Pensamentos
como farrapos soltos, incompletos, sem ligação aparente. Passado e presente e,
sempre, a relação “infindável” com a infância.~
“Quem era ela?” “O que deve fazer alguém que não sabe o que fazer de si?”
“Vive-se e morre-se”, dissera-lhe um dia
o professor. “Só?” Não lhe bastava.
O que era a vida? como se prendia a vida?
"(...) possuir cada momento, ligar a consciência a eles (...) - é a vida?”
"(...) possuir cada momento, ligar a consciência a eles (...) - é a vida?”
Pensava
que, “mesmo assim ela escaparia. Outro modo de captá-la (a vida) seria viver”.
Para ela, porém, “o sonho era mais completo do que a realidade, esta um afogar na inconsciência.”
"Sonho introspectivo?", de Barbara Coleman DuBois
Para ela, porém, “o sonho era mais completo do que a realidade, esta um afogar na inconsciência.”
Questiona-se
sempre. O que importa afinal: “viver ou
saber que se está vivendo?” (pg.68)
Um
processo de associação de ideias, também, entre passado e presente, relações
homem-mulher, poder e posse, esbatendo as distinções entre consciente e
inconsciente, realidade e desejo, e as recordações passadas que interferem com
o presente.
"Também as plantas nascem de sementes morrendo. Também longe nalguma parte, um pardal sobre um galho e alguém dormindo. Tudo dissolvido. (...) e naquele mesmo instante o ponteiro do relógio ia adiante enquanto a sensação perplexa via-se ultrapassada pelo relógio." (pg. 197)
Pensar, reflectir, recordar, infatigavelmente! “Sempre um fluir desenfreado de sensações e
pensamentos da consciência, da vida subjectiva.”
Sonho,
memória, esquecimento do vivido – ou não-vivido afinal e apenas imaginado – “perdemo-nos” com ela sem
achar a saída do labirinto da mente e da memória...
Livro
que, pela complexidade dessa análise dos sentimentos e das situações - quase um
monólogo interior - nos deixa no final a sensação de não “ter apanhado” tudo.
Sim, afinal valeu a pena reler “Perto do Coração Selvagem”...
***
NOTA Clarice Lispector
nasceu numa aldeia da Ucrânia em 1922, numa família judaica. Um dia foi “aterrar”
ao Brasil e por lá ficou. Morreu no Rio de Janeiro em 1977. A obra "Perto do Coração Selvagem" saiu no Brasil em 1944. Refiro-me aqui, à edição da Relógio D' Água, 2000.
(1) Frase de James Joyce, epígrafe de "A Portrait of the Artist as a Young Man".
(2) O escritor norte-americano, Benjamin Moser, na biografia “Clarice”, quer descobrir os aspectos fundamentais na trajectória da escritora, desde a origem miserável na Ucrânia - até ao reconhecimento internacional.
(2) O escritor norte-americano, Benjamin Moser, na biografia “Clarice”, quer descobrir os aspectos fundamentais na trajectória da escritora, desde a origem miserável na Ucrânia - até ao reconhecimento internacional.
O autor viajou,
propositadamente, até à Ucrânia para saber tudo sobre a escritora, numa “espécie
de paixão arrebatadora”, explica. Benjamin
Moser ousa mesmo qualificá-la como “a
melhor escritora judia depois de Kafka”.
Foi ele quem, nos USA, dirigiu a
publicação das novas antologias das suas histórias desconhecidas.
Gostei de ler o post. Ainda não li "Perto do coração selvagem", mas tenho-o cá.
ResponderEliminarGosto da Clarice Lispector.
Beijinhos, e que tenha sido um bom domingo de Páscoa:))
Maria João,
ResponderEliminarA edição que tenho é brasileira, da Editora Nova Fronteira. Infelizmente ainda não a li! Tenho parte da obra de Clarice Lispector, inclusive alguns livros biográficos, como este último cuja capa colocou no blog. E já vi algumas entrevistas que lhe fizeram!
Um beijinho.:))