domingo, 28 de junho de 2015

Num tempo de confusão e de ódio: Cristo, José Régio


                                   Cristo, desenho de José Régio

                              Luca Signorelli, Deposição de Cristo

CRISTO

"Quando eu nasci, Senhor! já tu lá estavas,
Crucificado, lívido, esquecido.
Não respondeste, pois, ao meu gemido,
Que há muito tempo já qu não falavas…

Redemoinhavam, longe, as turbas bravas,
Alevantando ao ar fumo e alarido.
E a tua benta Cruz de Deus vencido,
Quis eu ergue-la em minhas mãos escravas!

A turba veio então, seguiu-me os rastros;
E riu-se, e eu nem sequer fui açoitado,
E dos braços da Cruz fizeram mastros…

Senhor! Eis-me vencido e tolerado:
Resta-me abrir os braços a teu lado,
E apodrecer contigo à luz dos astros!"

José Régio, “Biografia”, Arménio Amado, Editor, Coimbra (2ªedição, 1939, “refundida, e muito aumentada com novos sonetos e um prefácio”, 1939,  p.41)

sábado, 27 de junho de 2015

O RATINHO E O OURICINHO TÊM ALGUNS PROBLEMAS…



Que dizer dos meus amigos? Houve um tempo de confusão aqui por casa e eles, em silêncio, acompanharam os meus movimentos um pouco desordenados.
Primeiro, viram chegar à varanda algumas plantas novas. Outras , como os bambus, ficaram resguardadas dentro de casa.
- Estás nervosa? Triste? É por causa da Gui se ter ido embora?, perguntou o Ratinho. É verdade que também já lá está fora o Diogo...
Não respondi e ele não insistiu.
- Agora até temos um limoeiro, viste? Era dela - disse o Ouricinho. Dou-te este limão!
Sim, claro, triste estava. Tenho saudades dos dois, mas não queria ver estes tristes.

Depois disso tudo, veio a aventura da migração dos pombos para a varanda e tem sido difícil a comunicação e a "logística". Assinámos um contrato: pombos na varanda e “nós” dentro de casa! E assim temos conseguido coexistir com a família Pombal, Pigeon eu sei lá como lhe hei-de chamar. Percebo uma certa impaciência no Ratinho e no Ouricinho. E compreendo-os porque até certo ponto foi uma invasão do “nosso” espaço, sem pedir licença. 
Bem, a culpa foi minha. A ver tantas migrações infelizes pelo mundo fora e tanta indiferença, tive um gesto de solidariedade animal! E convenci-me que era tudo simples e possível, mas não foi, nem é.
Seja como for, não me arrependo do meu gesto de acolher uma mãe “grávida” de dois ovinhos. Só que não aceito uma segunda experiência do mesmo género. E já vi movimentos de tropas "pombinas" (neologismo meu) "por aqui e por ali", como no blog da Isabel. 
Os filhos andam excitados e dão às asas assim que os pais chegam. O pai pombo, com grande fleuma, parece que os ouve, não responde e depois voa! A mãe esconde-se detrás dos vasos e hoje havia um grande monte de gravetos, palhinhas tudo em forma de ninho. Quando eu entro na varanda, eles fogem e os pombinhos desaparecem num canto.
Fui buscar a vassoura e a pá, pus uma máscara (sim!), calcei as luvas da cozinha e varri tudo. Bem, e pus uns cabides de arame da tintoraria a fazer de preotecção à roda das flores.

Sinto-me mal, confesso, mas a verdade é que aquilo era só uma tentativa-de-ninho e prefiro que a pomba vá pôr os ovos noutro local, do que ter de deitar fora os ovos. Estou drástica, e decidida, como vêem…
E de manhã, resolvi ir ao mercado de Cascais comprar fruta e verduras! Para arejar a cabeça e não pensar nos pombos? Também para isso!

Quando voltámos a casa, esperavam-me os nossos amigos mais antigos, contentes porque eu trazia um grande ramo de basílico e a fruta que eles adoram.

- É o teu manjerico para o São Pedro?
E o Ratinho pôs-se a cheirar, com um ar irónico, o perfumado molhinho de ervas aromáticas. A gatinha japonesa sentou-se ao lado deles.
- Pois é, acrescentou o Ouricinho, até te esqueceste de comprar um vaso de manjerico, no São João…

- Que ainda por cima era o dia do teu onomástico!
E o Ratinho abanava a cabeça, num ar de censura que queria significar, é claro: “com esta história dos pombos, já não fazes a tua vida normal. Até te esqueceste do dia de São João!”
- É verdade, esqueci-me. Mas agora para o São Pedro não temos um manjerico mas sim um manjericão!
- Ora - disse o Ratinho, sempre lúcido- tenho a certeza de que vais fazer tanta “pasta all’ italiana” que o basílico não chega nem ao São Pedro!
Fingi não entender. Sabia que ele tinha razão! Imaginava já um belo prato de massa italiana, com aquele manjericão todo...

- Trouxe cerejas! Quem quer?
Correram os três para a caixa das cerejas e foi uma brincadeira pegada.
“Cerejas pretas, vermelhas
Perdidas pelos caminhos
São os brincos das orelhas
Das filhas dos pobrezinhos”,
Cantou o Ouricinho. E já trazia duas cerejas penduradas das orelhinhas. Como é que ele conhecia aqueles versos? O Ratinho esse, sempre instruído e mais intelectual, preferiu referir-se ao “tempo das cerejas”, a canção dos tempos revolucionários.


Quand nous chanterons au temps des cerise
 le gai rossignol et le merle moqueu
 seront tous en fête…
Des merles auront la folie en tête
 et les amoureux le soleil au coeur.”

Melros, rouxinóis e apaixonados com o sol no coração. E acreditam, queridos leitores? Há bocadinho, vi um dos jovens pombos empoleirado sozinho no parapeito da varanda. 

E, ao cair da noite, a pombinha pintalgada de negro estava a olhar a paisagem, tentando equilibrar-se nas patinhas frágeis. E esta manhã, õ surpresa!, estavam os quatro na varanda do prédio do lado! 
Afinal já sabem voar! E agora?

Enfim, parece que a paz vai voltar por estes lados. Cerejas, manjericão e “macheroni al pomodoro, aglio e basilico”… O que queremos mais?
Ouvir os “Noir Désir” cantando Le temps des cerises, numa versão rock…

quinta-feira, 25 de junho de 2015

Quem não se lembra da série "The Avengers"? Morreu John Steed...

Morreu Patrick Macnee o inesquecível herói da série Os Vingadores. Tinha 93 anos, mas nunca envelhecerá! Nem ele, nem nós...




terça-feira, 23 de junho de 2015

A minha amiga Sara Dunhirst


Sara foi a primeira amiga em Telavive. Eu tinha chegado nos fins de Agosto com o meu cão; o Manuel já lá estava há um ou dois meses. Estávamos instalados num hotel - o Yamit Hotel- com uma vista ampla sobre o mar e a Promenade ou "Tayelet" que ladeava a praia, até Jaffa.
Todas as tardes, via o sol afundar-se nas águas da baía, vermelho e enorme.
A essa hora, o azul cerúleo era substituído por um alaranjado brilhante, e as nuvens brancas, baças e horizontais, inebriavam-me.
A essa hora, saíamos a passear, com o nosso cão, ao longo do paredão calcetado de pedrinhas pretas.
A Promenade, ao fim da tarde e à noite, era um bulício constante, uma multidão de gente de todas as idades, que se agitava procurando um pouco de fresco junto do mar.
Promenade by night (net)

Era Verão, e, sentados nas esplanadas, ou mesmo na areia da praia, a juventude barulhenta, vivia de dia e de noite, intensamente, como se fosse o último dia de vida -que tantas vezes é efémera em Israel. 
Promenade by night (net)

A Guerra do Líbano, ao Norte de Israel, ainda não terminara e quantas vezes ouvi chorar, ao chegar a notícia de mais um filho morto. Uma noite, passeávamos no jardim Ben Gurion e fiquei siderada com a dor de uns gritos de mulher que, quase subitamente, se calaram. 

A Susana explicou-me no dia seguinte quem era a mãe que se lamentava. Morava do lado de lá da nossa rua que era a Lassalle, detrás exactamente da Ben Gurion.
De um modo geral, porém, tentava-se aproveitar a vida ao máximo e vivê-la quanto mais alegremente se podia.
A minha amiga Susana (MJF)

Bastava um pouco de sol para que nos sábados de manhã  viessem dançar, novos e velhos, ao som de velhas músicas dos kibbutz, num leitor de CDs portátil. Os cantos eram bonitos e ficávamos a ouvi-los.
Recordo outra situação muito especial que se passou no nosso prédio. Uma tarde a Rachel – que era a nossa senhoria que morava no andar de cima - veio avisar-nos de que talvez fizessem um pouco de barulho à noite, porque se reuniam com outros amigos (eles eram kibutznikim) para lembrarem os amigos mortos. 
À noite, abri a porta para os ouvir cantar. Cantavam, sentados nos degraus da casa. Eram melancólicas, belas melodias, cantadas com muita nostalgia.
Telavive (imagem da net)

Para o lado norte, a seguir à Marina e aos barcos brancos poisados nas águas calmas do Mediterrâneo, estendiam-se os toldos de uma praia recatada, onde algumas mães procuravam isolar-se com os filhos pequenos. Era a praia dos judeus ortodoxos que preferiam não ver “certas coisas”, diziam-me.
Para Sul, era a praia da “outra” Telavive, laica, sempre em movimento e agitação. Ia dizer a Telavive “panteísta” porque há sempre um deus das coisas grandes e outro das pequenas que todos esperamos que exista. 

A praia onde as ondas, sem a protecção da Marina, se erguiam altas, revoltas, estrondosas, e a espuma se desfazia em rendas brancas. E os mergulhos nas vagas, os empurrões, os gritos e os risos eram costumados.
Promenade e a calçada preta e branca (net)

Bastava-me atravessar a passagem da Kikar Atarim, a Praça onde estava a discoteca mais absurda que vi na minha vida. Ao chegar às escadarias que se debruçavam sobre o mar,  junto do Café Panorama, avistava a baía enorme, onde os corpos bronzeados se estendiam ao sol. O Zac adorava conhecer novos lugares e não parávamos o dia todo!

Quando descia a noite, as esplanadas alargavam-se em sofás cheios de almofadas de cores vivas, ladeados de mesinhas baixas. A música inundava os espaços, saindo dos carros entrando pelas janelas, sempre abertas e sem cortinados. Observava esses interiores e espantava-me de ver tantos quadros e livros. A música continuava noite adentro. Um dia um motorista de táxi disse-me que havia um momento em que parava, talvez entre as 4 e as 6 da manhã, mas nem sempre. Por isso Telavive se chamava há’ir bli hafssaka, a “cidade sem repouso”.
 Da janela do Hotel Yamit o meu cão e eu contemplávamos o cair do sol sonbre o mar!
O Zac, na varanda do Hotel Yamit (MJF)


A praia pertencia a todos: os jogos de badmington, ou ténis, para os mais novos, ou o xadrez e as cartas para os mais velhos - que encostavam as cadeiras ao paredão protector apoiando os tabuleiros em bancos de madeira ou nas mesas de ferro pintado de branco que traziam provavelmente de casa. Telavive foi a cidade mais informal que conheci. Ali descobri os meus vizinhos que vinham passear os cães à noite, na nossa rua, a rehov Lassalle, de chinelos e robe.
a minha rua, a rehov Lassalle (MJF)

E, por tudo e por nada, perguntavam-me quem era, de onde vinha, quanto ganhava o meu marido e a razão por que estava em Telavive. E - importantíssimo! -  se gostava de lá viver...
Um dia, meses mais tarde, aconteceu-me ter de ir pedir arroz à vizinha de cima, a Rachel. Tinha visitas para o jantar e esquecera-me de comprar arroz. Era sexta-feira, dia de shabat, e as lojas já estavam fechadas. Ficou triste porque também não tinha. De repente, pôs a mão no meu braço e perguntou: “Maria, tu não te importas? Tenho ali arroz cozido que sobrou do jantar de ontem e é muita quantidade! Queres levar?”
E eu aceitei e vim a rir-me no elevador, com um grande pirex de arroz nos braços.

Mas isso foi já muito mais tarde e já me tinha habituado a muita coisa da simplicidade do israelita e da solidariedade que existia. Estávamos a chegar ao fim do século XX e a vida não era simples, no entanto, essa solidariedade humana, a ajuda mútua, existia como em nenhum outro país que conheci. Rápida, sem pensar.
rehov Ben Yehuda

Basta lembrar aquela vez em que o meu cão foi mordido por uma espécie de pitbull. Ligeiramente, por sorte! Eu peguei logo no meu raposinho querido e pu-lo ao alto, com os braços esticados para o céu. De repente, as lojas da esquina da Ben Yehuda com a Lassalle esvaziaram-se. Cinco, dez pessoas vieram ajudar-me. E deviam ouvir o que disseram à pobre dona do outro cão…

Certas noites, havia fogueiras acesas na praia. E grupos que ficavam a falar e a tocar guitarra, até nascer a manhã. Uns dormiam, os outros falavam alto, os outros limitavam-se a contemplar o mar iluminado pelos candeeiros da Promenade.
a praia em Telavive (MJF)

Mas eu queria falar da Sara Dunhirst. A minha amiga era uma judia polaca que teria uns setenta e poucos anos. Viera criança para Israel, com os pais e irmãos, antes da IIª Guerra. O resto da família ficara na Polónia – tios, primos, avós - e desapareceram todos nos campos de concentração. Pouco me falava desses tempos, a que acenava, apenas, com uma forma de pudor.


Era uma mulher pequenina, elegante, de gestos suaves. Uma mulher doce mas de personalidade forte. A pele branca e acetinada, cheia de pó-de-arroz bem cheiroso, quase não tinha rugas, e destacavam-se os lábios vermelhos que o bâton arredondava. Os cabelos estavam rigorosamente pintados de negro e as sobrancelhas, desenhadas a lápis, curvavam-se sobre os olhos pequeninos, que um traço preto rasgava. Devia ter sido uma bela mulher.
Tinha uma loja de artigos domésticos, de marcas italianas, na rehov Ben Yehuda.
Uma manhã, já estava eu a viver na casa da Rehov Lassalle, que é perpendicular à rua Ben Yehuda, entrei à procura de chávenas de chá. E começámos a falar como se nos conhecêssemos. E lá vieram as tais perguntas que me habituara a ouvir…
“De onde vinha? Por que estava em Israel? Ia ficar para sempre? Gostava?”
Quando lhe disse que íamos viver em Telavive uns anos, vi que sentiu prazer com a ideia.
- É bom. Israel é um país que precisa de gente. Gostas?
“Senti” que me tratava por “tu”, apesar de só ter sabido depois que, em hebraico, não existe outro tratamento.
- Estou há poucos dias, mas gosto!
- Têm-te recebido bem?...
Disse que sim, era verdade. Havia uma abertura grande e uma curiosidade nas pessoas com quem me cruzava no dia a dia.  Deslumbrava-me, na descoberta da cidade solar. Desde a luz cortante do sol, ao calor húmido que tanto detestara noutros sítios, tudo me era agradável.
A vida era intensa e havia uma forma de energia no ar que respirava. Ia provando as bebidas refrescantes com sabores desconhecidos: a granita de limão com hortelã, o sumo de cenoura com laranja ou o sumo de romã, que se vendiam, a cada esquina, nos quiosques da cidade.

Nesse primeiro dia, Sara ofereceu-me uma das quatro chávenas que lhe comprei.
- São as boas vindas…
O marido chamava-se Zvi e era muito mais velho do que ela. Ou parecia.
 “Há muito que não fala”, contava-me. Nunca me explicou porquê.
Ele percebia o que eu lhe dizia em inglês, e, mais tarde, as minhas curtas frases em hebraico. Sacudia a cabeça, sorria. Beijava-me sempre a mão quando me cumprimentava, inclinando um pouco o busto. Sentava-se, fora da loja, numa cadeira de praia, pousando as duas mãos abertas sobre os joelhos. E ficava a ver o movimento da rua. Com o rosto magro atento e calmo, o cabelo branco cortado em escova, e a camisa azul, ou branca, sempre bem passada, calças de algodão fresco, e umas sandálias de couro nos pés.
O meu cão Zac, habituara-se a ficar ao lado dele. Antes de eu entrar na loja, Zvi apoderava-se da trela e começava a fazer-lhe festas. Ficavam os dois, silenciosos, a ver a rua enquanto eu ficava horas e horas a conversar com a Sara. Porque ela era uma pessoa invulgar, contava coisas interessantes e era bom ouvi-la. Para quem chegara de outro mundo, sem conhecer ninguém nem saber a língua, era um bem de Deus!
E ela gostava de me ouvir. Contava-lhe histórias dos meus filhos, longe, do cão, do modo como o meu filho o encontrara, abandonado ao pé de um café, em Roma. E falava da minha vida a girar por vários continentes, descobrindo mundos e costumes tão diferentes, ganhando experiência. 
Contava dos amigos que encontrara em cada canto do mundo. Falava da Àfrica que conhecera, São Tomé.
Foi ela que lembrou uma frase de Aldous Huxley que sempre gostei de citar: “ A experiência não é o que se viveu, mas sim o que se fez com o que se viveu.” Era bem verdade.
Durante os meus anos de Telavive, nunca deixei de a ir visitar. Levava-lhe uma flor, porque a florista era perto e, ao passar em frente das flores coloridas, pensava nela.
”Que flor levo? Uma rosa, uma orquídea, uma tulipa?”
Escolhia a mais bonita e fresca, naquela manhã. Sara protestava e não queria aceitar.
- É muito dinheiro! Não podes estar sempre a gastar dinheiro comigo...
Eu podia, e era um prazer para mim oferecer-lhe uma coisa bela.
E dizia a frase de Keats de que tanto gosto: “A thing of beauty is a joy forever”. (*)
- Tens de aceitar! É a beleza que nos ajuda a viver…
Ela sorria, contente, e aceitava.
- Tens razão, a beleza...
Punha a flor numa jarra, ou num pequeno copo de cristal, na prateleira, cheia de artigos de cozinha, por detrás da cadeira onde se sentava.
- Da próxima vez, não compras nada! Faz-me esse favor...

Da “próxima vez”, era ela que me oferecia uma caneca para o chá, às florinhas, ou uma luva de cozinha, duas velas de que eu precisava.
- É para o shabbat?, perguntava.
Eu não respondia, e escolhia duas velas vermelhas porque alegravam a casa e gostava da cor que me lembrava o Natal.~
- Não, dessa cor não, Maria! Para o shabbat é melhor o branco, duas. Mas podes escolher tu, claro...
Eu comprava as vermelhas e ela oferecia-me duas brancas.

Muitas vezes, parava só pelo gosto de a ver, de conversarmos. Falava-me das exposições de pintura que havia na cidade, do ballet, dos concertos a que ia.
- O Zvi vai também, mas não sei se ele ouve e se entende. Fica muito sério, nunca adormece…
Olhava-me, preocupada, com um sorriso triste.
- Das exposições gosta muito. Pára, a olhar para os quadros, tempos infinitos. Não quero deixá-lo sozinho em casa e eu gosto tanto de ir...
- Fazes bem em ir com ele. Não importa se ele ouve, ou não, importa é ficar contente.
E, de facto, que importava saber se ele ouvia?
- Pode ver a beleza dos instrumentos, as pessoas e para  as luzes da sala. Ou, mesmo, escutar o silêncio antes do sinal do “maestro”...
- Tens razão. É tão belo tudo isso. Pequenas coisas, pequenos gestos, o brilho dos arcos dos violinos, a elegância da “viola da gamba”...
Hesitava na pronúncia italiana e perguntava:
- Violoncelo, não é?
- Sim. Sim, violoncelo. Para mim, “viola da gamba” é mais bonito…
Ela concordava. Não tinha fim a nossa conversa.

Quando o meu cão morreu, num dia de Agosto, estive dias ou meses, sem voltar à loja da Sara. Não era capaz de ir aos sítios, onde fora com ele. Não conseguia responder, sem chorar, às pessoas, que me perguntavam por que não o tinha trazido comigo.
“O meu cão, hamud sheli”, como eu lhe chamava.
O vazio era enorme nesses dias, e preferi fugir para outras ruas menos conhecidas de nós dois.


O Verão acabou, chegou o Outono, e um dia voltei à procura da Sara. Ela fixou-me, séria. Baixou os olhos e olhou para o chão, como se procurasse alguma coisa, aos meus pés.
Lembro-me hoje, passado tanto tempo, e é como se a ouvisse dizer, na sua voz suave:

- Estás triste...
- O meu cão morreu...
Zvi aproximou-se, de mãos estendidas, espantado por eu estar sozinha.  Sabia que procurava a trela do Zac. Depois, sacudiu a cabeça e sentou-se na cadeira a olhar para a rua, como se não me tivesse visto.
Sara agitou-se, a mexer nas prateleiras.
- Tinha uma coisa guardada para ti...
Segurava um bule de porcelana inglesa, nas mãos fechadas em concha. Deu-mo e pousou a mão em cima das minhas, apertando-as.
- “Ani ahavti et hakelev shelach, hu kelev hamud meod...”- disse, com doçura, na sua língua.
Acrescentou, agora na língua que usávamos, o inglês -alheia às duas.
- O teu cão estava cansado. Sabes, às vezes a vida pesa. São muitos anos. Vivemos muito e ficamos cansados...
- Sim, tens razão. Estava cansado e doente, foi-se embora para sempre...
Olhei para ela, agradecida.

Passaram muitos anos, muitos lugares outra vez. Telefonava-lhe nos primeiros tempos, já de outro país. O vento arrastava as folhas secas e faltava-me o calor e a alegria de Telavive. Ela disse:

- Que bom! Sabes? É uma alegria enorme ouvir a tua voz! Maior do que se me tivesse saído a lotaria!
Imaginei o rosto branco e perfumado, o bâton vermelho. Ri-me e pensei que era verdade. Ouvir a sua voz dava-me uma alegria imensa também. Havia uma luz estranha que conseguia recordar. 

Quando voltei a Telavive, cinco anos depois, desci a Ben Yehuda à procura dela, se bem que tivesse um pressentimento mau. A loja já não existia e havia outra senhora que me explicou que “ela” tinha partido.

Partido para onde? Inútil perguntar. O seu número de telefone já não respondia.
A Sara, o Zvi, o Zac…
 “Tanta saudade”, pensei…
Com estava escrito no jardim do Ulpan da minha rua: "Shadows are memories". As sombras são memórias e essas ficam para sempre.
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Notas:

"Ani ahavti et hakelev shelach. Hu kelev hamud meod", em hebraico. Tradução: “Eu gostava do teu cão. Era um cão amoroso..."
"Hamud sheli": "meu adorado, meu querido". (Hamud quer dizer simpático, encantador...)
Ulpan: escola de "full immersion", para os imigrantes em Israel, aprenderem hebraico.
(*) John Keats (1795-1821), no início do poema Endymion:

“A thing of beauty is a joy for ever:
Its loveliness increases; it will never
Pass into nothingness; but still will keep
a bower quiet for us, and a sleep
full of dreams, and health, and quiet breathing…”