terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Primo Levi: 70 anos depois da libertação dos campos...



“Na vida, mais cedo ou mais tarde, percebemos que a felicidade perfeita não é realizável, mas poucos são os que podem parar e pensar na sua antítese: a infelicidade perfeita é igualmente impossível.” (Primo Levi) 
Le Monde des Livres de 21/01/2005
O escritor Primo Levi nasceu em Turim, em 31 de Julho de 1919. A sua família tinha raízes judaicas e, como muitos outros judeus de Itália, essas origens eram espanholas, provençais e alemãs. 


Licenciado em Química, pela Universidade de Turim, apesar das “leis raciais” (1938) que impediam os judeus de frequentar vários locais públicos, consegue um trabalho às escondidas numa fábrica. Um dia junta-se aos “partigiani” (antifascistas italianos) e vai para as montanhas. 

Mas quando Mussolini volta ao poder, são apanhados pelas milícias fascistas e, em 1942, é internado num campo de trabalho, em Itália, perto de Modena, o campo de Fossoli. 
Quando os alemães chegam ao 'campo', no dia 21-22 de Fevereiro de 1944, Primo Levi e mais 650 judeus italianos, homens e mulheres, foram metidos em vagões de um comboio de mercadorias e 'enviados' para o campo de concentração de Auschwitz, na Polónia. 

À chegada, alguns seguem para o campo de Buna-Bonowitz, que era conhecido por Auschwitz III. Para quem não saiba, havia, relativamente perto uns dos outros, vários auschwitzs
Primo Levi foi um deles. Ali ficou até o campo ser libertado pelo Exército Vermelho, em 27 de Janeiro de 1945. Faz hoje 70 anos. Primo Levi foi um dos 20 sobreviventes dos 650. 
Cientista, escritor, professor de química, autor de vários livros de 'memórias' sobre Auschwitz, e de livros científicos e de ficção, suicidar-se na sua casa natal, de Turim, em 1987. 
Em conjunto com o médico Leonardo Debenedetti (*), seu companheiro de detenção, vai elaborar, a pedido das autoridades russas, depois da libertação de Auschwitz, um relatório "científico" sobre as condições exactas de detenção nos campos de extermínio. Este relatório -escrito por um químico e um cirurgião- descreve, a frio, o que se vivia nos campos, as doenças causadas pela fome, desnutrição e frio, pela falta de higiene. Descreve o comportamento dos nazis mas, igualmente, o das vítimas - como se eles próprios não tivessem feito parte dessas vítimas.
Esse documento ter-lhe-á servido de base para o primeiro livro Se isto é um homem (edições em português Dom Quixote e Teorema), que o tornará famoso. Escreve-o, logo após o regresso a Itália, de Janeiro 1946 a fins de 1947. 
Inspirados na oração "Shema Israel" (Ouve, Israel), estes são os versos que escolhe para o início do livro: 
"Considerate se questo è un uomo
Che lavora nel fango
Che non conosce pace
Che lotta per mezzo pane
Che muore per un sì o per un no." O manuscrito é recusado pela Einaudi (que o publicará só em 1958) e por outras editoras e acaba por ser publicado ainda em 1947 na pequena editora De Silva. E depois? Depois, Primo Levi ensina e escreve outros livros. Tenta reagir, recuperar-se, criar uma família: ter uma vida normal. Apaixona-se, casa-se, afirma-se na literatura. Mas nada pode ser completamente normal. Tudo foi posto demasiado em questão. A sua fé se já era pouca antes, desaparece. Fala de si como "o não-crennte, ainda menos crente depois de Auschwitz." Radicaliza-se no seu ateísmo: 
"Há Auschwitz. Então, não pode haver Deus. Não encontro uma solução para este dilema. Procuro-a e não a encontro." No livro I Sommersi e i Salvati (1986), um ano antes do suicídio, volta ao passado nos campos, interroga-se, tenta compreender, faz perguntas - que não terão resposta, evidentemente. 
No dia 11 de Abril de 1987, é encontrado morto no vão das escadas do prédio onde vivia. Suicídio ou queda acidental? "Supõe-se que foi suicídio (encontro num texto da wikipedia). O tempo dos campos de extermínio continuara a martirizá-lo, dezenas de anos depois dessa existência. Teria sido, pois, uma vítima de Auschwitz, 'ao retardador'". è também a opinião do seu biógrafo inglês, Ian Thomson, em "Primo Levi: a biography". Ainda não li essa biografia como também não li a de Miryam Assimov (nº 14515 da colecção Le livre de Poche). Penso lê-las um dia, pois este escritor  esta personalidade interessam-me muito. Deixo a indicação para quem tiver a mesma curiosidade.  Comecei  a ler os livros de Levi, nos finais dos anos 70, acabada de chegar a Itália. Li a notícia do seu suicídio ainda a viver em Roma e chocou-me profundamente. Creio que foi no jornal La Stampa. 
Na biografia, Ian Thomson  conta como o escritor andava alterado, desesperado, segundo os amigos. A mulher fala dessa angústia invencível: "Primo estava cansado da vida. Fazíamos todos o possível por não o deixar sozinho. Mas um bocadinho foi o suficiente." 
Como muitos outros sobreviventes, foi-lhe difícil aguentar e viver. Momentos de depressão, dúvida, desinteresse. 

Nunca recuperaram do traumatismo. E lembro a minha amiga Susy H, amiga dos anos de Telavive, sobrevivente de Auschwitz também. Seguira, antes do fim e da libertação, na chamada marcha da morte, levada para outro campo. Lembro-me bem de a ouvir (raramente, porque era uma mulher com uma personalidade muito forte) dizer: "Sempre que vejo o número tatuado no braço, tenho um arripio pelo corpo todo. Nunca consegui esquecer. A fragilidade, a nudez das mulheres, quando cheguei lá. O pasmo e o medo."
Primo Levi e Philip Roth

Quanto desânimo, pois, quanta lembrança insuportável terá vivido Primo Levi? Terá ele percebido que, afinal, a infelicidade pode ser completa, perfeita?
É ele quem escreve, algures:
"Atrás de mim ouvia a voz do homem que costumava perguntar:
- Onde está Deus?
E sentia dentro de mim uma voz que lhe respondia:
- Onde? Está ali, pendurado daquela forca." 
* * *

(*) Quando Leonardo Debenedetti morre, em 1983, Primo Levi escreve esta bela evocação do seu amigo e companhiro de infortúnio: "Frágil, mas nunca corrompido pela vida desumana dos campos. Doce e serenamente consciente, amigo de todos, incapaz de rancor, sem angústia nem medo."

6 comentários:

  1. Por tudo aquilo que sabemos, sabemos também que para quem passou por todas estas coisas terríveis, é certamente impossível esquecer. O mesmo acontece actualmente com as vitimas de todos os fanatismos.

    Felizmente há também muita gente que nos faz acreditar na humanidade.

    Um beijinho grande:)

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  2. Li Se Isto É Um Homem, um livro que me marcou por muitos motivos e que considero importantíssimo na história da literatura, porque é um bom livro e porque tem que ficar para sempre como relato lúcido e autêntico do que pode chegar a ser a condição humana em condições extremas.
    Sempre pensei que não foi um suicídio, como muitos dos seus amigos mais íntimos.
    Beijos

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  3. Gostei muito desta homenagem.
    Beijinho.:))

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  4. Parabéns pelo excelente texto geral sobre esse homem fascinante, e infelizmente, tão pouco conhecido no Brasil. Desde que li a edição brasileira de "Isso é um homem ?" há quatro meses; na sequencia li 'A Trégua" e "Aconteceu em Auschwitz" e as edições espanholas (já que não há mais no Brasil) de "Los Hundidos y los Salavado" e "El Sistema Periódico", e naturalmente tudo que posso sobre Primo Levi. Também não li, e espero ter logo em português ou espanhol a biografia escrita por Ian Tholson,mas quanto ao suicídio de Levi (e ai falo como portador de depressão endógena e filho de um suicida) parece haver um consenso de que Levi já era portador de um quadro de depressão antes de Auschwitz, inclusive com caso de suicídios entre seus tios. Por que Levi não se suicidou na prisão ? A resposta ele mesmo dá, em 'Los Hundidos y Los Salvados) ; "nos larges estávamos ocupados demais em sobreviver para ´pensar em morrer". E o incrível está justamente nisso : a depressão conseguiu fazer o que Auschwitz não consegui.

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  5. Parabéns pelo excelente texto geral sobre esse homem fascinante, e infelizmente, tão pouco conhecido no Brasil. Desde que li a edição brasileira de "Isso é um homem ?" há quatro meses; na sequencia li 'A Trégua" e "Aconteceu em Auschwitz" e as edições espanholas (já que não há mais no Brasil) de "Los Hundidos y los Salavado" e "El Sistema Periódico", e naturalmente tudo que posso sobre Primo Levi. Também não li, e espero ter logo em português ou espanhol a biografia escrita por Ian Tholson,mas quanto ao suicídio de Levi (e ai falo como portador de depressão endógena e filho de um suicida) parece haver um consenso de que Levi já era portador de um quadro de depressão antes de Auschwitz, inclusive com caso de suicídios entre seus tios. Por que Levi não se suicidou na prisão ? A resposta ele mesmo dá, em 'Los Hundidos y Los Salvados) ; "nos larges estávamos ocupados demais em sobreviver para ´pensar em morrer". E o incrível está justamente nisso : a depressão conseguiu fazer o que Auschwitz não consegui.

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