quinta-feira, 3 de março de 2016

Ah, Europa! E a solidariedade por onde anda?


O tempo corre como um rio apressado para um mar qualquer onde tudo acaba e que, se calhar, não nos interessa saber  onde é. Ou, pelo menos, só o mais tarde possível! 
Tudo passa e nada volta. Sous le pont Mirabeau/, coule la Seine", dizia Apollinaire. 
Muita coisa esperámos que mudasse. Para bem, claro. Aquilo que pensamos seja a ideia de Bem. Ainda, segundo Apollinaire: "Comme la vie est lente/ et l’Esperance est violente."


Mudaram as coisas? Paulatinamente, como diziam em São Tomé, algumas mudaram. E algumas para bem. Outras deixam-nos um amargo na boca, por incompletas, ou injustas.

Nos livros, continuo a encontrar as melhores perguntas. E as dúvidas que me dividem. 
Dizia André Gide que é melhor "procurar do que encontrar" e o sábio Einstein explicava que "a procura da verdade era mais importante do que a sua posse”.
As respostas temos de ser nós a dá-las, como pudermos, depois de as procurar, ao longo da vida. Os livros amparam-nos nessa procura. 
Será que hoje a escolha das atitudes morais deixam a desejar na "nossa" Europa?  
Seria bom que o mundo desse uma volta ao contrário e a Terra passasse a girar ao inverso. Quem sabe se o desconforto da Terra, a girar pela esquerda, lhe não faria bem! Talvez saísse algo de bom desse mal-estar consciente, algo que agitasse os espíritos parados e cansados. Desconfiados e pasmados, também.

Leio um livrinho de Antero de Quental, “Prosas Dispersas”,que o poeta Ruy Belo organizou e prefaciou(Editorial Presença, 1966).  
Antero de Quental, um poeta, um escritor e um Homem inteiro. Quer que aconteçam coisas no país onde vive, a meio do marasmo e deste 'nosso' modo de viver de "alma pasmada". 
Antero de Quental, por Columbano

Deseja defender “grandes causas”! Que se vá em frente, que se avance! Falar, dizer, protestar é importante para ele. Poderia rejeitar como Salústio, na sua 'Catilinaria', que a vida dos homens se passasse no silêncio dos rebanhos: 'Ne vitam silentio transeant velut pecora...'

Olho o que anda por esse mundo fora e fico agoniada, apanha-me uma angústia que não queria ter. Porque um dia eu julguei que acabasse a injustiça, o  desespero e a dor – dos homens.
Onde está a voz de um Antero? O desejo de se sacrificar –vida, carreira, saúde, nome- por uma causa nobre?
Escreve ele a Jaime Magalhães Lima, em 1890, pedindo-lhe que venha ajudá-lo, por seis meses, aceitando um lugar -difícil e cheio de responsabilidades- na Linha Patriótica do Norte.
“Preciso absolutamente de si no Porto durante seis meses. A Liga vai naufragar por causa de um homem (…) que o Porto não tem. O que se vai passar no Porto é seriíssimo. Há-de vir. É um sacrifício por uma causa. (…)”
Magalhães de Lima aceita. Mas, ao fim e ao cabo, vai tudo "acabar em droga" (expressão que Antero usava). Porque muitos outros vão dizer que sim e depois ficam em casa, de pantufas a ler o jornal. E continua Antero:
"Eu sacrifico a minha saúde, a minha vida (…) Quero sacrificar a vida e morrerei contente se tiver vivido seis meses ao menos da verdadeira vida de homem que é a da acção por uma grande causa.”

Sacrificou a sua vida. E viveu "vivo" muito mais do que seis meses a verdadeira vida de um homem, a “servir” essa causa. 
Suicidou-se. No entanto, a sua vida valeu a pena ser vivida enquanto durou – porque soube sacrificar-se por coisas mais altas do que a mera vida dos “carneiros” de que falava Salustio.

Quem se sacrifica hoje? Vejo indivíduos e grupos que o fazem. E lembro a Grécia, sim, e as gentes da Itália de Lampedusa e de outros lugares. Que agem como seres humanos, no meio do egocentrismo e do nacionalismo acerbo dos países que, "sicut pecora" deixam que os governantes decidam (mal) por eles.

E apeteceu-me falar do filme "Fuocoammare"! É um documentário, de Gianfranco Risi, que ganhou o Urso de Ouro em Berlim há dias. E que espero ver.

imagem de "Fuocoammare"
socorrendo os migrantes, ao largo de Lampedusa

Risi dedicou o Prémio "àqueles cujas viagens de esperança nunca chegaram a Lampedusa” e aos habitantes da ilha a que “há 23 anos abrem os corações àqueles que ali chegam.” 
Sim, fala da tragédia dos que morreram no mar. E dos que vivem, depois de saírem vivos do mar, o horror da vida.
Urso de Ouro para "Fuocoammare"

Num mundo desiludido, como encontrar a esperança? Diz o salmo XI: "Quando os alicerces tombam, o que pode o justo fazer?
Bem, o justo não pode é calar-se, acho eu.

E volto à Utopia, que sigo e não largo: a bandeira rasgada, a que se agarram os que ainda acreditam no Homem.
Falo desta Europa enlouquecida, falo das escolhas e das atitudes (i)morais, cheias de medos e de interesses próprios, que se despejam pelos jornais e por aí fora.

Onde passou o ideal da Europa unida? Diria mesmo: onde está a (nossa) Europa? Não a reconheço: as cedências, a falta de coragem para uma 'escolha comum' face à atitude soi-disant "nacionalista" e "securitária" dos governos que é, acima de tudo, uma forma de banal e cruel populismo. 
Uma Europa da violência contra pessoas desarmadas. Como na Macedónia ou Hungria.
Macedónia

Macedónia


Grécia

A Europa foi sempre um lugar de abrigo. E também muitas vezes, em tempos difíceis, os europeus encontraram abrigo lá por fora. No Norte de África, por exemplo. Basta pensar na Guerra Civil de Espanha ou na ocupação nazi da Europa. 

Nos dias que correm. a Europa fechou-se num egocentrismo onde o que mais a preocupa é o problema económico, a defesa dos seus bens e dos comércios (à procura de mão de obra barata) conquistados. 
Vejo as enormes hipocrisias e as “gaffes” voluntárias. Não percebo a Cimeira (pro-racista ou xenofobista?) da Áustria.
a Primeira Ministra da Áustria 

Os migrantes estão parados na fronteira com a Macedónia e, ali, a polícia usa os bastões e os gases lacrimogéneos até contra crianças. Por outro lado, a Grécia não consegue dar escoamento aos que já lá tem que são mais de 10.000 almas. 
instalações Olímpicas abertas


A Grécia e a Europa têm uma crise humanitária às portas, ou antes, já está em pleno centro de Atenas, onde se dorme no chão nas praças. Onde o velho aeroporto está a abarrotar de gente. E onde os Gregos abriram as instalações Olímpicas (de 2004) para os receber. 
Podem vir a ser 70.000 dentro de poucos meses. 

A Europa promete 'pagar' à Grécia... A Inglaterra promete 'pagar' à França... Como a UE já 'paga' à Turquia. Para manter longe -enquanto for possível- o problema! Será uma solução?
na Grécia

O mundo tem medo do que "aí vem". Compreende-se. É o desconhecido. Mas o que "aí vem"… já cá está. Porque os djihadistas –já por cá andam e vieram de avião. 

Não sou eu que o digo, vem nos jornais que se preocupam com as consequências de uma política europeia e mundial (há décadas) errada! E têm “cá”, na nossa Europa, as armas de que precisam.  
E pergunto: por quê a Guerra do Iraque? por quê a ida à Líbia? Acções que desestabilizaram toda uma região. Uma questão de petróleo, sabemos.
La Jungle


Em Calais, ao Norte da França, milhares de refugiados aguardam a possibilidade de "fugir" num ferry para Inglaterra. Anteontem, tiveram de abandonar o campo a que chamavam "A Selva" (La Jungle), onde viviam mal instalados e sem condições sanitárias mas tinham criado uma espécie de família. 
Serão espalhados por vários "bairros de contentores", em várias zonas da França. 
os contentores


Houve protestos, mas a polícia francesa portou-se bem. Eu não posso criticar, não sei como faria. Sei, porém, que todos somos humanos e que o Homem não deve humilhar o outro Homem, nem empurrá-lo para o abismo. 
Tem de haver outras soluções, que não me compete a mim saber, e exigem coragem e tolerância: é importante falar nelas. 

Leio a editorial do jornal Le Monde de há dias:
“Não sabemos que expressão usar para a Europa. Sob a vaga de choque migratória, a Europa desloca-se, desintegra-se e desconstrói-se…
imagem de "Fuocoammare"

(…) Um dia, falando da Europa os  Historiadores dirão que a Europa foi um belo projecto dos anos 50 e que acabou antes do 1º quarto do século XXI."
Por onde anda a Europa? E para onde vai?! A solução será a dos governos populistas, xenófobos?
Não creio! E indigno-me! Repito-me, na minha indignação? Sim, sei que sim, mas prefiro repetir-me a ficar calada!
A verdade, no entanto, é que, como escrevia André Gide (Prémio Nobel de Literatura em 1947), que era um moralista a sério:  
André Gide, por Theo Von Rysselberg (1907)

"Todas as coisas já foram ditas mas, como ninguém ouve, têm de se repetir e recomeçar."
André Gide

E o escritor francês também dizia: "Quando deixar de me indignar, quer dizer que envelheci."
Fico bem acompanhada contra as nuvens do temporal que se aproxima!
nuvens da minha janela

https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/viver-e-morrer-em-lampedusa-1723246

6 comentários:

  1. Para os meus possíveis leitores, peço desculpa de me repetir e de dizer o que já "foi dito", mas é-me impossível calar. Agradeço aos que me lerem a paciência de ir até ao fim. Obrigada!

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  2. A História sp se repete, e a Europa nem sempre foi um lugar de acolhida. Os espanhóis refugiados em França dp da atroz guerra civil foram metidos em campos de concentração e muchos entregues à
    Gestapo. Os alemães fizeram o que fizeram com os compatriotas, etc etc.O que é urgente é acabar com essa guerra vergonhosa,que nunca devia ter começado. E isso não é uma utopia, é a obrigação dos políticos de turno. Enfim,bom finde, beijinhos

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    1. Tens razão, Maria, e é triste lembrar o que aconteceu aos republicanos fugidos de Espanha. E não ficamos por aqui, claro. Mas aí tínhamos de ir ao velho: "homo hominis lupus"...O homem foi (é e será) um lobo para os outros homens.
      Esperemos que a guerra acabe. Mas qual guerra? já não sei onde vamos...
      bom fim de semana

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  3. MJ,
    Nunca é demais. É uma realidade tão triste... um problema pungente. Ando cansada mas quis deixar um beijinho.:))

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  4. Tão bem dito: "Comme la vie est lente/ et l’Esperance est violente.".
    Tanta intenção de paz na boca do homem, mas a outra face, o lobo (como muito bem recorda) não tem pressa espera que a exaustão se apodere da vítima para a abocanhar.
    Excelente crónica.

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  5. ~~~
    Leituras, sempre, sobremaneira agradáveis.
    ~~ Beijinho grato, MJ.
    ~~~~~~~~~~~~~~~~~

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