quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

A tia Leopoldina e o apaixonado...



A tia Leopoldina era uma mulher independente. E solitária também, apesar da família. Tinha o seu atelier de costura na rua que descia do Largo da Sé para a Rua de Elvas, em Portalegre.
Portalegre (foto de A. Mão de Ferro)
Tirara um curso em Lisboa e era considerada a melhor modista da cidade. A tia Leopoldina era tia da minha mãe.
Recordo-a, empertigada e séria, cuidadosamente arranjada e sempre maquilhada. 
As sobrancelhas, bem desenhadas, num arco fino sobre os olhos pequeninos, quase duas frestas que ela aumentava com um traço de crayon negro, o nariz adunco, a pele muito branca cheia de pó de arroz, que eu imagino fosse Tokalon, como a minha avó usava. 
bâton, com que desenhava os lábios, arredondava-os no meio da boca.
Usava vestidos discretos de bom corte, brincos com uma grande pérola, sempre um colar ou rendas junto ao pescoço para esconder as rugas, anéis com pedras pequeninas nos dedos.
O penteado lembrava o da avó, com os cabelos puxados para cima num rolo sobre a testa, mas o cabelo dela tinha ainda uma cor acastanhada enquanto o da minha avó era todo branco.

O ar severo não impedia, no entanto, uma grande ironia e boa disposição. Quando se ria, os olhos fechavam-se ainda mais e viam-se os dentes pequenos. Às vezes, idealizava-a jovem e cheia  de vida, em festas onde não sei se foi. E via-a brilhar nesses espaços.

(1)
Morava no primeiro andar de uma grande casa, de esquina. Subiam-se as escadas, que formavam um ângulo ligeiramente encurvado e estávamos em casa. 
Ao lado do hall, havia a sala de visitas, ou sala das provas, mobilada com móveis de desenho ousado, anos vinte, pesados cortinados nas janelas, e bibelots variados. 

(2)

Para mim, a personagem da Tia Leopoldina estará sempre ligada à Arte Nova!


Na sala de entrada, sobre uma mesa baixa, recordo uma corça branca, de mármore fino onde eu passava os dedos devagar, a sentir a suavidade da pedra. Ao lado, uma figura de mulher estilizada, em alabastro amarelo, que era, afinal, um candeeiro. 
Ao fundo do corredor, ficava a sala onde trabalhava, rodeada das suas “ajudantas”, como lhes chamava. As aprendizas, sentadas em cadeiras de palha baixas, faziam bainhas, alinhavavam mousselines, cosiam botões e, levantando os olhos risonhos, espreitavam-nos por debaixo dos cabelos. Cochichavam e riam-se, talvez de nós. A tia de vez em quando repreendia-as e mandava-as estar caladas.

Havia um manequim perto da janela de vidraças altas, e uma mesinha com um candeeiro de vidro, que tinha um abat-jour azul de seda. Era um manequim imponente, sem cabeça, cujas formas sólidas e o busto direito me lembravam a figura da própria tia Leopoldina.

Ao centro da sala, estava uma grande mesa oval, com tesouras, metálicas e ponteagudas, fitas métricas amarelas, amostras de veludos, popelines, sedas, botões coloridos, almofadinhas espetadas de alfinetes, riquezas que eu adorava ver de perto e tocar.


Imaginava outros manequins modernos e ligeiros onde poria os meus vestidos!
Nesse lado da sala, havia uma porta envidraçada com vidros pintados em arabescos art nouveau que ligava, através de uma pequena divisão, a sala de trabalho ao quarto de dormir onde não me lembro de termos  entrado.
Nessa pequena divisão, espécie de antecâmara do quarto, havia um nicho com um santo António enfeitado de flores de papel encerado e bonitas velas que acendia à noite. A porta do quarto tinha os mesmos desenhos no vidro. 
Do outro lado do corredor, estava a sala de jantar mobilada com móveis antigos escuros e pesados. Do resto da casa, não me recordo. Talvez fosse apenas isto que eu via.
A tia Leopoldina era uma personagem misteriosa, de poucas falas, e muitas facetas que desconhecíamos e inventávamos. Tinha um apurado sentido do humor e saíam-lhe frases divertidas que revelavam grande sentido de observação e de curiosidade pela vida e pelos outros.
Uma vez, no Carnaval, para se vingar das muitas partidas que lhe fazia a irmã, a tia Zezinha, convidou as três irmãs para irem visitá-la, depois de jantar. Entretanto, preparou uma abóbora grande, furou-lhe uns buracos para os olhos e deu um corte a fazer de boca. Pôs dentro uma vela, equilibrou tudo em cima do tal manequim e foi colocá-lo na curva das escadas. 
A noite estava escura e fria, e a tia Zezinha e a tia Mariquinhas subiram a correr. Quando se lhes deparou o mostrengo - aquela figura monstruosa iluminada- puseram-se aos gritos e a fugir escadas abaixo, para grande regozijo da tia Leopoldina. 
A terceira irmã, a minha avó Branca, contava a história, perdida de riso, porque ela, como ia mais devagar, ficara ao fundo das escadas. E livrara-se do susto que elas tiveram.
O trabalho saía perfeito das mãos da tia, os acabamentos eram minuciosos, a atenção aos mais pequenos pormenores era constante. As rendas, as cores, os leques...
Quando eu ia provar alguma roupa, gostava de a olhar, a espreitar a pele lisa do rosto, os brincos, as rendas que trazia ao pescoço e os seus olhinhos atentos, controlando cada prega da fazenda. 

As mãos finas e rápidas ajustavam a gola, as mangas, descosiam os alinhavos, riscavam com um giz branco e voltavam a pregá-las com alfinetes que ia tirando dos lábios.
Se me mexia, dava-me uma pancada no braço e dizia, severa:
- “Takitao"! Quieta!
A mim parecia-me aquilo japonês, um som esquisito, ficava imóvel. Ela explicava, divertida, e os dentes bicudos e pequeninos mordiam o lábio:
- Foi uma senhora espanhola que me ensinou. Os filhos não estavam quietos e ela dava-lhes uma palmada e ralhava: “Takitao...”
Encolhia os ombros e acrescentava:
- Está quedao, devia ser...
Eu não percebia mas punha-me imóvel. Ela ria-se e cantarolava baixinho. Sorria-me, com os alfinetes a desenhar a boca. Gostava de ir a casa dela. Um dia, a tia Zezinha contou à minha mãe:
- Sabes? Parece que a Leopoldina tem um apaixonado...
Nós deixámos os brinquedos e ficámos logo de cabeça no ar, a ouvir, curiosas. No fim e ao cabo, a solidão da tia Leopoldina, o facto de não ter marido nem filhos, talvez nos impressionasse.
- Ela põe-se detrás dos cortinados, ao cair da noite, quando os candeeiros começam a acender-se, na rua e fica, às escuras, para ele não a ver...
Candeeiros de Portalegre (A. Mão de Ferro)

- Quem é ele, tia Zezinha?, perguntou a minha irmã.
- Não são histórias para meninas!, respondeu logo a tia.
E calou-se, enquanto nos afastávamos, a brincar, fingindo-nos distraídas. Ela continuou, divertida:
- Ele fica encostado à parede do outro lado da rua, a olhar para cima e a fumar, vê tu! Disse-me que tem um chapéu de feltro e uma bonita gabardine. E um bigodinho...

- Como é que ela viu isso tudo?, perguntava a minha mãe.
- Sabes como é a Leopoldina, está sempre a espreitar. Parece, então, que ele fica por ali um bocado e, quando a noite chega, vai-se embora. 
"E depois?'", pensava eu.
Já não ouvia a conversa. Imaginava o apaixonado da tia Leopoldina, com um cão lindo sentado num jardim, à espera dela. Via-os passear num jardim, ele todo bem vestido e de luvas e com um cão aos pés.

A noite desce e lá está ela a afastar um pouco o cortinado branco com os dedos finos. Na escuridão, vejo o pó de arroz a brilhar, na noite, e a mão livre a segurar as pérolas ou os bordados, que formavam uma gargantilha, junto ao pescoço. Sinto-a respirar, ofegante. 

Parecia-me ver a névoa descer sobre a cidade, envolver as lâmpadas amareladas dos candeeiros e sentir as pessoas que regressavam, apressadas, a casa. 
Portalegre na névoa da noite (foto de José Fernando SP)
O apaixonado fumava, levantava os olhos para a janela, e tossia. Não sei por quê mas a ideia que ele fumava fazia-me imaginá-lo a tossir, talvez por saber que o meu pai tossia por causa de fumar. Depois afasta-se, andando devagar, e a olhar para trás. 
Ela suspira quando ele desaparece da vista. Acende a luz do candeeiro de abat-jour azul e vai sentar-se no sofá, com o lencinho na mão a limpar uma gotinha de suor no lábio superior. 
A solidão e o frio voltavam com a noite. Ela fechava as luzes e ia deitar-se. Soltava um suspiro, enquanto tirava as pérolas do pescoço e arrumava o vestido na cadeira ao lado da cama.
E eu, em casa, antes de adormecer, ficava a pensar na tia Leopoldina e no seu apaixonado.

Ilustrações:
(1) Poster Art Nouveau, de Alfred Choubrac
(2) James Tissot, Woman
(3)Retrato de Henri Toulouse-Lautrec, pintado por Giovanni Boldini

9 comentários:

  1. A sua Tia Leopoldina está maravilhosa...a foto do nosso Amigo José Fernando está muito bonita, era um Amigo de quem gostava Muito....obrigado por gostar das minhas fotos

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  2. A sua tia devia ser uma pessoa interessante.
    E a casa dela, cheia de mistério, devia ter coisas muito bonitas. Imagino-a.

    Um beijinho e um bom fim-de-semana:)

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  3. Parabéns por este primor de post! Na minha humilde opinião, é a descrever personagens ou situações que a tua escrita alcança os níveis mais altos e mais genuínos. Adorei!
    Bom finde, bjinho

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  4. Gostei muito desta história e das imagens que a acompanham.
    Pensei que hoje o seu apaixonado poderia parecer um perseguidor e que queria saber mais sobre ele e como seria se se conhecessem.
    um beijinho

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  5. Eu conheci muito bem a Tia Leopoldina: era uma figura excepcional, de um tempo que já foi, de rara delicadeza e romantismo.

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  6. Deve ter sido a tua história que mais gostei de ler nos últimos tempos! Tenho pena de só a ter lido hoje...
    É tal e qual a nossa tia Leopoldina, aquele ambiente da casa dela misterioso, estranho, irreal, os seus perfumes, a sua figurinha frágil mas hirta,tudo tão cheio de enigmas,e uma tia tão diferente das outras tias... está um conto adorável! Beijinhos ! Mamé

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  7. Que bonita homenagem à tia Leopoldina! Que texto tão bem escrito que me levou a imaginar tanto... a ver a tia Leopoldina à minha frente. Adorei! Beijinhos

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    1. Obrigada, Sara! Era assim essa tia da minha mãe. Viveu sozinha, morreu sozinha mas era uma mulher que quis ser um pouco diferente...

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  8. tambem me lembro bem dela e da cas....herdei os sofas da dita sala de provas.....beijo.mané

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