terça-feira, 19 de julho de 2016

A SENHORA DOS GATOS


Suzanne Valadon, Gato a descansar

A senhora dos gatos, como lhe costumo chamar, conheci-a há uns anos e, como tantas pessoas solitárias, gostava de animais.
Uma senhora que tinha conhecido melhores dias, que vivia com dificuldades, mantendo no entanto uma aparência cuidada, ciente da sua dignidade e educação. 
Sempre com o seu velho carro, debaixo das janelas, carro que pouco usava mas que lhe era tão útil. Porque muitas vezes o gato que um dia lhe foi parar a casa, ficava a dormir no carro numa cama que lhe fizera. Mas a história do gato vem mais adiante.
Suzanne Valadon, Gato

Bem vestida, sendo talvez roupas usadas, não deixava nunca de pôr um chapéu, nos dias de Inverno, ou um chapéuzinho de palha com uma fita, nos seus passeios até à praia. Como seria ela na sua juventude? Tímida, introvertida, solitária? Quem o podia saber?
Suzanne Valadon, Jeune fille

Tem uma cadela, há anos. Encontrou-a, ainda cachorrinha, sem coleira nem dono, e levara-a para casa. Hoje é uma cadela gordinha e feliz, que vai envelhecendo com a dona. 
Suzanne Valadon, Gatos

Não foi só a cadela que a senhora protegeu. Aliás, eu estava a falar era de gatos!
De facto, costuma deixar comida, num canto da rua, para os gatos vadios e, no Verão, nunca esquece uma tigela com água. Para os gatos e, por que não também, para as pombas?
Paul Gauguin, Nature Morte aux Chats

Um dia vi-a, aflita, tentando fazer descer um gatinho que parecia assanhado, empoleirado na nespereira. Esteve a acalmá-lo, a convencê-lo a descer e, quando viu que não conseguia, deixou um pouco de pão molhado em leite e, no dia seguinte, foi pôr uma almofada debaixo do gato e deixou mais comida,  no tronco, que não era alto. 
O gato por ali ficou, nem sei bem quanto tempo. Via-a por vezes ir levar-lhe comida. E um belo dia descobri que o gato passara a viver dentro do carro dela. E que, afinal, era uma gata! 
Suzanne Valadon, esboço para gato

Passando perto um dia, e vendo-a debruçada dentro do carro, perguntei se podia ver o gato. Respondeu, um pouco desconfiada, que sim.
- É uma gata. E está desparasitada e esterilizada!
Inclinei-me dentro da porta do carro e lá estava uma gatinha preta que miou devagarinho e me olhou sem medo. Os assentos do carro estavam cobertos com panos para impedir que os estofos se estragassem.  
- E lavo os panos!
Pareceu-me haver um certo despeito na sua voz. Calculei que alguém a criticara.
- Eu sei. Está tudo tão limpinho...
 Durante o dia passeava-se à vontade dentro do carro. À noite dormia num cestinho de verga, forrado.
- Que linda!
Sorriu-me, contente.
- Há pessoas que não compreendem. Disseram-me que era proibido ter gatos nos carros. Até fui à polícia...
- Vizinhos, não é?
- Sim. Adoram ter inveja do que os outros têm!
De facto, ela tinha aquele amigo, pensei.
- Basta saber cuidar dela, deixar a janela aberta para respirar.  Ela é  feliz aqui.
Há pessoas assim, sem ninguém, carregadas de desilusões, gente que, na sua solidão, procura conforto na companhia dos animais - abandonados como eles.
Um dia fui à minha amiga Marion cortar o cabelo, e encontrei-a na Praça das Flores, em Lisboa. Estava sentada na esplanada, debaixo das frondosas árvores que formam como uma cúpula cheia de frescura.
Praça das Flores, imagem da internet
Toulouse Lautrec, Suzanne Valadon (1885)

Quase não a reconheci. Com uma blusinha ligeira, fresca, um colar de pérolas e um pouco de bâton nos lábios era outra pessoa. Perdera o cinzento dos outros dias. Gostei de a ver. Sentei-me ao lado dela e pedi um café. Sorria-me enquanto bebia um batido de frutas.
- Venho às vezes, gosto muito da praça. Acho-a encantadora. Trabalhei num Banco perto, naquela rua ali por detrás. Vivia sozinha e vinha muitas vezes comer  num destes restaurantes.
Praça das Flores (net)
Concordei que a praça era encantadora. Estava um fim de tarde agradável. O vento soprava fresco  fazia agitar os ramos das árvores. Ouvia-se o sussurrar das folhas. Havia canteiros de flores em redor, havia bancos com gente, havia um grupo de jovens italianas faladoras e simpáticas.
- Quando posso, disse-me, meto-me no comboio e venho a Lisboa. Apanho um autocarro e ando às voltas por estes caminhos tão meus conhecidos. Conheço os autocarros.  Sei tudo. 
Paul Gauguin, Nature morte aux fleurs
Parecia reviver algum momento passado, nostálgica. Mas era tarde e eu tinha de voltar para casa. Deixei-a ali.  Como seria a casa dela? Quis imaginar e só via flores e mais flores. E objectos delicados.

Ela continuava a olhar para o nada – ou para dentro dela?, enquanto eu me afastava. Escurecia e eu ia a pensar como era bom que a cadelinha estivesse à espera dela, em casa. E o gato dentro do carro…
É triste viver-se só e eu já me afeiçoei à senhora dos gatos.

O gato, pintado por Renoir


4 comentários:

  1. Adorei!
    As pinturas, a história da Senhora dos Gatos, conhecer a pintora Suzanne Valadon, que não conhecia, mas adorei sobretudo o seu olhar sobre as coisas, sobre as pessoas.
    A Maria João é mesmo uma pessoa muito especial!

    Um beijinho grande e continuação de boa semana:)

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  2. Maria João,
    Não sei o que dizer. Só posso registar que me maravilhou.
    Beijinho. :))

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  3. a Arte e a Vida! ou será a Vida e a Arte?

    alguns gatos célebres, outros não tanto - mas todos mereciam sê-lo!

    gostei. deveras.

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  4. Maria, olá!
    Adorei a leitura, a história e os gatos. Eu gosto de gente solitária, falam pouco e quando falam, é um riqueza de emoções.
    Um beijo e bom domingo.

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