terça-feira, 13 de setembro de 2016

Trieste ou de sítio nenhum...



Deixo hoje uma frase do poeta Wallace Stevens, citada como epígrafe, no livro de Jan Morris (*)que estou a ler.

O livro intitula-se:  “Trieste ou de nenhum lugar”, leio-o em italiano e a tradução é "Trieste o de nessun luogo". 
O título original é "Trieste and the meaning of nowhere" que não é exactamente a mesma coisa...mas traduzir é 'recriar' -noutra língua- o mesmo sentido.
Somerset Clevedon
Porque Trieste é um lugar que não pertence a nada, é como uma imaginação, uma nostalgia de algo. Uma atmosfera, uma metáfora, diz Morris. Um estado de espírito. 
Talvez porque cada um de nós 'crie' a sua própria Trieste. A cidade de "lugar nenhum", a cidade que nos parece libertar-se da realidade é um lugar quase subjectivo. 
Esta  ideia de "lugar nenhum/nowhere/nessun luogo" é o comediógrafo vienense Hermann Bahr que a vai associar à cidade de Trieste, onde chega, em 1909.

Escreve Wallace Stevens: 
Fui o mundo que percorri: o que vi, ouvi, vivi ou experimentei não provinha, afinal, se não de mim próprio.
o porto de Trieste
Ver, ouvir, viver, experimentar não é igual para todos nós. Nem é igual em todos os momentos da nossa vida. Trieste aparece aos olhos de Jan Morris, diferente em cada momento, única sempre. 
Jan Morris nasceu em Somerset Clevedon que, de certo modo, tem muito a ver com mar e a costa escarpada de Trieste. 

 Trieste (MJF)
Aliás, sabemos que todos nós podemos viver a mesma experiência, observar a mesma obra de arte, ler o mesmo livro, correr o mundo, visitar, perder os mesmos países – e nenhum tirará a mesma experiência que é, no fundo, a ‘marca’ que nos deixa  aquilo que experimentámos. Ou, melhor, aquilo que deixámos ‘marcar’. O que fizermos disso.
Trieste e o Canale Grande (MJF)
Por isso há lugares que nos emocionam - e que deixam indiferentes as outras pessoas. Mas só nos enriquece o que sentirmos verdadeiramente dentro,  como nosso. Se soubermos procurar - em nós- o que nos sensibilizou, ou o que, na nossa sensibilidade, nos tocou.
E que, quanto a mim, se aproxima do que dizia Aldous Huxley : 
“A experiência, não é o que nos aconteceu mas sim o que fizermos  com o que nos aconteceu”
A experiência é a transformação que aceitamos em nós, quando nos acontecem coisas; é a capacidade de abertura ao que descobrimos novo, ao ‘outro’, ao diferente. É dentro de nós que criamos a nossa experiência. 
Jan Morris
Jan Morris escreveu muito sobre lugares tão diferentes como Veneza ou Trieste, Nova Iorque ou Hong Kong, o País  de Gales ou Oxford. E, ainda, uma trilogia sobre (Pax Britannica), o Império Britânico. 

Conheço, apenas, o livro que escreveu sobre Trieste que vou lendo, saltando um capítulo, voltando atrás, ao sabor dos assuntos. 
Trieste que fascinou tantos escritores e artistas de toda a espécie.  Vindos de todo o mundo. Como Egon Schiele, James Joyce ou Leonid Afremov. 
Sinagoga
Quantos passaram por Trieste -chamada a "Porta de Sião"!- a fugir das perseguições nazis. Tantos artistas e escritores judeus em fuga para a Itália ou para a Palestina. Até Einstein ali esteve umas semanas!
 Egon Schiele
 Egon Schiele, Barcos no porto de Trieste (1907)
Golfo de Trieste, de Leonide Afremov
"Nem sempre consigo ver Trieste com os olhos da mente - escreve Morris -Quem pode? Não é uma cidade-imagem, ícone, logo visível na recordação e na imaginação. (...) No entanto há momentos na minha vida em que  a evoco tão nítida que, esteja onde estiver, me sinto transportado para lá."
'passou um anjo', de Brullov
"Passou um anjo" e surge a imagem de Trieste!", escreve. "Passou um anjo" e perdêmo-nos por uns minutos, longe de tudo, absortos. Assim, Morris se sente transportado de repente à estranha cidade de Trieste.
Trieste, Paisagem costeira, Anton Hlavacek
"Sinto nostalgia, formulo pensamentos tristes sobre a idade, o tempo que passa, a dúvida e o desengano, mas não sou infeliz. Sinto que me rodeiam pessoas boas e insinua-se dentro de mim, hipnoticamente, um langor impreciso: aquilo a que os galeses chamam 'hiraeth' (**)." 
Um pouco como a nossa saudade. E não é por acaso que podemos lembrar que a Piazza Unità di Italia é uma cópia da nossa Praça do Comércio, aberta como esta sobre o mar.
Praça do Comércio
Piazza Unità di Italia
Trieste e  a sua atmosfera
Praça do Comércio

"Chamo-lhe o 'efeito Trieste'! É como se fosse transportada para fora do tempo, em lugar nenhum, para colher uma visão fugaz e tocante."
Trieste fora do mundo, cidade fronteira entre eslovenos, italianos  e o Império Austro-Húngaro tem características múltiplas. 

Descreve :
"Aldeia costeira, colónia dos Ilírios, obscura população indo-céltica que negociava com os vizinhos próximos peixe, sal, azeite e vinho. Depois foi colonizada por Roma que lhe chamou Tergeste." 
(Existiu até há poucos anos o Café Tergeste, de que falou Saba numa poesia, espaço amplíssimo - hoje espécie de Galerias com cafés, uma livraria, e lojas.)
Viena
Veneza atacou-a com razzie várias, ocupando-a temporariamente e, de tal modo se tornou insegura a cidade, que preferiu, no século XIV, pedir a protecção da monarquia dos Habsburgos, a Casa da Áustria, de Viena. 
Foi o primeiro 'gesto' da criação de Trieste.  Quatro séculos mais tarde, foram os Habsburgos que a introduziram no mundo moderno. Falar de Trieste não tem fim e cada um tem dela a sua ideia.

Como dizia Wallace, "fui o mundo que percorri: o que vi, ouvi, vivi ou experimentei não provinha, afinal, se não de mim próprio."
Anjo de Botticelli
E Jan Morris continua:
"Quando o invisível mensageiro palpita suspenso, volto a encontrar-me nas margens de Trieste, tal como eram quando as vi e assim serão sempre."
Trieste e Il Ponte Rosso onde passeava Joyce 
Trieste, cidade desconhecida: os que nunca lá estiveram, ignoram onde se encontra, diz Morris. 
E eu digo: ainda bem! Porque quando souberem onde é, Trieste perderá, com o turismo que já a ameaça, o seu fascínio de "nowhere"!
De facto dizia também Huxley: 
“Há apenas um sítio no universo onde podemos estar certos de melhorar: nós próprios.
o Peer de Clevedon
Somerset (Clevedon)
(*) Jan Morris nasceu, em Somerset (Clevedon), em 2 de Outubro de 1926. Filho (a) de um galês e de uma inglesa, sente-se "galês" acima de tudo. 
Morris, personagem complexa, que escreveu com o nome de James Morris os primeiros artigos e livros, muda de sexo em 1972 e vai passar a escrever como Jan Morris. Invulgar esta situação, no entanto bem real: à procura da sua personalidade de mulher num corpo de homem?
Historiadora, jornalista e escritora de viagens. Foi oficial de cavalaria durante a Guerra, quando conheceu Trieste pela 1ª vez.
Sandro Botticelli

(**) 'Hiraeth' é uma palavra do galês: significa um misto de melancolia, sentimento doce e amargo, nostalgia, desejo indefinido. Como não lembrar a nossa 'saudade'
Bem escrevia Garrett: "Saudade gosto amargo de infelizes/ gosto pungir de acerbo espinho..."
Encontrei esta explicação num artigo sobre as dez palavras mais difíceis de traduzir: "Descreve uma certa melancolia pela ausência de algo ou de alguém." E associavam 'Hiraeth' à palavra 'saudade'...
Encontrei este título num 'post': "Natalia, de Gales com hiraeth": 
Um abraço enorme a todos os que estão longe de casa e que sentiram ‘hiraeth” num dado momento da sua vida.”

http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/01/150121_vert_cul_palavras_traducao_ml

11 comentários:

  1. Muito interessante, como sempre!
    Gostei muito das fotos.

    Só agora me apercebi deste post, porque no meu blogue, não sei porquê, não actualizou, na lista de blogues!

    Um beijinho grande:)

    ResponderEliminar
  2. Respostas
    1. Nunca li mais nada dela. Sobre Veneza deve ser bem interessante. É uma pessoa que 'vê' de modo diferente. Beijinhos

      Eliminar
    2. Eu, uma vez, ofereci-o ao Manuel...tem capa dura, vermelha. Da Tinta da China...

      Beijinhos:)

      Eliminar
  3. Verdadeiramente Trieste é "nenhuma parte", porque também é esse lugar "onde levam todos os caminhos"...
    Wallace Stevens sabe bem que ou levamos os olhos para ver a beleza, ou não sabemos encontrá-la, e que as viagens interiores são as mais importantes de todas. Não conheço Trieste, deve ser uma cidade apaixonante. Como a vida de Jan Morris, uma lição de amor verdadeiro.
    Bom trabalho, beijinhos

    ResponderEliminar
  4. "viajo" sempre com gosto pelos seus textos.
    excelente o ritmo da montagem e a atmosfera e o "perfume" que nos agarram - irresistivelmente.

    e nos obriga a voltar. sempre (com tempo).

    abraço

    ResponderEliminar
  5. Gostei de rever Trieste e da apresentação da escritora que desconhecia.
    Foram proveitosos e agradáveis momentos de leitura.
    Beijinhos MJ.
    ~~~~~

    ResponderEliminar
  6. Mais uma bela viagem o seu texto
    Se Trieste não existe
    admito já ter por ela navegado
    Grato pela partilha
    Bj

    ResponderEliminar
  7. Estive tão pertinho de Trieste, pena não ter conhecido.
    Adorável leitura.

    ResponderEliminar
  8. Que bela viagem eu fiz!Proveitosa e agradável!Para estes últimos tempos de desconcentração da leitura fez-me bem ler-te.Tenho que vir mais vezes!Beijinhos MJ.

    ResponderEliminar
  9. Os meus avôs (que nunca conheci) passaram por Trieste) mas no postal ilustrado de Trieste,com uma vista da Piazza Unitá, vista del mare, o meu primo que os acompanhou, escreveu em português, no dia 14.8.34 passamos por 39 túneis ( a intenção no caminho para a cidade Trieste)

    ResponderEliminar