domingo, 1 de maio de 2016

Ouvir Jazz, a recordar os tempos de São Tomé...



Ao ouvir certas canções de jazz, entram-me de repente, pela janela, os cheiros, os ruídos da minha rua, em São Tomé. Vêem com uma nostalgia suave que não faz doer.
Era uma casa de esquina a nossa, caiada de branco com uma barra azul no rodapé e rodeada por uma cerca de madeira branca, acabada de pintar. Tenho uma fotografia do Zac a sair pelo portão da cerca, lindo como ele só!
À volta, um jardim tropical africano e a casa dentro dele. Coqueiros, mangueiras, uma árvore de fruta-pão de vários metros de altura. O jardim ia-se colorindo, criado – porque se tratava de uma criação - pela imaginação artística do Sr. Semedo, com as plantas que o jardineiro da embaixada, o Zé, nos ia trazendo.
E chega-me o calor e a humidade forte da ilha. Parece-me ouvir as vozes, do outro lado da rua, os gritos divertidos e a música dos vizinhos, pontuada de gargalhadas.

Lembro as palmeiras enormes, palmeiras bravas diria como as do livro do Faulkner, com os ramos a abanar violentamente nos dias de temporal. Ouvia, sim, como se lá estivesse ainda, o ruído do mar perto da casa. E as bananeiras e a árvore dos frutos estrelados, as flores carnudas das rosas de porcelana, o bambu, o arbusto de papiro. 
foto de Lê Than Tù, fotógrafo vietnamita

Ouvia o canto dos pássaros e o ruído do mar, perto. E a música. A música que eu punha continuamente… 
Tínhamos uma boa aparelhagem sonora, trouxéramos CDs, mas era tão raro haver electricidade constante que o leitor de CDs se avariou em pouco tempo, com tantos acendes e apagasAs falhas de luz acabaram com ele. Durante muitos dias não pudemos ouvir música nenhuma. 
Depois, a Gui mandou-nos um rádio-gravador a pilhas e uma quantidade de cassettes. E foi então que chegou o jazz... Veio Duke Ellington, as Big Bands, Louis Amstrong mas, sobretudo, chegaram as maravilhosas e desconhecidas vozes femininas do jazz!


Voltou a música e eu e o Zac ficámos contentes. As cassetes eram variadas e a maior parte delas em ritmo de jazz! Foi assim que me apaixonei pelo Jazz!
Eu e o meu amado cão sentávamo-nos no sofá  amarelo-marfim, com flores azuis, e as horas corriam assim depressa. Nas fotografias de então e, apesar de jovem, tinha uma cor pálida e doentia. 
O calor húmido e as crises de paludismo que vieram pouco tempo depois da chegada à ilha, deixavam-me olheiras profundas  e anemia.
A Dáy por vezes batia à porta devagarinho e perguntava:
- Dôtôrra, quer um sumo de shape-shape fresquinho? É doce! Hoje a minha mãe comprou no mercado.
Era um fruto estranho com um gosto delicado e com muitas sementinhas lá dentro.
- Sim, obrigada Dáy, traz...
E lá vinha o sumo pouco fresco -porque não havia gelo já que o frigorífico não trabalhava. Abençoado velho frigorífico que aguentou aqueles cinco anos de África sem falhar!
Outras vezes, ela entrava de rompante, com uma notícia:
- Dotorra, está aqui Carrla que veio cumprimentar dôtôrra

A Dáy era filha da Milly que era a nossa cozinheira. 
Oh, a Dáy! Está no meu coração sempre. Inesquecível a voz um pouco rouca e os ‘rr’ daquela menina franzina e esperta que conheci com nove anos e que ajudei a crescer até aos catorze. Depois a "vida meteu-se ao meio, como dizia o poeta, o que teve de vir, veio". E nunca mais nos vimos! Sei apenas dela que hoje tem três meninas e vive em Angola. 
Nunca mais nos veremos, eu sei. O Senhor Semedo 'partiu' há uns anos e espero que tenha encontrado o Zac de quem era tão amigo. Que também já foi embora...
A Carla era a filha mais velha dos vizinhos são-tomenses que viviam à esquina da rua, pessoas muito comunicativas e simpáticas. Sabia que ela estudava no liceu. A Dáy vinha sentar-se também. Ela adorava aquelas visitas da Carla. 
Os dois irmãos, o Maiquel e o Nini,  andavam ali pelo quintal entre brincadeiras e gritos e os ralhetes da mãe... até às cinco da tarde! Quando o Manuel vinha e os acompanhava à Chácara, onde viviam.
Havia também a Adelina, a doce Adelina, de olhos de corça, que era a nossa lavadeira. E a Diamantina, que passava a ferro. Mulher forte e bonita, bondosa e com a consciência e desejo de o ser. 

Não havia trabalho certo em São Tomé. Os homens pescavam, quando podiam. Quando não podiam, arranjavam as redes e preparavam-se para o outro dia.

 redes estendidas, na praia Melão
Outros, tinham uns empregos na construção civil ou nalguma repartição. O que  calhava. As mulheres aguentavam os filhos e a casa, sabe lá Deus como! E eu, que vivia bem, quis dar emprego a essas mulheres maravilhosas que ali encontrei! E delas fiquei amiga!
pintura de Pascoal Viegas, O Canarim

A Diamantina era muito religiosa, pertencia a uma seita que aparecera por São Tomé naqueles anos. Aceitava o que a vida lhe trazia, sempre tranquila e de modos suaves, e preocupava-se com o bem dos outros. Quantas vezes me vinha dizer, quando eu me sentia mal: “Doutora, deite-se em cima  da cama. Com os pés para cima. Beba muitos sumos…” 
O meu quarto tinha uma ampla janela sobre o jardim...
Durante anos e anos, depois de me vir embora, escreveu-me cartas lindas, a falar das saudades que tinha e a contar o que se passava na ilha. O marido fazia objectos de tartaruga e das suas mãos saíam coisas tão bonitas: colares, pulseiras delicadas, brincos. 
Recebi, assim, dentro dessas cartas, lindos colares de tartaruga - mesmo quando passou a ser proibido o trabalho em tartaruga -que nem sei como chegavam, embrulhados em jornais velhos, metidos num envelope cheio de cola por todos os lados!

Bem, mas eu queria falar da música! Da música que voltou com o tal gravador. E pilhas não faltavam em São Tomé: toda a gente tinha o seu rádio a pilhas.
As cassetes traziam vozes maravilhosas! O deslumbramento começou com as ‘ladies’ do jazz! Hoje quem as não conhece? Eu conhecia os ‘homens’ do jazz: Duke Ellington, Louis Amstrong, Sydney Bechet…mas as mulheres não conhecia.
Entraram em minha casa aquelas vozes magníficas, quão alegres algumas e desesperadas, angustiantes,  outras.
Billie Holiday, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan e Dinah Washington foram as minhas primeiras vozes femininas de jazz! Para sempre, as minha quatro preferidas.

Ouvia essa primeira cassete repetidamente. E o sumo de shape-shape aquecia nas minhas mãos. 
Depois chegaram mais e um mundo novo veio ter comigo, um mundo de vozes que gritavam e me distraíam. Gritavam, pensava eu, para me trazer a força delas, do fundo das almas feridas que tinham. Com a ternura e a doçura das vozes que eu ouvia no meu jardim.


Billie seguiu-me por toda a parte depois. Guardei muitos anos uma cassette com Billie Holiday, na face A, e Chet Baker na face B.
Chet Baker, sim. Outro “deus” que a minha filha me ensinou a amar. Ela ia variando as músicas, talvez segundo as que ela própria ia ouvindo. E ia gravando cassetes para nós. Além de Chet Baker, chegou Marvin Gaye e Stevie Wonder e muitos outros.
Os meus dias de São Tomé mudaram porque a ansiedade de ver ‘partir’ a luz já não existia. Quando a Milly me vinha dizer: “Dôtôra, a luz foi embora e a água secou.” Com o candeeiro de petróleo ao lado, e as velas preparadas e os fósforos, a espera tornava-se diferente: havia a música!
A Dáy voltava, com sumo de coco.
- Senhor Semedo abriu coco! Pus no copo para dôtôrra, mas também pode beber com palhinha, do coco mesmo. Se quiser!
Eu afastava o shape-shape já quente e sentia a frescura da água do coco. Ficávamos a ouvir a música, com o Zac ao lado.
Enfim, tudo vai, tudo foi e tudo vem à memória. É bom recordar. Quantas vezes, ao ouvir as ladies do jazz, agora num CD novo, sinto um baque no coração: vejo-me outra vez no sofá amarelo, com o meu Zac, na sala pintada de branco, e de chão vermelho encerado. 
Por entre as ripas das janelas, passa um risco da luz: é o fim do dia e corre uma ligeira brisa que vem do mar.
Posso ouvir o Senhor Semedo a ralhar com os mininos e a Milly a gritar para se despacharem que é tarde e têm de ir para casa. A noite caiu há muito mas, na minha casa de São Tomé, o calor permanecia até de madrugada e a sala nunca refrescava. 

Acordo e suspiro como se saísse de um pesadelo! A música é a delas, das minhas ladies do jazz - Billie, Ella, Dinah, Sarah - mas, à minha volta estão os livros, há luz, a sala está fresca. 
Se quiser, vou até à varanda ver as minhas flores novas e sentir o ar frio que vem do mar daqui, nesta Primavera tão inconstante. Ou vou até Cascais ver a noite na baía.


São Tomé ficou para trás, com as boas e más recordações. Com uma nostalgia doce, recordo sem sofrimento. "Olhar para trás, não deve ser para sofrer", diria  a Diamantina que era uma mulher sábia!
São Tomé e o Ilhéu das Cabras

São Tomé, a caminho de Angolares

o Zac e eu, em Angolares

Tantas recordações vêm até mim, com as fabulosas ladies do jazz!
Deixo as vozes de Billie, Ella, Dinah e Sara...

7 comentários:

  1. Adorei a forma como conta estas memórias!
    Sou fã de todas essas vozes do Jazz!

    Lindas as flores da sua varanda!

    Um beijinho grande:)

    ResponderEliminar
  2. Obrigada, Isabel, pelo teu apoio! Estas vozes são magníficas, únicas! Beijinhos

    ResponderEliminar
  3. Fui ver o São Tomé de hoje, tive curiosidade. Um país com menos habitantes que Jerez, umas pequenas ilhas no meio do mar... Como será a vida dos senhores Semedo e das Millys de hoje, que terá sido dessa criança que aparece na foto ao teu lado e do Zac...
    Tudo funciona como nos países grandes, 4 partidos com representação parlamentária, turismo, pesca e até pode ser que petróleo, para acabar de estragar tudo!Ainda haverá esses apagões tão duros?
    Fiquei a dar-lhe voltas ao tema.
    Beijinho

    ResponderEliminar
  4. Sim, Maria, pouco mudou. Continuo em contacto com alguns amigos. Até com o Maiquel que hoje é professor e é amigo no FB...
    O projecto do petróleo existe, não será para os são-tomenses usufruirem (na altura falava-se de já estar vendida a exploração à África do Sul). Existem dois hotéis da Cadeia Pestana em São Tomé cidade e no Ilhéu das Rolas: logo, evoluiu...no sentido do turismo que dá (muito) dinheiro a alguns e pouco ou nada a outros.
    Gostaria de voltar? talvez. Mas não me arrisco por causa do paludismo que continua por lá...

    ResponderEliminar
  5. ~~~
    Ilhas que muito gostaria de visitar...

    Beijinhos, MJ.
    ~~~~~~~~~~~~~

    ResponderEliminar
  6. Falcão, sabe, eu termino de ler o que escreves e não tenho palavras para escrever, porque agora não estou aqui, neste mundo, estou longe. As suas memórias resgatam as minhas. Sinto perfeitamente como é que vives estas recordações, porque eu também vivo assim, sem classificar de boas ou más, apenas são recordações. Estão lá para serem recordadas, com seus cheiros, cores, calor ou frio ... o passado torna-se vivo, pode ser honrado, parece um tempo concomitante ao presente, andam juntos. Beijo querida.

    ResponderEliminar
  7. Falcão, por estes dias lembrei-me de você. Recebo por email as atualizações de um programa chamado 'O Mundo Segundo os Brasileiros'. Trata-se de relatos de brasileiros que moram fora do país. Mandaram-me, esta semana, sobre São Tomé e Príncipe. Se quiser assistir, aqui está o link - https://www.youtube.com/watch?v=NOwrlE7T90I

    ResponderEliminar