vidrinhos de Veneza, de Burano
Pois
é, fui viajar uns dias e, desta vez, “eles” ficaram em casa. Eles, claro, são o
Ratinho Poeta e o Ouricinho Dan.
Andei por Veneza e Trieste. De avião, de comboio e de vaporetto. Voltámos ontem.
Estão
tristes, ali, num canto. Calados, a ver-me acabar de desfazer as malas, atarefada. Os
meus amigos se calhar teriam gostado de ir. Ao olhá-los, pensei que estavam com inveja do
burrinho Alonso, que levou as chaves dos cadeados. Percebi que tinha de lhes explicar
alguma coisa. Tinha de quebrar aquele silêncio tão sentido da parte deles.
-
Era complicado, amigos queridos. Preparei a viagem a correr. Achei arriscado irem, foi melhor ficarem em casa…
-
E por que não nos perguntaste?
Era
o Ouricinho, queixoso.
-
Deixa lá, sei que fizeste tudo a correr, disse o Ratinho.
E
não resistiu à ironia.
-
Como sempre…
-
Tens razão. E levámos coisas a mais!
-
Como sempre, repetiu ele abanando a cabeça.
-
Fomos carregados de roupas inúteis. Um peso horrível e um desconforto a
arrastar as malas de rodinhas por aqui e por ali.
-
Ora…tu vais sempre carregada! Com tralhas e mais tralhas que nunca usas!
Tinha
razão o Ratinho. Olhavam-me os dois de dentro da gaveta da cómoda. O Ouricinho calara-se e estava melancólico, de olhar perdido no vazio. De repente, apontou para o
burrinho Alonso:
-
Mas a ele, levaste-o!
-
Tive que levar, Ouricinho. Ele é que tem as chaves das malas.
-
Sim, claro. Eu é que sou o porta-chaves.
E
o burrinho Alonso inchou o peito onde, na camisola, se destacava uma ferradura
bordada.
-
Eu também era capaz de as levar!, resmungou o Ouricinho.
Tinha pegado na chave de um cadeado
pequenino e girava-a na patinha.
-
Não, disse o Alonso. Não é o teu trabalho, tu não foste preparado para seres porta-chaves!
É uma responsabilidade.
Eu
corroborei a afirmação, mas pensei que era demasiado convencido o Alonso:
-
Sim, Ouricinho. Ele é que sabe levar as chaves e encontrá-las quando são
precisas.
Era
uma desculpa inventada a correr. O Ratinho percebeu e respondeu logo:
-
Não tens que te justificar! A escolha é tua. Nós gostamos de ti e aceitamos o
que decidires. Estávamos só com um bocadinho de inveja do Alonso que se fartou
de ver coisas bonitas. Imagino!
O Ouricinho acrescentou:
- Sim! Trieste e Veneza, são lindas de certeza… As pontes, a Laguna, os vaporetti dum lado para o outro! Ele viu tudo isso...
-
Oh! Eu?…eu fiquei sempre a tomar conta das chaves, disse o burrinho. E não vi nada.
Eles
riram-se, finalmente, aliviados e bem dispostos. Que malandrecos! Eu pensava de
facto que tinha sido melhor para eles ficarem em casa. Continuei:
-
Por lá houve chuvadas horríveis, ventanias…
-
Por cá também!, não resistiu o Ouricinho, a protestar um pouco mais. Viste como está a varanda, não viste? Os vasos
no chão, a terra entornada, etc.
-
Sim, vi. Mas por lá foi pior! Enchentes, tufões por todo o norte da Itália. Acqua alta, em Veneza.
-Estavas lá?, entusiasmou-se o Ratinho.
- Não, já estávamos em Trieste, confessei.
Trieste, noutro ano...
- Trieste também já conhecias. Pelo que contaste, ali vivia-se bem… Descansaste. Vê-se na tua cara.
Era
o Ratinho, a amenizar a conversa.
-
Mas havia a “bora” triestina! Um vento gélido que faz entontecer a gente!
-
Sim -protestou outra vez o Ouricinho. Mas viste a Regata Histórica
Internacional. A regata da Barcolana! Devia ser bem giro…
-
Estava muito perigoso o tempo! Podias até ter voado porque és pequenino! Havia a bora, mas não era a “bora nera” que
essa é de fugir, dizem os triestinos. De fugir!
Céu fechado, chuvas batidas e muito frio!
-
Sim, mas viste a feira e as barracas… E as comidas! E os barcos!
O Ouricinho fixava-me, pensativo.
- Devia ser bonito. E à noite então...
- Sim, Ouricinho, era muito bonito à noite!
Lembrei-me da bela Piazza dell'Unità ao cair da noite, com o chão molhado e a luz azulada dos candeeiros.
E os cafés 'históricos' de Trieste. Com a sua carga de escritores e de livros. James Joyce e Italo Svevo. Umberto Saba e Giorgio Voghera.
James Joyce, no Ponterosso
O Café dos Espelhos, o Café San Marco, o Café Urbanis. O Tommaseo. E por aí adiante...
Caffè San Marco
Caffè Degli Specchi
O Ratinho atalhou:
- Voltaram bem e isso é que importa. Estás aqui com o Manuel. Estiveram contentes. E nós tomámos conta da casa! Está
tudo em ordem!
O
Ouricinho riu-se:
-
É verdade! Deu-nos um trabalhão!
- Imagino....
Mas o Ouricinho já não estava triste e disse:
- E vais-nos contar tudo o que viste!