Sara foi a primeira
amiga em Telavive. Eu tinha chegado nos fins de Agosto com o meu cão; o Manuel já lá estava há um ou dois meses. Estávamos instalados num
hotel - o Yamit Hotel- com uma vista ampla sobre o mar e a Promenade ou "Tayelet" que ladeava a praia, até Jaffa.
Todas as tardes,
via o sol afundar-se nas águas da baía, vermelho e enorme.
A essa hora, o azul
cerúleo era substituído por um alaranjado brilhante, e as nuvens brancas, baças
e horizontais, inebriavam-me.
A essa hora, saíamos a
passear, com o nosso cão, ao longo do paredão calcetado de pedrinhas pretas.
A Promenade, ao fim da tarde e à noite, era um bulício
constante, uma multidão de gente de todas as idades, que se agitava procurando
um pouco de fresco junto do mar.
Promenade by night (net)
Era Verão, e,
sentados nas esplanadas, ou mesmo na areia da praia, a juventude barulhenta,
vivia de dia e de noite, intensamente, como se fosse o último dia de vida -que
tantas vezes é efémera em Israel.
Promenade by night (net)
A Guerra do Líbano, ao Norte de Israel, ainda
não terminara e quantas vezes ouvi chorar, ao chegar a notícia de mais um filho
morto. Uma noite, passeávamos no jardim Ben
Gurion e fiquei siderada com a dor de uns gritos de mulher que, quase
subitamente, se calaram.
A Susana explicou-me no dia seguinte quem era a mãe
que se lamentava. Morava do lado de lá da nossa rua que era a Lassalle, detrás exactamente da Ben
Gurion.
De um modo geral,
porém, tentava-se aproveitar a vida ao máximo e vivê-la quanto mais alegremente
se podia.
A minha amiga Susana (MJF)
Bastava um pouco de
sol para que nos sábados de manhã viessem
dançar, novos e velhos, ao som de velhas músicas dos kibbutz, num leitor de CDs portátil. Os cantos eram bonitos e
ficávamos a ouvi-los.
Recordo outra
situação muito especial que se passou no nosso prédio. Uma tarde a Rachel – que
era a nossa senhoria que morava no andar de cima - veio avisar-nos de que
talvez fizessem um pouco de barulho à noite, porque se reuniam com outros
amigos (eles eram kibutznikim) para
lembrarem os amigos mortos.
À noite, abri a porta para os ouvir cantar. Cantavam, sentados nos degraus da casa. Eram
melancólicas, belas melodias, cantadas com muita nostalgia.
Para o lado norte,
a seguir à Marina e aos barcos brancos poisados nas águas
calmas do Mediterrâneo, estendiam-se os toldos de uma praia recatada, onde
algumas mães procuravam isolar-se com os filhos pequenos. Era a praia dos
judeus ortodoxos que preferiam não ver “certas coisas”, diziam-me.
Para Sul, era a
praia da “outra” Telavive, laica, sempre em movimento e agitação. Ia dizer a
Telavive “panteísta” porque há sempre um deus das coisas grandes e outro das pequenas
que todos esperamos que exista.
A praia onde as ondas, sem a protecção da
Marina, se erguiam altas, revoltas, estrondosas, e a espuma se desfazia em
rendas brancas. E os mergulhos nas vagas, os empurrões, os gritos e os risos
eram costumados.
Promenade e a calçada preta e branca (net)
Bastava-me
atravessar a passagem da Kikar
Atarim, a Praça onde estava a discoteca mais absurda que vi na minha
vida. Ao chegar às escadarias que se debruçavam sobre o mar, junto do Café
Panorama, avistava a baía enorme, onde os corpos bronzeados se estendiam ao
sol. O Zac adorava conhecer novos lugares e não parávamos o dia todo!
Quando descia a
noite, as esplanadas alargavam-se em sofás cheios de almofadas de cores vivas,
ladeados de mesinhas baixas. A música inundava os espaços, saindo dos carros
entrando pelas janelas, sempre abertas e sem cortinados. Observava esses
interiores e espantava-me de ver tantos quadros e livros. A música continuava
noite adentro. Um dia um motorista de táxi disse-me que havia um momento em que
parava, talvez entre as 4 e as 6 da manhã, mas nem sempre. Por isso Telavive se
chamava há’ir bli hafssaka, a “cidade
sem repouso”.
Da janela do Hotel Yamit o meu cão e eu contemplávamos o cair do sol sonbre o mar!
O Zac, na varanda do Hotel Yamit (MJF)
A praia pertencia a
todos: os jogos de badmington, ou ténis, para os
mais novos, ou o xadrez e as cartas para os mais velhos - que encostavam as
cadeiras ao paredão protector apoiando os tabuleiros em bancos de madeira ou nas
mesas de ferro pintado de branco que traziam provavelmente de casa. Telavive
foi a cidade mais informal que conheci. Ali descobri os meus vizinhos que
vinham passear os cães à noite, na nossa rua, a rehov Lassalle, de chinelos e robe.
a minha rua, a rehov Lassalle (MJF)
E, por tudo e por
nada, perguntavam-me quem era, de onde vinha, quanto ganhava o meu marido e a
razão por que estava em Telavive. E - importantíssimo! - se gostava de lá viver...
Um dia, meses mais
tarde, aconteceu-me ter de ir pedir arroz à vizinha de cima, a Rachel. Tinha
visitas para o jantar e esquecera-me de comprar arroz. Era sexta-feira, dia de shabat, e as lojas já estavam fechadas.
Ficou triste porque também não tinha. De repente, pôs a mão no meu braço e
perguntou: “Maria, tu não te importas? Tenho
ali arroz cozido que sobrou do jantar de ontem e é muita quantidade! Queres
levar?”
E eu aceitei e vim
a rir-me no elevador, com um grande pirex
de arroz nos braços.
Mas isso foi já
muito mais tarde e já me tinha habituado a muita coisa da simplicidade do
israelita e da solidariedade que existia. Estávamos a chegar ao fim do século
XX e a vida não era simples, no entanto, essa solidariedade humana, a ajuda
mútua, existia como em nenhum outro país que conheci. Rápida, sem pensar.
rehov Ben Yehuda
Basta lembrar
aquela vez em que o meu cão foi mordido por uma espécie de pitbull. Ligeiramente, por sorte! Eu peguei logo no meu raposinho
querido e pu-lo ao alto, com os braços esticados para o céu. De repente, as
lojas da esquina da Ben Yehuda com a Lassalle esvaziaram-se. Cinco, dez
pessoas vieram ajudar-me. E deviam ouvir o que disseram à pobre dona do outro
cão…
Certas noites,
havia fogueiras acesas na praia. E grupos que ficavam a falar e a tocar
guitarra, até nascer a manhã. Uns dormiam, os outros falavam alto, os outros
limitavam-se a contemplar o mar iluminado pelos candeeiros da Promenade.
a praia em Telavive (MJF)
Mas eu queria falar da Sara Dunhirst. A minha amiga era uma judia polaca
que teria uns setenta e poucos anos. Viera criança para Israel, com os pais e
irmãos, antes da IIª Guerra. O resto da família ficara na Polónia – tios,
primos, avós - e desapareceram todos nos campos de concentração. Pouco me falava
desses tempos, a que acenava, apenas, com uma forma de pudor.
Era uma mulher
pequenina, elegante, de gestos suaves. Uma mulher doce mas de personalidade
forte. A pele branca e acetinada, cheia de pó-de-arroz bem cheiroso, quase não
tinha rugas, e destacavam-se os lábios vermelhos que o bâton arredondava. Os
cabelos estavam rigorosamente pintados de negro e as sobrancelhas, desenhadas a
lápis, curvavam-se sobre os olhos pequeninos, que um traço preto rasgava. Devia
ter sido uma bela mulher.
Tinha uma loja de
artigos domésticos, de marcas italianas, na rehov Ben Yehuda.
Uma manhã, já estava
eu a viver na casa da Rehov Lassalle,
que é perpendicular à rua Ben Yehuda,
entrei à procura de chávenas de chá. E começámos a falar como se nos
conhecêssemos. E lá vieram as tais perguntas que me habituara a ouvir…
“De onde vinha? Por
que estava em Israel? Ia ficar para sempre? Gostava?”
Quando lhe disse
que íamos viver em Telavive uns anos, vi que sentiu prazer com a ideia.
- É bom. Israel é
um país que precisa de gente. Gostas?
“Senti” que me
tratava por “tu”, apesar de só ter sabido depois que, em hebraico, não existe outro
tratamento.
- Estou há poucos
dias, mas gosto!
- Têm-te recebido
bem?...
Disse que sim, era
verdade. Havia uma abertura grande e uma curiosidade nas pessoas com quem me
cruzava no dia a dia. Deslumbrava-me, na
descoberta da cidade solar. Desde a luz cortante do sol, ao calor húmido que
tanto detestara noutros sítios, tudo me era agradável.
A vida era intensa
e havia uma forma de energia no ar que respirava. Ia provando as bebidas
refrescantes com sabores desconhecidos: a granita
de limão com hortelã, o sumo de cenoura com laranja ou o sumo de romã, que se
vendiam, a cada esquina, nos quiosques da cidade.
Nesse primeiro dia,
Sara ofereceu-me uma das quatro chávenas que lhe comprei.
- São as boas
vindas…
O marido chamava-se
Zvi e era muito mais velho do que ela. Ou parecia.
“Há
muito que não fala”, contava-me. Nunca me explicou porquê.
Ele percebia o que
eu lhe dizia em inglês, e, mais tarde, as minhas curtas frases em hebraico. Sacudia
a cabeça, sorria. Beijava-me sempre a mão quando me cumprimentava, inclinando um
pouco o busto. Sentava-se, fora da loja, numa cadeira de praia, pousando as
duas mãos abertas sobre os joelhos. E ficava a ver o movimento da rua. Com o
rosto magro atento e calmo, o cabelo branco cortado em escova, e a camisa azul,
ou branca, sempre bem passada, calças de algodão fresco, e umas sandálias de
couro nos pés.
O meu cão Zac, habituara-se
a ficar ao lado dele. Antes de eu entrar na loja, Zvi apoderava-se da trela e começava
a fazer-lhe festas. Ficavam os dois, silenciosos, a ver a rua enquanto eu
ficava horas e horas a conversar com a Sara. Porque ela era uma pessoa invulgar,
contava coisas interessantes e era bom ouvi-la. Para quem chegara de outro
mundo, sem conhecer ninguém nem saber a língua, era um bem de Deus!
E ela gostava de me
ouvir. Contava-lhe histórias dos meus filhos, longe, do cão, do modo como o
meu filho o encontrara, abandonado ao pé de um café, em Roma. E falava da minha
vida a girar por vários continentes, descobrindo mundos e costumes tão
diferentes, ganhando experiência.
Contava dos amigos que encontrara em cada canto do mundo. Falava da Àfrica que conhecera, São Tomé.
Foi ela que lembrou
uma frase de Aldous Huxley que sempre gostei de citar: “ A experiência não é o que se viveu, mas sim o que se fez com o que se
viveu.” Era bem verdade.
Durante os meus anos
de Telavive, nunca deixei de a ir visitar. Levava-lhe uma flor, porque a
florista era perto e, ao passar em frente das flores coloridas, pensava nela.
”Que flor levo? Uma
rosa, uma orquídea, uma tulipa?”
Escolhia a mais
bonita e fresca, naquela manhã. Sara protestava e não queria aceitar.
- É muito dinheiro!
Não podes estar sempre a gastar dinheiro comigo...
Eu podia, e era um
prazer para mim oferecer-lhe uma coisa bela.
E dizia a frase de Keats de que tanto gosto: “A thing of beauty is a joy
forever”. (*)
- Tens de aceitar! É a beleza que nos ajuda a viver…
Ela sorria,
contente, e aceitava.
- Tens razão, a beleza...
Punha a flor numa jarra,
ou num pequeno copo de cristal, na prateleira, cheia de artigos de cozinha, por
detrás da cadeira onde se sentava.
- Da próxima vez,
não compras nada! Faz-me esse favor...
Da “próxima vez”,
era ela que me oferecia uma caneca para o chá, às florinhas, ou uma luva de cozinha, duas velas de que eu
precisava.
- É para o shabbat?, perguntava.
Eu não respondia, e
escolhia duas velas vermelhas porque alegravam a casa e gostava da cor que me
lembrava o Natal.~
- Não, dessa cor
não, Maria! Para o shabbat
é
melhor o branco, duas. Mas podes escolher tu, claro...
Eu comprava as
vermelhas e ela oferecia-me duas brancas.
Muitas vezes,
parava só pelo gosto de a ver, de conversarmos. Falava-me das exposições de
pintura que havia na cidade, do ballet,
dos concertos a que ia.
- O Zvi vai também,
mas não sei se ele ouve e se entende. Fica muito sério, nunca adormece…
Olhava-me,
preocupada, com um sorriso triste.
- Das exposições
gosta muito. Pára, a olhar para os quadros, tempos infinitos. Não quero deixá-lo
sozinho em casa e eu gosto tanto de ir...
- Fazes bem em ir
com ele. Não importa se ele ouve, ou não, importa é ficar contente.
E, de facto, que
importava saber se ele ouvia?
- Pode ver a beleza
dos instrumentos, as pessoas e para as
luzes da sala. Ou, mesmo, escutar o silêncio antes do sinal do “maestro”...
- Tens razão. É tão
belo tudo isso. Pequenas coisas, pequenos gestos, o brilho dos arcos dos
violinos, a elegância da “viola
da gamba”...
Hesitava na
pronúncia italiana e perguntava:
- Violoncelo, não
é?
- Sim. Sim,
violoncelo. Para mim, “viola da gamba” é mais bonito…
Ela concordava. Não
tinha fim a nossa conversa.
Quando o meu cão
morreu, num dia de Agosto, estive dias ou meses, sem voltar à loja da Sara. Não
era capaz de ir aos sítios, onde fora com ele. Não conseguia responder, sem
chorar, às pessoas, que me perguntavam por que não o tinha trazido comigo.
“O meu cão, hamud sheli”, como eu lhe chamava.
O vazio era enorme
nesses dias, e preferi fugir para outras ruas menos conhecidas de nós dois.
O Verão acabou, chegou o Outono, e
um dia voltei à procura da Sara. Ela fixou-me, séria. Baixou os olhos e olhou
para o chão, como se procurasse alguma coisa, aos meus pés.
Lembro-me hoje,
passado tanto tempo, e é como se a ouvisse dizer, na sua voz suave:
- O meu cão morreu...
Zvi aproximou-se,
de mãos estendidas, espantado por eu estar sozinha. Sabia que procurava a trela
do Zac. Depois, sacudiu a cabeça e sentou-se na cadeira a olhar para a rua,
como se não me tivesse visto.
Sara agitou-se, a mexer nas
prateleiras.
- Tinha uma coisa
guardada para ti...
Segurava um bule de
porcelana inglesa, nas mãos fechadas em concha. Deu-mo e pousou a mão em cima
das minhas, apertando-as.
- “Ani ahavti et hakelev shelach,
hu kelev hamud meod...”- disse, com doçura, na sua língua.
Acrescentou, agora
na língua que usávamos, o inglês -alheia às duas.
- O teu cão estava
cansado. Sabes, às vezes a vida pesa. São muitos anos. Vivemos muito e ficamos
cansados...
- Sim, tens razão.
Estava cansado e doente, foi-se embora para sempre...
Olhei para ela,
agradecida.
Passaram muitos anos, muitos lugares outra vez. Telefonava-lhe nos primeiros tempos, já de outro país. O vento arrastava as folhas secas e faltava-me o calor e a alegria de Telavive. Ela
disse:
- Que bom! Sabes? É
uma alegria enorme ouvir a tua voz! Maior do que se me tivesse saído a lotaria!
Imaginei o rosto
branco e perfumado, o bâton
vermelho.
Ri-me e pensei que era verdade. Ouvir a sua voz dava-me uma alegria imensa
também. Havia uma luz estranha que conseguia recordar.
Quando voltei a
Telavive, cinco anos depois, desci a Ben
Yehuda à procura dela, se bem que tivesse um pressentimento mau. A loja já
não existia e havia outra senhora que me explicou que “ela” tinha partido.
Partido para onde?
Inútil perguntar. O seu número de telefone já não respondia.
A Sara, o Zvi, o
Zac…
“Tanta saudade”, pensei…
Com estava escrito no jardim do Ulpan da minha rua: "Shadows are memories". As sombras são memórias e essas ficam para sempre.
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Notas:
"Ani ahavti et hakelev
shelach. Hu
kelev hamud meod", em hebraico. Tradução: “Eu gostava do teu cão. Era um cão
amoroso..."
"Hamud sheli": "meu
adorado, meu querido". (Hamud
quer dizer simpático, encantador...)
Ulpan: escola de "full immersion", para os imigrantes em Israel, aprenderem hebraico.
(*) John Keats (1795-1821), no início do poema Endymion:
“A thing of beauty is a joy for ever:
Its loveliness increases; it will never
Pass into nothingness; but still will keep
a bower quiet for us, and a sleep
full of dreams, and health, and quiet breathing…”