terça-feira, 23 de junho de 2015

A minha amiga Sara Dunhirst


Sara foi a primeira amiga em Telavive. Eu tinha chegado nos fins de Agosto com o meu cão; o Manuel já lá estava há um ou dois meses. Estávamos instalados num hotel - o Yamit Hotel- com uma vista ampla sobre o mar e a Promenade ou "Tayelet" que ladeava a praia, até Jaffa.
Todas as tardes, via o sol afundar-se nas águas da baía, vermelho e enorme.
A essa hora, o azul cerúleo era substituído por um alaranjado brilhante, e as nuvens brancas, baças e horizontais, inebriavam-me.
A essa hora, saíamos a passear, com o nosso cão, ao longo do paredão calcetado de pedrinhas pretas.
A Promenade, ao fim da tarde e à noite, era um bulício constante, uma multidão de gente de todas as idades, que se agitava procurando um pouco de fresco junto do mar.
Promenade by night (net)

Era Verão, e, sentados nas esplanadas, ou mesmo na areia da praia, a juventude barulhenta, vivia de dia e de noite, intensamente, como se fosse o último dia de vida -que tantas vezes é efémera em Israel. 
Promenade by night (net)

A Guerra do Líbano, ao Norte de Israel, ainda não terminara e quantas vezes ouvi chorar, ao chegar a notícia de mais um filho morto. Uma noite, passeávamos no jardim Ben Gurion e fiquei siderada com a dor de uns gritos de mulher que, quase subitamente, se calaram. 

A Susana explicou-me no dia seguinte quem era a mãe que se lamentava. Morava do lado de lá da nossa rua que era a Lassalle, detrás exactamente da Ben Gurion.
De um modo geral, porém, tentava-se aproveitar a vida ao máximo e vivê-la quanto mais alegremente se podia.
A minha amiga Susana (MJF)

Bastava um pouco de sol para que nos sábados de manhã  viessem dançar, novos e velhos, ao som de velhas músicas dos kibbutz, num leitor de CDs portátil. Os cantos eram bonitos e ficávamos a ouvi-los.
Recordo outra situação muito especial que se passou no nosso prédio. Uma tarde a Rachel – que era a nossa senhoria que morava no andar de cima - veio avisar-nos de que talvez fizessem um pouco de barulho à noite, porque se reuniam com outros amigos (eles eram kibutznikim) para lembrarem os amigos mortos. 
À noite, abri a porta para os ouvir cantar. Cantavam, sentados nos degraus da casa. Eram melancólicas, belas melodias, cantadas com muita nostalgia.
Telavive (imagem da net)

Para o lado norte, a seguir à Marina e aos barcos brancos poisados nas águas calmas do Mediterrâneo, estendiam-se os toldos de uma praia recatada, onde algumas mães procuravam isolar-se com os filhos pequenos. Era a praia dos judeus ortodoxos que preferiam não ver “certas coisas”, diziam-me.
Para Sul, era a praia da “outra” Telavive, laica, sempre em movimento e agitação. Ia dizer a Telavive “panteísta” porque há sempre um deus das coisas grandes e outro das pequenas que todos esperamos que exista. 

A praia onde as ondas, sem a protecção da Marina, se erguiam altas, revoltas, estrondosas, e a espuma se desfazia em rendas brancas. E os mergulhos nas vagas, os empurrões, os gritos e os risos eram costumados.
Promenade e a calçada preta e branca (net)

Bastava-me atravessar a passagem da Kikar Atarim, a Praça onde estava a discoteca mais absurda que vi na minha vida. Ao chegar às escadarias que se debruçavam sobre o mar,  junto do Café Panorama, avistava a baía enorme, onde os corpos bronzeados se estendiam ao sol. O Zac adorava conhecer novos lugares e não parávamos o dia todo!

Quando descia a noite, as esplanadas alargavam-se em sofás cheios de almofadas de cores vivas, ladeados de mesinhas baixas. A música inundava os espaços, saindo dos carros entrando pelas janelas, sempre abertas e sem cortinados. Observava esses interiores e espantava-me de ver tantos quadros e livros. A música continuava noite adentro. Um dia um motorista de táxi disse-me que havia um momento em que parava, talvez entre as 4 e as 6 da manhã, mas nem sempre. Por isso Telavive se chamava há’ir bli hafssaka, a “cidade sem repouso”.
 Da janela do Hotel Yamit o meu cão e eu contemplávamos o cair do sol sonbre o mar!
O Zac, na varanda do Hotel Yamit (MJF)


A praia pertencia a todos: os jogos de badmington, ou ténis, para os mais novos, ou o xadrez e as cartas para os mais velhos - que encostavam as cadeiras ao paredão protector apoiando os tabuleiros em bancos de madeira ou nas mesas de ferro pintado de branco que traziam provavelmente de casa. Telavive foi a cidade mais informal que conheci. Ali descobri os meus vizinhos que vinham passear os cães à noite, na nossa rua, a rehov Lassalle, de chinelos e robe.
a minha rua, a rehov Lassalle (MJF)

E, por tudo e por nada, perguntavam-me quem era, de onde vinha, quanto ganhava o meu marido e a razão por que estava em Telavive. E - importantíssimo! -  se gostava de lá viver...
Um dia, meses mais tarde, aconteceu-me ter de ir pedir arroz à vizinha de cima, a Rachel. Tinha visitas para o jantar e esquecera-me de comprar arroz. Era sexta-feira, dia de shabat, e as lojas já estavam fechadas. Ficou triste porque também não tinha. De repente, pôs a mão no meu braço e perguntou: “Maria, tu não te importas? Tenho ali arroz cozido que sobrou do jantar de ontem e é muita quantidade! Queres levar?”
E eu aceitei e vim a rir-me no elevador, com um grande pirex de arroz nos braços.

Mas isso foi já muito mais tarde e já me tinha habituado a muita coisa da simplicidade do israelita e da solidariedade que existia. Estávamos a chegar ao fim do século XX e a vida não era simples, no entanto, essa solidariedade humana, a ajuda mútua, existia como em nenhum outro país que conheci. Rápida, sem pensar.
rehov Ben Yehuda

Basta lembrar aquela vez em que o meu cão foi mordido por uma espécie de pitbull. Ligeiramente, por sorte! Eu peguei logo no meu raposinho querido e pu-lo ao alto, com os braços esticados para o céu. De repente, as lojas da esquina da Ben Yehuda com a Lassalle esvaziaram-se. Cinco, dez pessoas vieram ajudar-me. E deviam ouvir o que disseram à pobre dona do outro cão…

Certas noites, havia fogueiras acesas na praia. E grupos que ficavam a falar e a tocar guitarra, até nascer a manhã. Uns dormiam, os outros falavam alto, os outros limitavam-se a contemplar o mar iluminado pelos candeeiros da Promenade.
a praia em Telavive (MJF)

Mas eu queria falar da Sara Dunhirst. A minha amiga era uma judia polaca que teria uns setenta e poucos anos. Viera criança para Israel, com os pais e irmãos, antes da IIª Guerra. O resto da família ficara na Polónia – tios, primos, avós - e desapareceram todos nos campos de concentração. Pouco me falava desses tempos, a que acenava, apenas, com uma forma de pudor.


Era uma mulher pequenina, elegante, de gestos suaves. Uma mulher doce mas de personalidade forte. A pele branca e acetinada, cheia de pó-de-arroz bem cheiroso, quase não tinha rugas, e destacavam-se os lábios vermelhos que o bâton arredondava. Os cabelos estavam rigorosamente pintados de negro e as sobrancelhas, desenhadas a lápis, curvavam-se sobre os olhos pequeninos, que um traço preto rasgava. Devia ter sido uma bela mulher.
Tinha uma loja de artigos domésticos, de marcas italianas, na rehov Ben Yehuda.
Uma manhã, já estava eu a viver na casa da Rehov Lassalle, que é perpendicular à rua Ben Yehuda, entrei à procura de chávenas de chá. E começámos a falar como se nos conhecêssemos. E lá vieram as tais perguntas que me habituara a ouvir…
“De onde vinha? Por que estava em Israel? Ia ficar para sempre? Gostava?”
Quando lhe disse que íamos viver em Telavive uns anos, vi que sentiu prazer com a ideia.
- É bom. Israel é um país que precisa de gente. Gostas?
“Senti” que me tratava por “tu”, apesar de só ter sabido depois que, em hebraico, não existe outro tratamento.
- Estou há poucos dias, mas gosto!
- Têm-te recebido bem?...
Disse que sim, era verdade. Havia uma abertura grande e uma curiosidade nas pessoas com quem me cruzava no dia a dia.  Deslumbrava-me, na descoberta da cidade solar. Desde a luz cortante do sol, ao calor húmido que tanto detestara noutros sítios, tudo me era agradável.
A vida era intensa e havia uma forma de energia no ar que respirava. Ia provando as bebidas refrescantes com sabores desconhecidos: a granita de limão com hortelã, o sumo de cenoura com laranja ou o sumo de romã, que se vendiam, a cada esquina, nos quiosques da cidade.

Nesse primeiro dia, Sara ofereceu-me uma das quatro chávenas que lhe comprei.
- São as boas vindas…
O marido chamava-se Zvi e era muito mais velho do que ela. Ou parecia.
 “Há muito que não fala”, contava-me. Nunca me explicou porquê.
Ele percebia o que eu lhe dizia em inglês, e, mais tarde, as minhas curtas frases em hebraico. Sacudia a cabeça, sorria. Beijava-me sempre a mão quando me cumprimentava, inclinando um pouco o busto. Sentava-se, fora da loja, numa cadeira de praia, pousando as duas mãos abertas sobre os joelhos. E ficava a ver o movimento da rua. Com o rosto magro atento e calmo, o cabelo branco cortado em escova, e a camisa azul, ou branca, sempre bem passada, calças de algodão fresco, e umas sandálias de couro nos pés.
O meu cão Zac, habituara-se a ficar ao lado dele. Antes de eu entrar na loja, Zvi apoderava-se da trela e começava a fazer-lhe festas. Ficavam os dois, silenciosos, a ver a rua enquanto eu ficava horas e horas a conversar com a Sara. Porque ela era uma pessoa invulgar, contava coisas interessantes e era bom ouvi-la. Para quem chegara de outro mundo, sem conhecer ninguém nem saber a língua, era um bem de Deus!
E ela gostava de me ouvir. Contava-lhe histórias dos meus filhos, longe, do cão, do modo como o meu filho o encontrara, abandonado ao pé de um café, em Roma. E falava da minha vida a girar por vários continentes, descobrindo mundos e costumes tão diferentes, ganhando experiência. 
Contava dos amigos que encontrara em cada canto do mundo. Falava da Àfrica que conhecera, São Tomé.
Foi ela que lembrou uma frase de Aldous Huxley que sempre gostei de citar: “ A experiência não é o que se viveu, mas sim o que se fez com o que se viveu.” Era bem verdade.
Durante os meus anos de Telavive, nunca deixei de a ir visitar. Levava-lhe uma flor, porque a florista era perto e, ao passar em frente das flores coloridas, pensava nela.
”Que flor levo? Uma rosa, uma orquídea, uma tulipa?”
Escolhia a mais bonita e fresca, naquela manhã. Sara protestava e não queria aceitar.
- É muito dinheiro! Não podes estar sempre a gastar dinheiro comigo...
Eu podia, e era um prazer para mim oferecer-lhe uma coisa bela.
E dizia a frase de Keats de que tanto gosto: “A thing of beauty is a joy forever”. (*)
- Tens de aceitar! É a beleza que nos ajuda a viver…
Ela sorria, contente, e aceitava.
- Tens razão, a beleza...
Punha a flor numa jarra, ou num pequeno copo de cristal, na prateleira, cheia de artigos de cozinha, por detrás da cadeira onde se sentava.
- Da próxima vez, não compras nada! Faz-me esse favor...

Da “próxima vez”, era ela que me oferecia uma caneca para o chá, às florinhas, ou uma luva de cozinha, duas velas de que eu precisava.
- É para o shabbat?, perguntava.
Eu não respondia, e escolhia duas velas vermelhas porque alegravam a casa e gostava da cor que me lembrava o Natal.~
- Não, dessa cor não, Maria! Para o shabbat é melhor o branco, duas. Mas podes escolher tu, claro...
Eu comprava as vermelhas e ela oferecia-me duas brancas.

Muitas vezes, parava só pelo gosto de a ver, de conversarmos. Falava-me das exposições de pintura que havia na cidade, do ballet, dos concertos a que ia.
- O Zvi vai também, mas não sei se ele ouve e se entende. Fica muito sério, nunca adormece…
Olhava-me, preocupada, com um sorriso triste.
- Das exposições gosta muito. Pára, a olhar para os quadros, tempos infinitos. Não quero deixá-lo sozinho em casa e eu gosto tanto de ir...
- Fazes bem em ir com ele. Não importa se ele ouve, ou não, importa é ficar contente.
E, de facto, que importava saber se ele ouvia?
- Pode ver a beleza dos instrumentos, as pessoas e para  as luzes da sala. Ou, mesmo, escutar o silêncio antes do sinal do “maestro”...
- Tens razão. É tão belo tudo isso. Pequenas coisas, pequenos gestos, o brilho dos arcos dos violinos, a elegância da “viola da gamba”...
Hesitava na pronúncia italiana e perguntava:
- Violoncelo, não é?
- Sim. Sim, violoncelo. Para mim, “viola da gamba” é mais bonito…
Ela concordava. Não tinha fim a nossa conversa.

Quando o meu cão morreu, num dia de Agosto, estive dias ou meses, sem voltar à loja da Sara. Não era capaz de ir aos sítios, onde fora com ele. Não conseguia responder, sem chorar, às pessoas, que me perguntavam por que não o tinha trazido comigo.
“O meu cão, hamud sheli”, como eu lhe chamava.
O vazio era enorme nesses dias, e preferi fugir para outras ruas menos conhecidas de nós dois.


O Verão acabou, chegou o Outono, e um dia voltei à procura da Sara. Ela fixou-me, séria. Baixou os olhos e olhou para o chão, como se procurasse alguma coisa, aos meus pés.
Lembro-me hoje, passado tanto tempo, e é como se a ouvisse dizer, na sua voz suave:

- Estás triste...
- O meu cão morreu...
Zvi aproximou-se, de mãos estendidas, espantado por eu estar sozinha.  Sabia que procurava a trela do Zac. Depois, sacudiu a cabeça e sentou-se na cadeira a olhar para a rua, como se não me tivesse visto.
Sara agitou-se, a mexer nas prateleiras.
- Tinha uma coisa guardada para ti...
Segurava um bule de porcelana inglesa, nas mãos fechadas em concha. Deu-mo e pousou a mão em cima das minhas, apertando-as.
- “Ani ahavti et hakelev shelach, hu kelev hamud meod...”- disse, com doçura, na sua língua.
Acrescentou, agora na língua que usávamos, o inglês -alheia às duas.
- O teu cão estava cansado. Sabes, às vezes a vida pesa. São muitos anos. Vivemos muito e ficamos cansados...
- Sim, tens razão. Estava cansado e doente, foi-se embora para sempre...
Olhei para ela, agradecida.

Passaram muitos anos, muitos lugares outra vez. Telefonava-lhe nos primeiros tempos, já de outro país. O vento arrastava as folhas secas e faltava-me o calor e a alegria de Telavive. Ela disse:

- Que bom! Sabes? É uma alegria enorme ouvir a tua voz! Maior do que se me tivesse saído a lotaria!
Imaginei o rosto branco e perfumado, o bâton vermelho. Ri-me e pensei que era verdade. Ouvir a sua voz dava-me uma alegria imensa também. Havia uma luz estranha que conseguia recordar. 

Quando voltei a Telavive, cinco anos depois, desci a Ben Yehuda à procura dela, se bem que tivesse um pressentimento mau. A loja já não existia e havia outra senhora que me explicou que “ela” tinha partido.

Partido para onde? Inútil perguntar. O seu número de telefone já não respondia.
A Sara, o Zvi, o Zac…
 “Tanta saudade”, pensei…
Com estava escrito no jardim do Ulpan da minha rua: "Shadows are memories". As sombras são memórias e essas ficam para sempre.
_____________
Notas:

"Ani ahavti et hakelev shelach. Hu kelev hamud meod", em hebraico. Tradução: “Eu gostava do teu cão. Era um cão amoroso..."
"Hamud sheli": "meu adorado, meu querido". (Hamud quer dizer simpático, encantador...)
Ulpan: escola de "full immersion", para os imigrantes em Israel, aprenderem hebraico.
(*) John Keats (1795-1821), no início do poema Endymion:

“A thing of beauty is a joy for ever:
Its loveliness increases; it will never
Pass into nothingness; but still will keep
a bower quiet for us, and a sleep
full of dreams, and health, and quiet breathing…”




4 comentários:

  1. Que memórias bonitas!
    É bom ter tanta coisa boa para recordar, para contar...
    Gostei muito de ver as fotos, algumas já tinha visto. As suas amigas eram duas senhoras muito bonitas.

    A foto das flores é muito linda; gosto muito dessa flor e creio que nunca tinha visto essa cor.

    Um beijinho grande:)

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  2. Sempre que falas de Telavive transmites un sentimento de grande carinho, nota-se que foste lá feliz. Cada lugar tem o seu encanto, tu disso sabes bastante. E tudo acaba por passar.
    Bjs

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  3. Maravilhoso. Hoje também é o seu dia. Só me lembrei no masculino mas a Maria João tem uma feminilidade e uma sensibilidade extraordinária.
    Tal como a Isabel, gosto de brincos de princesa.

    Um beijinho para as duas.
    Outro especial pelo seu dia, dia de Sâo João Baptista, santo que comunga no nome.:))

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  4. ~~~
    ~ Uma relação muito bonita
    que mereceu uma descrição amorosa e de imensa humanidade.

    ~ As memórias não são apenas sombras..
    ~ Por vezes, contamos histórias dos que amámos e já partiram...

    ~ Muito pertinente, a evocação da citação de Aldous Huxley. ~

    ~ ~ ~ ~ ~ Beijinhos, ~ ~ ~ ~ ~
    ~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

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