sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

ALFRED DREYFUS, GENTLEMAN E OFICIAL. E JUDEU...



Penso que as grandes injustiças não devem ser esquecidas. Devem mesmo ser referidas -quando temos conhecimento delas, claro. Muito menos ainda devemos esquecer as revelam um cunho racista. O racismo continua a ser possível e muito “seguido”,
A nossa obrigação moral (apenas moral pois ninguém nos pode obrigar a nada, vivemos em democracia) é ‘revelar’ o que sabemos para que os outros -que estão interessados em saber a verdade- a saibam também.
Agora que tanto se tem falado do Holocausto, da libertação dos campos e dos judeus perseguidos, apenas porque ‘judeus’, lembro o “Affaire Dreyfus” que dividiu a França, nos finais do século XIX.
Descobri na biblioteca um livro muito gasto pelos anos e comecei a colá-lo e a “restaurá-lo” para não se estragar mais. Chama-se “Cinq années de ma vie” (1894-1899) e é o “diário” escrito pelo Capitão Dreyfus.
O livrinho veio de casa do avô do Manuel, o militar republicano Álvaro Poppe que participou no 5 de Outubro 1910. Mas o livro pertencia ao seu amigo Afonso Costa, também republicano mas civil. De facto, é a assinatura dele que está na capa do livro (ed. Bibliothèque-Charpentier, Paris, 1901), com a data de 30 de Abril 1903.
Quem sabe se comprado em Paris quando estavam juntos no exílio? Quantas histórias contava o avô Poppe e quantas horas passei (passámos) a ouvi-lo. Um dia estive uma tarde inteira a falar com ele sobre os impressionistas. Gostava muito de Van Gogh.
O livro deve ter sido emprestado e o avô nunca o devolveu. Acontece. E ainda bem que aconteceu pois assim veio ter às minhas mãos.
Alfred Dreyfus, acusado injustamente de traição e degredado para a Ilha do Diabo.
Na altura em que redescobri o livro (a vida é feita de tantas coincidências) encontrei uma referência ao Affaire Dreyfus, no suplemento “Culture et Idées”, do Monde (de 5 de Julho 2014) - e fiquei mais interessada ainda. 
Falavam de um filme mais sobre "o caso" Dreyfus. De facto, trazia uma entrevista com o realizador Roman Polansky -judeu de origem polaca- e com o escritor Robert Harris.




Assim fiquei a saber que saiu outro livro sobre o ‘caso’: o de Robert Harris, intitulado An Officer and a Spy (2014), no qual se inspirou Polanski para o filme que sairá em 2016.

Em português, o título é Oficial e Espião (edições Presença) e, em francês, apenas “D” (ed. Plon).
Muitos filmes se fizeram sobre o caso Dreyfus: desde o de Meliès, ou o de José Ferrer, "I accuse!" (Acuso!), em 1958. 

Ou, mais recentemente, o de Yves Boisset, realizado em  1995.
Este livro tem uma particularidade: a história é “vista” pelos olhos de George Picquart (1854-1914), que foi professor na escola militar de Dreyfus e um dos seus defensores mais convictos. 
E que contribuiu sem dúvida nenhuma para provar a sua inocência - e a culpabilidade de outro oficial, o Comandante Ferdinad Esterhazy, militar de alta patente.
Como num inquérito policial, Picquart- que era oficial do Bureau de Renseignement, os serviços de espionagem franceses-  vai seguir uma pista original: um “pequeno papel azul”, um apontamento, dirigido a Esterhazy pelo adido militar alemão, cuja letra ele descobre ser a mesma do documento que faz parte dos elementos-chave da acusação no processo contra Dreyfus.  
Este papel azul é publicado em 1896 no jornal Le Matin.

Por quê escolher a figura de Picquart? Diz  Polansky: 
“Dreyfus não era especialmente interessante nem simpático como herói e, acima de tudo, tinha passado os 5 anos fundamentais do seu processo numa ilha deserta - acorrentado à cama, na maioria das noites.”
Por isso foi necessário descobrir outro “herói”. É, então, que lê o livro de Harris e decide adaptá-lo. E será Picquart a personagem central.
Continua:
No livro de Harris está toda a estrutura do filme. Através dele, o enredo passa a ter o aspecto de um filme de suspense, de um thriller, o que em Hollywood se chama ‘the Arch’.”
A figura de Picquart vai funcionar como um ‘whistleblower’ – o que “lança o alerta”. É ele quem despoleta a acção. Harris refere a cena da humilhação de Dreyfus, nos Invalides, quando lhe arrancam as divisas e lhe quebram a espada:
Dreyfus, gravura de Henri Meyer

Essa cena (no dia 5 de Janeiro de 1895) mudou o curso da História mundial. É o momento em que Théodore Herzl, fundador do sionismo político, e que assistia no meio da multidão àquela cena, pensa que o povo judeu devia ter o seu Estado. Essa destituição pública criou uma mudança radical.”

Posto isto, quem foi Alfred Dreyfus? Um homem, um oficial francês que, por ser judeu, se viu enredado numa trama de espionagem, sendo acusado, preso, e doze anos depois  reabilitado com todas as honras…
Nasceu em Mulhouse em 9 de Outubro de 1854 e morreu em 12 de Julho de 1935.
Mulhouse 

Leio na wikipedia: “Em Outubro de 1877, com 18 anos, entra na prestigiada Ecole Polytecnique, em Paris. Ali estuda, de 1877 a 1880, e termina o curso. De 1880 a 1882 continua a estudar, agora na Escola de Artilharia Militar de Fontainebleau.
École Polytecnique

(...) Em 18 de Abril de 1891, casa com Eugénie Hadamard. Três dias depois, sabe que foi aceito na Escola Superior de Guerra cujo curso termina dois anos depois.”

No exame final, em 1892, quando “os amigos esperavam que tivesse um bom resultado”, um dos membros do júri,  o General Bonnefond, deu-lhe uma má nota em “cote d’amour” (intraduzível: amor pela pátria?), justificando  que “os judeus não são desejados” naquela Escola -nota má essa que, evidentemente,  lhe baixou a média final.
A carreira que se anunciava perfeita, é minada à partida.

Dreyfus apresenta um protesto, o Director da escola, o General Lebelin de Dionne, lamenta o que aconteceu, mas expressa a sua impossibilidade de alterar o resultado.
Mesmo assim, Dreyfus é chamado para o Quartel General às ordens do General Staff, onde é o único oficial judeu."

O tempo corre mas, em 1894, Dreyfus é acusado de traição: “teria”, alegadamente, confiado segredos militares franceses à Embaixada Alemã, em Paris. É condenado a prisão perpétua e enviado para a colónia penal da Ilha do Diabo, na Guiana Francesa.

a Ilha do Diabo

Em 1896, começam as dúvidas sobre a veracidade dos factos de que o acusam. E, depois de uma investigação aprofundada, a situação revira: o Comandante Ferdinand Walsin Esterhazy é indiciado. Teria sido ele o “traidor” que confiara os segredos aos alemães. 
Walsin Esterhazy

No entanto, o caso é abafado por oficiais superiores. Um tribunal militar iliba-o, no segundo dia do julgamento.
O Exército acusa agora Dreyfus de outros crimes, baseado em documentos falsos.
George Picquart que nunca acreditara na sua culpabilidade vai, de dúvida em dúvida, buscando testemunhos novos, informações e cria um dossier sobre o assunto.
George Picquart 
Em Janeiro de 1898, sai, no jornal  L’Aurore, uma “Carta Aberta ao Presidente da República”, de Emile Zola, intitulada “J’ accuse”. 
Chocado com as campanhas nacionalistas e anti-semitas que de ano para ano iam aumentando, e convencido da inocência de Dreyfus, Zola entra na luta que os dreyfusards tinham começado, para conseguir a reabertura do processo.
 Zola, pintado por Edouard Manet (1868)

E os ânimos inflamam-se: o governo é pressionado para reabrir o caso. E Dreyfus vem da Guiana para ser sujeito a um novo julgamento.
 Dreyfus

É então que a França se divide em dois grupos: os dreyfusards, com escritores e políticos como Anatole France, Clemenceau, ou Poincaré. Do outro lado, está Édouard Drumont, director de La Libre Parole, jornal conservador e anti-semita. (…) Novo julgamento e nova condenação, agora a 10 anos. Dreyfus é perdoado e sai em liberdade porque as acusações contra ele não foram provadas.”
A reabilitação far-se-á dois anos mais tarde. Depois da amnistia votada na Câmara, a Cour de Cassation anula o julgamento de Rennes.
Em 21 Julho de 1906, é reintegrado, como major, no Exército. Recebe a Légion d’Honneur.
A honra -de militar e de homem- é lavada. Alfred Dreyfus não atraiçoou a sua pátria. Em 1914, combaterá, na 1ª Guerra, e é respeitadíssimo. 
Mas quem pôde tirar, alguma vez, a vergonha e a dor sofridas? 
Pergunto: e se Emile Zola não tivesse escrito “J’accuse!” e não se tivesse preocupado com esta injustiça?


5 comentários:

  1. Um post muito interessante!
    Gostei de ler:)

    Um beijinho grande e desejo-lhe um bom fim-de-semana:)

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  2. O artigo de Zola foi um autêntico terramoto que converteu o caso Dreyfus numa confrontação política e social que fez história. O escritor morreu afinal em extranhas circunstâncias e tudo parece indicar que foi assassinado por um dia ter escrito "J´accuse:::". É um tema apaixonante e mesquinho ao mesmo tempo, muito mesquinho.

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    1. Pois foi. Fundamental para a resolução do caso. Sei que possivelmente morreu assassinado: enfim, sufocado pelo fumo da lareira estranhamente "limpa" pouco tempo antes. A 'hombridade' e dignidade dos homens paga-se... Os outros homens não perdoam... Sim, mesquinhez e ódio aos judeus...

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  3. Mas que interessante "reportagem" sobre o caso Dreyfus!
    Gostei muito...
    Mais uma tremenda injustiça que se cometeu! Valeu-lhe Zola...

    Beijinhos.:))

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    1. É verdadde, Cláudia! É interessantíssimo e terrível este caso. Pobre Dreyfuss ali esteve na Ilha do Diabo, prisioneiro, acorrentado à cama de noite. E inocente! Um beijo

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